• Nenhum resultado encontrado

A produção de novas subjetividades através da experimentação

4 Substâncias componentes do programa de oficinas de vídeo experimental no

4.2 A produção de novas subjetividades através da experimentação

Talvez o leitor ainda esteja se perguntando o motivo de as oficinas tratarem da produção de vídeo experimental e não de procedimentos didáticos da produção audiovisual “convencional” com aulas de roteiro, enquadramento, iluminação e direção.

Falando como pesquisadora e recorrendo a experiências passadas pessoais, quando me vi como docente explorando técnicas tradicionais da prática audiovisual, pude perceber os alunos desmotivados. Isso aconteceu principalmente porque os dispositivos de produção de vídeo que dispunham produziam imagens em diferentes definições, com ruído, granulações, som abafado, entre outros fatores muitas vezes vistos como falhas no produto audiovisual.

A atividade acabava tornando-se maçante, pois era desenvolvida em cima de uma expectativa de material que dificilmente podia ser alcançada. O conteúdo, bem como o processo de criação, ficava em segundo plano, para dar destaque à qualidade técnica de definição da imagem e som, que por sua vez deveriam ser o mais asséptico quanto fosse possível. Não estava sendo construído um processo de

72 descoberta do novo, de produção de sentidos, mas sim uma busca por um padrão de imagem preestabelecido.

Intrigada e almejando saber o que se vinha realizando no campo do ensino de Arte envolvendo a prática videográfica, realizei um levantamento de trabalhos com esta temática em cinco anais (2011-2015) dos encontros da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas – ANPAP. Cheguei ao total de doze trabalhos18, que foram encontrados através de uma análise dos resumos de todos os

trabalhos presentes nos referidos anais. Além destes trabalhos, uma análise na mesma direção foi realizada através de artigos encontrados em outras plataformas como o Scielo e Google Acadêmico, donde várias pesquisas foram investigadas, porém não foi possível encontrar propostas que explorassem a produção audiovisual discente no viés experimental.

Foi possível notar que frequentemente em trabalhos acadêmicos que empregam o audiovisual no contexto do ensino formal, o vídeo introduz-se mais como ferramenta exclusiva de exposição de informação, e não como prática audiovisual exercida pelos estudantes. Geralmente, a ação está impregnada de técnicas de produção tradicionais, repletas de regras, ou apresenta o intuito de descontrair a aula e torná-la mais dinâmica. Ou ainda o trabalho fala em análise de vídeos, mas não da produção audiovisual discente. Garcia, Baraúna e Maneschy (2013, p. 1017) são os autores do único trabalho entre os doze artigos da ANPAP analisados que propunha a produção discente de vídeo próxima do viés experimental. Eles afirmam que “os materiais de vertente audiovisual acabam sendo utilizados como meros meios ilustrativos de conteúdos diversos, inclusive em disciplinas que não Arte”.

No intuito de problematizar essa situação, buscando desvelar possíveis potencialidades do fazer audiovisual experimental, é vislumbrado um alargamento da compreensão desse fazer no âmbito do ensino da Arte. Existe a intenção de um desapego em relação ao compromisso com técnicas corriqueiras, a fim de que o estudante possa dispor de maior liberdade possível ao explorar a fartura do leque de suas subjetividades. A produção de vídeo experimental é apresentada como estratégia pedagógica para que o discente seja reconhecido como produtor de sentidos, compondo signos, expressões e socializando seus saberes através de

73 olhares críticos e sensíveis em relação ao cotidiano que integramos.

As substâncias das questões referentes à mídia, observadas no segundo capítulo desta pesquisa, serão problematizadas durante a prática do programa de oficinas. A orientação experimental se coloca como instrumento de resistência aos padrões visuais e sonoros carimbados nos conteúdos midiáticos veiculados pelos poderosos canais da televisão aberta brasileira.

Bourriaud diz que “quando se quer matar a democracia, começa-se arquivando a experimentação e termina-se acusando a liberdade de hidrofobia” (2009, p. 118). Adaptemos a colocação do autor para um dado que ocorre, muitas vezes, na composição do conjunto imagético dos meios de massa, caracterizado por uma aparência asséptica estandardizada que insiste em servir-se quase sempre das mesmas etiquetas e fórmulas prontas, ignorando possíveis inovações e descobertas que produzam sentidos dissonantes em relação ao habitual. Isso acontece em grande parte porque o habitual tem sido confortável para um bom funcionamento da maquinaria econômica, e arriscar-se à novas experimentações parece representar uma ameaça desnecessária nessa lógica.

É possível constatar alguns casos em que a mídia publicitária, por exemplo, inova (muito mais em termos de conteúdo do que de imagem tecnicamente falando) e agrega o discurso da diferença, como é o caso da marca cervejeira Skol. A propaganda Redondo é sair do seu quadrado19 fala sobre a liberdade e diversidade

dos corpos. Contudo, esse processo não acontece de maneira inocente, mas sim em função de uma tentativa da marca de conquistar (ou reconquistar) o público feminino e os públicos que durante vários anos vem sendo ofendidos pela publicidade preconceituosa e machista da marca, que constantemente afirma seu logotipo em cima da imagem do corpo feminino, como foi o caso da campanha Seria assim20.

O autor alerta para o fato de que, se quisermos nos contrapor e fazer ruir o espetáculo sobre o qual nos falava Debord, será necessária a criação de novas maneiras de relação entre os sujeitos. Nessa direção, tenciona-se com as oficinas, o engendramento de relações que propiciem o desnudamento de subjetividades desencadeadas através de uma consciência responsável, crítica, sensível, solidária

19Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CQJSyYH_WUs. Acesso: 11/02/17

20 Disponível em: https://quasepublicitarios.wordpress.com/2010/06/23/anuncios-da-skol/. Acesso:

74 e empática. Nesse sentido, ele afirma que “a finalidade última da subjetividade é a conquista incessante de uma individuação. A prática artística forma um território privilegiado dessa individuação, fornecendo modelizações potenciais para a existência humana em geral” (p. 123).

As oficinas são pensadas como um possível caminho para experimentar novos procedimentos de reorientação dos meandros subjetivos, de modo que valorizem e nutram a cifra da diferença e do desvio como prolífica potencialidade inventiva. Tanto Bourriaud quanto Guattari destacam a importância de uma subjetividade trabalhada sob bases polifônicas e multipolares ao invés de uma mentalidade controlada por artimanhas uniformizadoras, que contribuem para uma sociedade cada vez mais desigual e ríspida. Vertendo dessa perspectiva, Bourriaud (p. 142), com base em Guattari, diz que o bojo ecosófico “consiste numa articulação ético-política entre o ambiente, o social e a subjetividade. Trata-se de reconstruir um território político perdido, visto que foi despedaçado pela violência desterritorializante do ‘capitalismo mundial integrado’”.

No íntimo de uma lógica dessa natureza, as articulações da musculatura subjetiva não se fortalecem nos meneios homogeneizadores, mas sim na exploração dos ruídos, das granulações e das sinuosidades, no ato de aventurar-se em rumos diferentes e fragmentados, na possibilidade de se permitir vitaminar por tônicos ressingularizantes.

Aqui, esse exercício pretende ser colocado em prática por meio dos tendões da arte, que não se tratam de segmentos culturais isolados, mas de um conjunto de ramificações significantes que importam métodos e conceitos e flexionam-se em uma “zona de hibridações” (BOURRIAUD, 2009, p. 133). Os tentáculos do campo artístico, mais especificamente do viés audiovisual, ao contrário dos estímulos capitalistas que sintetizam e empobrecem os territórios existenciais em gaiolas- produto, são empregados nas oficinas em benefício do brotamento de insólitas linhas de existência.