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CAPÍTULO II – A QUESTÃO DA INTERSUBJETIVIDADE

2.1 O ESTABELECIMENTO DA HERMENÊUTICA DO SI-MESMO

Na tentativa de delinear o percurso ricoeuriano para o estabelecimento de suas investigações, a respeito da relação fenomenologia e hermenêutica, faz-se necessário retornar à problemática cartesiana de fundamentação e ―nascimento‖ do cogito. Ricoeur (1991b) entende que essa ambição de fundamentação extrema radicalizou-se de Descartes a Kant, depois a Fichte e, por último, ao Husserl das ―Meditações Cartesianas‖.

A procura por estabelecer algo firme e constante para a ciência levou Descartes a formular a célebre dúvida metódica em que, grosso modo, chegar-se-ia a uma verdade primeira, livre de toda a dúvida. Essa realidade em si ficou marcada na história da filosofia, precisamente, pela famosa fórmula: cogito ergo sum. A procura por algo certo e verdadeiro conduziu Descartes a uma primeira certeza de que se é uma coisa que pensa e, a partir disso, ele conclui: ―penso, logo existo‖. No centro dessa verdade primeira, a de que ―penso, logo existo‖, Ricoeur abre uma pequena fenda que serve de alternativa para se perguntar sobre qual é seu fundamento primeiro, pois ―ou o cogito tem valor de fundamento, mas é uma verdade estéril à qual não pode ser dada uma sequência sem ruptura da ordem das razões, ou é a ideia do perfeito que o fundamenta na sua condição de ser finito, e a primeira verdade perde a auréola do primeiro fundamento‖ (RICOEUR, 1991b, p. 20).

Desse modo, falar de uma filosofia reflexiva é, por sua vez, apresentar os problemas filosóficos nos limites da razão, ou seja, tem relação com a possibilidade de compreensão do sujeito como o ente em si das operações de conhecimento, de volição e de apreciação. Nesse sentido, Ricoeur (1989, p. 37) entende a reflexão como o ato de retorno a si pelo qual um sujeito readquire, na clareza intelectual e na responsabilidade moral, o princípio unificador das operações entre as quais ele se dispersa e se esquece como sujeito. Ao comentar os laços entre reflexão e hermenêutica, Mongin (1994, p. 60) entende que, deslizando do ―dentro‖ da consciência imediata para o ―fora‖ dos objetos e das obras, Ricoeur esclarece que a evidência do cogito é apenas um sentimento que não leva a nenhuma verdade última (CORÁ, 2004).

Outro momento importante, nesse período relacionado à filosofia reflexiva, diz respeito à recusa da imediatez da reflexão. Para se tornar concreta, a reflexão deve perder a sua pretensão imediata à universalidade, até ter fundido, uma na outra, a necessidade do seu princípio e a contingência dos signos por intermédio dos quais se reconhece. Isso implica que a consciência deixa de ser apenas um dado para tornar-se uma tarefa. Essa mudança exige, como pressuposto, a interpretação ou por meio das obras, ou por meios dos signos e dos símbolos que envolvem a pessoa.

A reflexão, como entende Ricoeur (1988c), precisa ser transformada em hermenêutica, ou seja, em interpretação dos signos e das obras que se mostram anteriores ao próprio sujeito. Nesse processo, revela-se uma consciência dirigida ao exterior, como uma tarefa a ser realizada. Segundo Gagnebin (1997, p. 266), ―[...] a ideia de uma compreensão de si e do mundo passa necessariamente – eis uma nova definição da hermenêutica – pela análise dos signos e das obras que encontramos no mundo e que precedem nossa existência‖. Portante, a reflexão não é mais tomada como pura intuição, mas deverá se reconhecer mediante a interpretação e a decifração dos signos da humanidade.

Conforme Corá (2004), a recusa ao cogito cartesiano, como verdade clara e distinta, ocorre, para o autor, porque nele se encerra uma verdade vazia sobre a qual o cogito nada diz em relação à existência. Desse modo, a hermenêutica visa, a partir da compreensão dos símbolos e dos signos presentes nas obras anteriores a nós mesmos, o meio de acesso em que a pessoa reconhece a sua existência como desejo de ser e esforço por existir.

A posição contrária ao empreendimento cartesiano solidifica-se, se acreditar na existência de uma distância entre ―minha‖ consciência imediata (cogito) e ―meu‖ ser real, corpóreo34. Essa demonstração, contudo, não invalida o papel da reflexão como reapropriação de nosso ser, mas reivindica a necessidade, que, para Ricoeur, será o solo fecundo de sua filosofia, de um conhecimento mediado e indireto, por meio dos símbolos, dos textos e das narrativas. Isso possibilita responder o questionamento inicial do estudo: de que modo o ―eu penso‖ se conhece ou se reconhece a si mesmo?

O que está destacado no prefácio de ―Si-mesmo como um Outro‖ é uma estratégia de deixar para todas as filosofias do sujeito um extraordinário exercício ascético, semelhante a uma epoché fenomenológica, ou seja, uma redução da subjetividade ao invés de uma redução à subjetividade. Isso ocorre em virtude do poder de terminar, de dizer e de agir que pode, ainda, erguer-se do cogito --, caniço pensamente de Pascal -- ou mesmo o cogito ferido que coincide com a fragilidade e a facticidade de nossa existência (JERVOLINO, 1998b). Assim, a hermenêutica do si, tematizando uma certa unidade analógica do agir humano e delineando, no modo de atestação, a segurança do si que age e sofre, é colocada para além do orgulhoso saber presente nas filosofias do cogito. É importante ter presente que a hermenêutica do si não termina com uma palavra final e definitiva, mas preserva a questão essencial "quem?" (JERVOLINO, 1996a, p.9).

Ainda, para Jervolino (1996a), a pergunta "quem sou?" é um questionamento sempre inacabado, uma vez que não se termina nunca de tentar responder a essa questão, sobretudo porque a pergunta sobre a identidade, em uma hermenêutica como sugere Ricoeur, pode ser formulada dialogicamente em um intercâmbio entre as diversas "pessoas", "quem sou eu, quem és tu?", mas também "o que dizem que eu sou?". Além disso, a pergunta sobre a identidade pode ser formulada àqueles que estão fora de uma ligação dialógica direta (ou seja, estão fora do eu-tu), com referimento aos que não podem interdialogar, por exemplo, as gerações passadas, as vítimas da história, a toda aquela humanidade que está além da possibilidade de uma relação imediata conosco e com a qual ainda estamos preocupados. Nesse sentido, são valiosos os insights ricoeurianos a esse respeito.

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―Descartes, che si è dovuto confrontare con l'accusa di circolo vizioso nel rapporto fra verità del

cogito e veracità divina, ha, agli occhi del Ricoeur, il merito di aver posto dinanzi alla modernità filosofica i termini dell'alternativa nella quale si imbatte la pretesa autofondativa del soggetto”

Já o problema da experiência do outro em Husserl é tratado de maneira especial nas ―Meditações Cartesianas‖, em que o autor aborda o problema da experiência do outro, do corpo próprio e do corpo alheio. Segundo Michel (2006), a referência fenomenológica relativa ao corpo próprio e a possessividade (mienneté) permitem a Ricoeur preservar a exigência moral e jurídica da responsabilidade individual. Além disso, o autor amplia essa alternativa e a insere numa nova perspectiva, que é a perspectiva do eu, do outro e de um terceiro elemento, que é a expressão do laço social, ou seja, a instituição, que aparece como terceiro mediador entre aquele que fala e o interlocutor.

A respeito da argumentação de Husserl sobre a experiência do outro, Ricoeur adverte que é preciso estar bem atento, pois esse conceito é um recurso usado pelo autor das ―Meditações Cartesianas‖ como resposta ao problema do solipsismo. Para Ricoeur (1989b, p. 287), ―O solipsismo tornou, portanto, enigmático o que se revela como evidente, a saber, que há outros, uma natureza comum e uma comunidade dos homens. Ele transforma em tarefa o que é, em princípio, um facto‖. Dessa forma, o eu e o outro são ainda tomados no enfoque objetivista, ou seja, são apenas uma coisa entre coisas, acontecimento que obriga a consciência a indicar o seu lugar numa ordem das coisas. O que prevalece nessa ordem, segundo Lalande (1996, p. 1054), é que o eu individual de que se tem consciência, com todas as suas modificações subjetivas, é toda a realidade.

Novamente, é o paradigma da linguagem que ajuda e permite compreender o significado das descobertas da fenomenologia, sem qualquer aura de misticismo. Nos seus comentários, principalmente nos textos dos anos de sua confrontação com a psicanálise e com o estruturalismo, Ricoeur apresenta a fenomenologia como uma teoria da linguagem generalizada, em que esta deixa de ser uma atividade, uma função, uma operação, entre outras coisas, para identificar-se com os significados e sinais, semelhante a uma rede sobre o campo da percepção, da ação e da vida. Assim, a fenomenologia pode alargar o espaço de sentido e de significação e, portanto, da linguagem, e, com isso, evidencia-se a tematização da primeira atividade intencional e significativa do sujeito encarnado, perseverante, agente e falante (RICOEUR, 1969b). Para Jervolino (1999), a fenomenologia pressupõe três teses, que são indissociáveis: 1) a significação é a categoria mais englobante da descrição fenomenológica; 2) o sujeito é portador da significação; 3) a redução é o ato filosófico que torna possível o nascimento de um ser para a significação.

Ainda, para o mesmo autor (1999), o que se evidencia é que o terceiro argumento é o primeiro na ordem da fundação. Do ponto de vista da fenomenologia como uma "teoria da linguagem geral" não se deve renunciar ao gesto fundador da redução, que é independente de suas leituras metafísicas e subjetivistas; a redução transmuta toda questão sobre o ser, bem como o sentido do ser "[...] é esta redução que possibilita a ligação com o mundo, na e para a redução, todo o ser é descrito como um fenômeno, como aparece, portador de significado e explicitação‖ (RICOEUR, 1969b, p. 243).

O que precisa ser destacado neste ponto, e que serve de ancoragem para esta tese, é o conceito de explicitação. Por meio dele, é possível articular o projeto de uma fenomenologia hermenêutica e, posteriormente, a articulação da hermenêutica do si-mesmo. Ricoeur reivindica o retorno ao sujeito falante preconizado por Merleau-Ponty, que, na sequência do último Husserl, foi concebido de modo que causasse uma espécie de curto-circuito, queimando o estágio da ciência dos objetivos dos signos. Em vez disso, aceita o desafio "de semiologia" e atravessa a língua como um sistema: império dos signos, a semiótica, para conseguir o que Ricoeur, com Benveniste, chama de semântica, o nível de discurso no qual qualquer um diz qualquer coisa a qualquer um a propósito de qualquer coisa. Enquanto que o sistema é anônimo e não tem um sujeito, o discurso tem uma referência, um sujeito, um interlocutor (JERVOLINO, 1999a).

A esse nível, de acordo com Jervolino (1999a), pode-se repensar também a redução fenomenológica. O tom da cobertura de uma filosofia da linguagem, a redução pode cessar de aparecer como uma operação fantástica ao tema da qual a consciência será um resto, um resíduo, que ocorre pela subtração do ser (soustraction d‟être). A redução aparece antes como o transcendental da linguagem, a possibilidade para o homem de ser outra coisa que uma natura em meio a algumas naturezas, a possibilidade de ele se ligar ao real na designação por meio dos signos (RICOEUR, 1969c). Assim, ―a redução, em seu sentido pleno, é esse retorno a si a partir do seu outro, que faz o transcendental não mais do signo, mas da significação‖ (RICOEUR, 1969c, p. 257). Além disso, depois de uma meditação que atravessa o limiar da semiologia ou semântica, a inauguração ou a invenção de uma vida significante para o ato filosófico da redução é o nascimento simultâneo do ser dito do mundo e do ser falante do homem.

Destaca-se, como clarificação deste tópico, que, ao apresentar, analogicamente, a possibilidade do corpo alheio como a união entre o ego e o alter ego, Husserl sustenta, ao mesmo tempo, que ―o outro é reflexo de mim mesmo e, entretanto, não é estritamente reflexo; é um analogon de mim mesmo e, entretanto, não é um analogon no sentido habitual‖ (HUSSERL, 1997, p. 126-127). Pergunta-se: Por que o outro não pode ser tomado como um análogo no sentido habitual dado pela fenomenologia? A resposta é que o eu, para a fenomenologia, não constitui o outro, mas é constituído por analogia, podendo, a partir desse procedimento, pensar o outro. Uma outra interrogação parece aproximar ainda mais de Ricoeur (1991b, p. 212), ―em que condição esse outro será não uma reduplicação do eu, um outro eu, um alter ego, mas verdadeiramente um diverso de mim?‖. Argumenta Teixeira (2004, p. 248-249)

[...] o gênio de Husserl está em ter mantido o desafio até o fim: com efeito, o cuidado descritivo de respeitar a alteridade do outro e o cuidado dogmático de fundar o outro na esfera primordial de pertença (docilidade ao real e exigência idealista) encontram o seu equilíbrio na ideia de uma apreensão analogicizante do outro, de cujo alcance, porém, é lícito duvidar.

Husserl utiliza o conceito de empatia (Einfühlung), conforme a Quinta Meditação, como forma de ligação, isto é, como forma de unir o que acontece na esfera corporal, em que o corpo do outro pode entrar em parceria, numa união associativa, com meu corpo. No entanto, a ―Quinta Meditação‖ husserliana deve ser considerada como uma escala progressiva para um certo ponto crítico, próximo de uma ruptura: o solus ipse de uma ―egologia‖ sem ontologia. A constituição da transcendência do outro na imanência de minha esfera própria tem a mesma significação decisiva que a passagem da ideia de infinito ―no‖ cogito cartesiano para o ser mesmo ―do‖ infinito fora do cogito (RICOEUR, 1954a). Para escapar da acusação de solipsismo, Husserl usa uma estratégia que lembra a de Descartes, que é a seguinte: a saída para o outro como validação de seu projeto. A comparação entre Husserl e Descartes é usada por Ricoeur como a maneira de ilustrar a problemática para, a seguir, deles se distanciar.

Dessa forma, a ―Quinta Meditação‖ é usada estrategicamente para responder ao solipsismo. Além disso, pode ser considerada como a equivalente e/ou substituta da ontologia que Descartes introduz na sua terceira meditação pela ideia de infinito e pelo próprio reconhecimento do ser na presença desta ideia. Segundo Ricoeur

(1954a, p. 77): ―Descartes transcende o cogito por Deus, Husserl transcende o ego pelo alter-ego‖. Interpretando dessa forma, Ricoeur afirma que Husserl busca numa filosofia da intersubjetividade o fundamento superior da objetividade, o que, por sua vez, Descartes havia procurado na veracidade divina. Logo, se alteridade do outro, ou seja, o outro em segunda pessoa, não pode ser dada no prolongamento do cogito cartesiano e husserliano, só poderá ser posta, como entende Teixeira (2004), no ato pelo qual a razão limita as pretensões do sujeito empírico (Kant). Observa-se, adverte Teixeira (2004), que o limite, nesse ponto, não é uma situação que afeta o indivíduo, mas o meio de conferir valor ao seu eu empírico: este ato de autojustificação justificante, posição voluntária da finitude, pode se chamar indiferentemente dever ou reconhecimento do outro. Acredita-se que isso se paresenta como uma defesa para atenuar as habituais críticas ao formalismo kantiano referente ao conceito de dever.