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CAPÍTULO III – VIDA ÉTICA

3.5 A VIRTUDE NAS INSTITUIÇÕES

3.5.3 O justo, o legal e o bom

Segundo Ricoeur (1995d, p. 89), ―os argumentos da justiça relembram que esta é uma parte da atividade comunicativa, sendo que o confronto de argumentos diante de um tribunal oferece um exemplo notável de emprego dialógico da linguagem‖. Valendo-se de seus princípios, a justiça procura argumentar, usando do diálogo, para a realização de seus princípios.

Nessa concepção de justiça, o seu sentido adquire uma significação que não se esgota nas simples construções jurídicas. Ademais, é a injustiça que causa o impacto maior. Sendo assim, não é que a injustiça seja mais aguda. O fato é que a ela é mais ―amiúde‖, ou seja, percebe-se mais facilmente quando uma situação é injusta, o que torna mais difícil criar uma concepção ampla de justiça. Acontece que ―os homens têm uma visão mais clara do que falta às relações humanas do que da maneira correta de as organizar‖ (RICOEUR, 1995d, p. 90). Isso confirma o fato de os filósofos antigos nomearem injustos e justos.

Há uma forte tendência em querer nomear o justo com relação ao bom, e deste para o legal. Nesse sentido, é preciso seguir alguns preceitos, realizando uma dialética entre o bom e o legal; por isso, é preciso primeiro saber discernir o que é o bom e o que é o justo e o que é o legal. Ricoeur (2004, p. 289, grifo nosso), no texto Le Juste , la justice et son échec66, declara: ―je distingue le juste comme idée régulatrice et le légal comme le prédicat commun à tout ce qui relève du droit positif‖. O que se atesta é a necessidade de discernir na ideia mesma do justo a exigência da passagem ao legal.

Seguindo nesta compreensão, a justiça carrega consigo a concepção de bem, o que era chamado pelos gregos de ―areté‖, palavra que pode ser traduzida por ―excelência‖. Ademais, alguns preferem traduzir por virtude, principalmente para traduzir, ao lado da excelência, as virtudes cardeais da Idade Medieval. Admite-se que, de fato, ela contribui para a orientação humana, no que se refere aos rumores de uma felicidade plena (RICOEUR, 1995d). A virtude está relacionada à vida boa. Sendo essa a intenção de uma vida boa que, por sua vez, confere à virtude particular da justiça o caráter teleológico. Assim, ―a ação humana recebe um sentido dessa intenção, quero dizer, não só uma significação, mas uma direção; por outro

66 RICOEUR, P. Le Juste, la justice et son échec. In: CAHIER DE L’HERNE. Ricoeur. Paris: Editions de L‘herne, 2004, p. 287-306.

lado, a falta de um consenso sobre o bem faz com que a significação do bom seja incerta‖ (RICOEUR, 1995d, p. 91). A justiça derivada da tradição teleológica se orienta para um fim, enquanto que a derivada da tradição deontológica segue puramente um dever, uma obrigação.

Aristóteles propõe a mesotes (meio-termo), que seria uma posição entre dois extremos. A justiça se celebra a partir da igualdade escolhida entre o excesso e a falta (RICOEUR, 1995d). A partir dessa ideia, o autor expõe que todos os bens que advêm da partilha, da distribuição, da repartição são frutos da justiça. Toda força está em discernir a partir daquilo que é justo, sem que ninguém se sinta ofendido. A sociedade deve sempre, a partir do ideal de viver bem, exigir regras que possibilitem essa boa repartição.

De acordo com Ricoeur (1995d, p. 93), ―a amizade tem diante de si um próximo; a justiça, um terceiro. Assim o outro da amizade é diferente do outro da justiça‖. Acrescenta, ainda, que

a amizade coloca como oposto ao si mesmo um outro que tem um rosto, no sentido forte que Emmanuel Lévinas nos ensinou a reconhecer. A justiça pensada como igualdade coloca como oposto um outro que é um qualquer. Por isso, o sentido da justiça não tira nada à solicitude; ele a supõe, na medida em que considera as pessoas como insubstituíveis. Ao contrário, a justiça acrescenta à amizade a comunidade histórica regida pelo estado e, idealmente, toda a humanidade. (RICOEUR, 1991b, p. 95).

O problema da sociedade moderna é o fato de aplicar a igualdade diante da lei, todavia é a legalidade é o que importa. Diante disso, precisa ser considerada somente a noção justiça distributiva, pois esta age com a proporcionalidade, ou seja, a igualdade não é entre as coisas, mas entre as relações – uma proposta que deve primar na sociedade, principalmente no âmbito político.

Isso significa que o justo nem sempre é bom e que é preciso, então, considerar a sociedade como local em que acontece a justiça. O objetivo deve ser tal que todos tenham e objetivem, cada vez mais, por uma sociedade justa e igual. Sendo assim, pode-se acreditar que a relação do justo com o bom está acontecendo, verdadeiramente. De acordo com Rocha (2008, p.35),

a dádiva capital da ética à moral é, sem sombra de dúvida, a ideia de justo. Esta assume, por um lado a forma de ―bom‖ como modo de amplitude da

solicitude e, por outro lado, a mesma é versada sob a forma de ―legal‖. É com base na preocupação manifestada perante esta ambiguidade que surge a tentativa de extrair todo o apoio teleológico à ideia de justiça e garantir-lhe um estatuto simplesmente deontológico. A aproximação deontológica só pode fixar-se com alguma solidez no campo das instituições, isto porque no âmbito da mesma podem relacionar-se as ideias de equidade e de tradição contratualista.

Essa suposta relação entre equidade e tradição contratualista pode ser considerada na forma de ficção de um contrato social. Este possibilita a passagem de um estado supostamente primitivo para um estado de direito. Dessa forma, conforme se entede, separar o justo do bom é, em última análise, a função principal da ficção do contrato. Além disso, pode supor-se que o princípio ou os princípios de justiça são geridos em razão de um procedimento contratual na filosofia política ricoeuriana (ROCHA, 2008).

Cabe, ainda, saber se o contrato ocupa no plano institucional o mesmo lugar que a autonomia preenche no prospecto fundamental da moralidade. Um dos pressupostos deste trabalho, que se torna importante frisar neste momento, é que não é coerente conferir ao contrato e à autonomia o mesmo estatuto, uma vez que o primeiro só pode ser pensado como uma ficção e a segunda pode ser refletida como um fato da razão, que demonstra, por sua vez, que a moralidade existe. Desse modo, a teoria da justiça deve ser compreendida, conforme Ricoeur (1991b, p.95), por meio de ―uma concepção na qual todas as relações morais, jurídicas e políticas são postas sob a ideia de legalidade, de conformidade com a lei‖.

Para Ricoeur (1991b), Rawls, na tentativa de organizar um campo social, também apresenta dois princípios, e ambos terão a função de articular o viver dentro de uma comunidade. Existe um equiparar-se entre contrato e princípios, em que ambos estão relacionados a um sistema social. Dessa maneira, com a promulgação dos princípios, enraíza-se uma prática da justiça – o que se conflitua com a concepção processual da justiça. E, portanto, fica excluída a concepção formalística da justiça, na qual se posterga unicamente uma questão de situações com caráter de legalidade.

Há um grande embate entre o justo, mais relacionado à justiça, e o legal, relacionado a uma legalidade. A exigência do último segue parâmetros em vista de uma certa incongruência relacionada à justiça, ou seja, o legal caminha com um objetivo inferior ao justo, e isso é evidenciado por intermédio da propagação de uma ―ficção‖ (RICOEUR, 1991b). Está posta a ideia do contrato que, em um plano

político, adquire um valor determinado no que diz respeito a neutralizar os bens, livrando-os de um conflito.

A característica final é que os princípios trazem consigo essa característica de organizar com uma autoridade o meio social, por isso o seu sentido de versarem sobre a regra do ―maximin‖, objetivando-se sobre a possibilidade das oportunidades para os menos favorecidos (RICOEUR, 1991b). A formulação dessa teoria adverte para uma situação em que, por meio da articulação de princípios, pretende-se um ideal característico da sociedade que possui iniciativas. O bem buscado nesse caso torna algo concreto, no sentido de receber uma aprovação em prol de um sentimento originário, o desejo. Isso é diferente da legalidade, pois a sabedoria do amor consiste em algo superior à mera legalidade.

A proposta que Ricoeur sustenta é que todo sujeito possui capacidades suficientes para confiar em sua vida, ou seja, existe desde a mais tenra idade uma especificidade, que é uma graça originária. A existência é algo que orienta o sujeito a dizer sim à vida, e a ideia de amor compatibiliza com a ideia de generosidade. Além do mais, a grata existência deve ser o motivo da generosidade. Dessa forma: ―o ser é vida e desejo e não coisa ou saber: eis a razão por que o nada e o outro67

não são as únicas fontes possíveis da existência ética‖ (ABEL, 1996, p. 25). A questão fundamental diante da existência são as possibilidades que se abrem ao ser, pois a própria existência é uma experiência em meio ao outro. Eis o sentido da existência, pois existe uma relacionalidade entre as pessoas.

É preciso reconhecer que o ser também é desejo. Assim, inclui-se nesse ser uma alteridade, ou seja, um sentido importante que faz haver uma correlação entre o sujeito e o outro. Ricoeur fala do ato de viver em conjunto, pois é preciso abrir-se, partilhar de uma felicidade e, ao mesmo tempo, vivê-la. Essa é uma experiência que precisa ser constantemente alimentada pelo sujeito. A perspectiva da justiça abrange, certamente, alguns pontos essenciais referidos à boa vivência, pois, talvez, o viver correto implique grandes renúncias, que é o que a relação com o Outro também implica. Outro pressuposto deste trabalho é o de que Ricoeur apresenta a ideia de narração, que nada mais é do que o desejo de descobrir-se a si mesmo. Somente se saberá quem se é a partir do momento em que se conseguir penetrar

67 A questão do outro também aparece em Lévinas como sendo a percepção do sujeito perante o outro. A injunção do sujeito ao outro se configura como uma alteridade.

na íntegra do ser. Nisso está o projeto da existência, que até então esta desconhecido.

Essa descoberta encaminha para um pensamento a respeito do bom que se busca no meio social. O bom só é possível quando buscado na sua plenitude. Ademais, o esforço para tal busca precisa ser efetivado em um contexto. Inclusive, como visto anteriormente, as regras precisam favorecer essa busca. Nesse sentido, em Ricoeur, a privação da liberdade é um mal político, tanto que afirma que todos os problemas políticos estão todos relacionados à liberdade. O Estado é fundado na liberdade e, limitando as paixões, tem-se a sua construção. Configura-se, assim, a aprovação do bom que vem engendrado na justiça.