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2 Frames da uniformização da subjetividade na mídia

2.4 Classificação

É comum ter a impressão de que todos temos acesso aos mesmos conteúdos e que os escolhemos livremente, de acordo com nossos preceitos, aquilo que iremos consumir. Porém, segundo Chaui, como poderíamos tomar decisões realmente independentes nesse sentido, se a indústria cultural já se encarrega disto?

A mídia seleciona os bens culturais de acordo com um determinado valor comercial. Assim, conteúdos considerados refinados são veiculados em horários em que grupos específicos estarão assistindo a televisão, durante a madrugada, por exemplo, quando é registrado um número menor de espectadores (dificilmente são trabalhadores da classe popular, que precisam trabalhar na manhã seguinte). Já os materiais desprovidos de uma complexidade para o exercício do pensamento são conduzidos ao público em massa, em horários diurnos ou que terminam antes do início da madrugada.

Então, basta prestar atenção na maneira com os conteúdos são dispostos, de acordo com os horários, por exemplo, para notar que os órgãos que regulam a propagação cultural já fizeram algumas escolhas por nós. Existem também diferentes maneiras como um mesmo fato é retratado em diferentes canais, dependendo de sua audiência.

É possível demonstrar uma fração do que estamos falando ao observar duas sessões sequenciais de filme exibidas pela Rede Globo. No dia 22 de janeiro de 2016, o Domingo Maior, que tem início marcado para às 23:17 horas, exibiu o filme As Bem Armadas (The Heat, 2013), já a Sessão de Gala, que inicia durante a madrugada, exibiu A Caça (Jagten, 2012). O primeiro filme, com direção de Paul Feig, é uma comédia blockbuster, recheada de clichês Hollywoodianos, que foca em momentos engraçados da relação entre duas policiais. Já o outro filme, A Caça, é

38 dirigido pelo renomado Thomas Vinterberg, conhecido por ser um dos idealizadores do Dogma 958, importante movimento cinematográfico. O filme gira em torno de um

professor, o qual, tentando se recuperar do sofrimento causado em função da luta pela custódia de seu filho, se estabelece em uma escola infantil, mas cai em uma perigosa trama judicial por causa da alegação de uma aluna, além de conflitos psicológicos com a família da mesma. Além de tratar de um tema bastante complexo, A Caça foi muito aclamado pela crítica cinematográfica, e venceu inúmeros prêmios. Adorno explica essa dinâmica dizendo que:

Distinções enfáticas, como entre filmes de classe A e B, ou entre histórias em revistas de diferentes preços, não são tão fundadas na realidade, quanto, antes, servem para classificar e organizar os consumidores a fim de padronizá-los. Para todos alguma coisa é prevista. [...] cada um deve se comportar, por assim dizer, espontaneamente, segundo o seu nível, determinado a priori por índices estatísticos, e dirigir-se à categoria de produtos de massa que foi preparada para o seu tipo. (2016, p. 11)

A indústria cultural funciona através da mercantilização da cultura, e para que suas engrenagens continuem funcionando sempre neste sentido, são lubrificadas constantemente com imagens que agradam e seduzem, como no filme As Bem Armadas, por exemplo. Para agradar, elas não devem ser inquietantes, provocadoras e singulares, o espectador não deve ser perturbado ou ter a necessidade de imergir em profunda reflexão para significar em novas direções aquilo que viu.

O sujeito vai receber aquilo que já conhece, que já é sabido que o agrada e acomoda, porém com uma nova farda. Em outras palavras, Adorno (p. 21) diz que “o conceito de estilo autêntico se desmascara, na indústria cultural, como o equivalente estético da dominação” e a imitação é absolutizada. Novos complementos ao inventário cultural já legitimado seriam uma ameaça inoportuna para o sistema econômico tão bem tatuado na epiderme da grande mídia.

Guattari (2001, p. 11) diz que essas ações atuam na constituição de blocos que homogeneízam a subjetividade, através do “serialismo de mídia (mesmo ideal de status, mesmas modas, mesmo rock, etc.)”. O aprimoramento da técnica curva-se

8 Criado através de um manifesto divulgado em março de 1995, o movimento Dogma 95 foi criado

pelos diretores dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg. O manifesto envolve 10 regras de produção cinematográfica que, segundo seus idealizadores, contribuíram para um cinema menos comercial e mais realista, em uma tentativa de retomar aquilo que era feito em termos de cinema antes da exploração industrial.

39 ao chicote do consumo. O refinamento da produção técnica dos conteúdos midiáticos não tenciona levar ao sujeito novas maneiras de expressão provocadoras, mas sim um aperfeiçoamento da aparência, que veste sempre o mesmo padrão de informação e modelos de comportamento.

Esses requintes pretendem o máximo possível de identificação com o consumidor, no intuito de inebriar sua noção de distinção entre a realidade e aquilo que vê na televisão, uma vez que, para Adorno (2016, p. 18-19), “a técnica aperfeiçoada reduz a tensão entre a imagem e a vida cotidiana”.

O desenrolar das imagens escorrega sob a superfície de corredeiras velozes, cujas ondulações não podem ser percebidas demoradamente, pois acima delas já são derramadas outras, e o que enxergamos é uma massa sem asperezas e nivelada. As particularidades pouco importam, desde que estejamos sendo constantemente embebidos nesta matéria lisa.

Segundo o autor alemão, é necessário um ininterrupto aceleramento da percepção e um remodelamento nos modos de observar e compreender, tornando essas capacidades muito mais ávidas por um consumo desenfreado de informações abundantes do que por um exercício mais intenso de reflexão e introspecção. Caso o espectador não queira desnortear-se da experiência que se desenrola diante de seus olhos, seu esforço mental deve ser podado.