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Capítulo 3 – A análise de Cabra marcado para morrer

3.4 A projeção para os camponeses em Galiléia

Cena 14 – 00:15:00 Cena 15 – 00:15:33

Cena 16 – 00:16:30 Cena 17 – 00:17:25

Cena 18 – 00:19:35 Cena 19 – 00:21:02

Esse bloco temático visita a noite de projeção das cenas do Primeiro cabra para a comunidade de Galiléia, assim como as entrevistas dos camponeses sobre o filme. No

alpendre mostrado na cena inicial do documentário, se encontra um projetor e os moradores da região. Os atores do filme são os “convidados especiais para a projeção”. A voz over de Coutinho apresenta seus conhecidos – José Daniel do Nascimento, Brás Francisco, Bia e João Mariano. Plano médio da frente do projetor se acendendo. 258 Corte. Panorâmica partindo da tela de projeção e percorrendo os espectadores. Coutinho explica em over: “O material foi mostrado exatamente como tinha sido filmado, com cenas fora de ordem, com cenas incompletas, cenas repetidas, claquete, etc.” As cenas de 1964 são apresentadas em contraposição as reações do público, que identificam os camponeses nas imagens. É possível apontar a fala de Coutinho sobre as imagens no sentido de legitimação da “captação do real” quando faz a ressalva sobre a “não manipulação” do material bruto – “mostrado exatamente como tinha sido filmado”. Além disso, a metáfora do poder do cinema vem à tona na montagem do cineasta: o projetor aparece sendo manipulado e há um close de seu acender em contraposição ao olhar atento e ansioso dos espectadores259, apontando o cinema também como prática interventora na realidade. Nesse sentido, se explicita seu auxilio na retomada do passado - através da projeção de “vestígios” - e na criação de uma identidade coletiva e pessoal na atualidade. Essa metodologia se desenrolará ao longo de todo o documentário, também envolvendo a apresentação de fotos e a reprodução de entrevistas.

Sobre essa cena da projeção Coutinho assere em over: “O que mais despertava o interesse dos Galileus era a identificação dos participantes da filmagem dezessete anos mais moços.”. O camponês Zé Daniel é identificado pelos expectadores260 e a voz over de Gullar comenta: “Zé Daniel ainda vive em Galiléia. Além de ator, sua casa também foi utilizada como principal locação do filme. A casa de João Pedro.” Essa passagem demonstra uma diferença na utilização da voz over já comentada no filme. Tanto Coutinho como Gullar asserem sobre acontecimentos históricos e questões que estão para além dos contextos imediatos das imagens captadas, e dessa forma, constroem junto às entrevistas, imagens, jornais um determinado discurso. Entretanto, Coutinho comenta constantemente de um lugar próximo da experiência pessoal e sentimental dos camponeses, enquanto a voz de Gullar majoritariamente mantém-se atrelado a questões gerais ou acontecimentos históricos e seus desenvolvimentos.

Na sequência do documentário, Zé Daniel é entrevistado após sua identificação pelos 258 Cena 14 – 00:15:00

259 Cena 14 e Cena 15 – 00:15:33 260 Cena 16 – 00:16:30

expectadores da projeção. As perguntas de Coutinho transitam por dois assuntos: “Você gostou de ter visto o filme sábado?”; “Você ficou crente quando? (...) Que igreja você é?”. O próximo entrevistado é Brás Francisco, também após sua identificação pelos camponeses durante a projeção. O camponês sede a entrevista em frente a sua casa com sua esposa e filho ao fundo.261 Coutinho pergunta: “Você lembrava do filme que você viu outro dia? (...) O que você achou?”. A voz over de Gullar assere: “Brás Francisco da Silva é o único dos atores do filme que prosperou. (...) Dando duro desde os oito anos na lavoura Brás se confessa cansado e quer vender o sítio”. Na sequência, Coutinho pergunta a Brás: “Está querendo vender não?”. Ele responde: “Estou querendo vender mesmo. Não apareceu quem compre, quer comprar?”. Gullar complementa: “Brás, conhecido pelos vizinhos como João, fugiu de Galiléia em 64 e mudou de nome para evitar perseguições. Desiludido com a atividade política, Brás não gosta mais de Galiléia, nem de lembrar as lutas do passado.”

Nota-se aqui, como já debatido, a influência da voz over de Gullar na organização do discurso. Aqui inclusive em uma linguagem próxima a “jornalistica”, quando assere uma afirmação - “quer vender o sítio” - e na sequência traz um depoimento que confirma sua colocação - “Estou querendo vender mesmo”. Interessante também é a pontuação sobre a atual posição diante do passado de Brás. Durante todo o documentário os “destinos” dos camponeses serão sempre resgatados, sendo esse um dos mais emblemático no sentido de “negação” da atividade política e das lutas do passado.

Com exceção dos rápidos planos intercalados do projetor em Galiléia, a entrevista com Zé Daniel é a primeira quebra “cronológica” do documentário. Até aqui, o filme seguia uma sensação de continuidade em relação à captação das imagens, que foi das imagens da UNE Volante às cenas do Primeiro cabra e por fim, ao primeiro encontro com o camponês Virgínio. Entretanto, as entrevistas dessa sequência se dão dias após a projeção em Galiléia, sendo que a montagem do documentário a partir daqui passa não só a ter em conta a cronologia da captação das imagens e entrevistas, mas também se desenvolve a partir de “temas” e da inteligibilidade da narrativa. Nesse sentido, a intercalação da noite de projeção com as entrevistas é uma montagem que tem como prioridade a unidade narrativa que tem como temática a experiência dos camponeses com o Primeiro cabra - “Você gostou de ter visto o filme?”. Essa questão é importante em relação ao “método” e montagem na obra de

Coutinho, e será visitada novamente à frente. 262

O último camponês a ser identificação na projeção é Cicero Anastásio, que está ausente da plateia. Seguindo a “unidade temática” comentada anteriormente, a câmera corta para seu local de trabalho em Limeira, interior de São Paulo. Sua entrevista se dá em sua casa com primeiros planos de sua esposa e filhos.263 Após perguntas sobre sua imigração para o sudeste e sua vida atual, Coutinho questiona: “O que você lembra do filme, que cena você lembra?”. Cicero responde: “(...) cobrindo aquela casa, você perguntando para mim assim, e eu respondi: - O charque está muito caro, como é que a gente vai sobreviver?” O documentário mostra então a cena do Primeiro cabra lembrada por Cicero.264 A voz off do camponês transcrita acima é repetida na banda sonora, agora sincronizando sua fala na atualidade com o seu diálogo no filme. Desde o início dessas lembranças de Cícero, a melodia de um instrumento se faz presente. Quando não há mais voz off ela se afirma como trilha sonora da cena de 1964.

Como já comentado, o uso das imagens da década de 1960 possuem diversas funções no interior do documentário: ora se apresentam como “vestígios” da época – quando o olhar se foca nas características da linguagem cinematográfica, assim como na busca de elementos no “interior das imagens” – como na cena da UNE-Volante que contrapõem os camponeses às petrolíferas estrangeiras265. Em outro momento se ligam à narrativa, auxiliando na construção do enredo do filme, por exemplo, quando Coutinho conta a história de Galiléia e cenas do engenho e dos trabalhos cotidianos são apresentadas. Já a contraposição da cena do Primeiro cabra junto a fala de Cícero, visa construir um diálogo poético e inteligente entre os depoimentos e as antigas cenas, prevalecendo aqui o caráter estético da antiga sequência. Nesse sentido, cenas como essa reelaboram as imagens do Primeiro cabra, montando-as e adicionando uma banda sonora para além da voz over (como diálogos de seu roteiro e trilha sonora) prevalecendo a sensação de assistirmos ao filme de 1964. Nesse caso, mesmo mediada inicialmente pela fala “atual” de Cícero, temos a sensação de continuidade do antigo 262 Apesar das aparições no documentário sugerirem outra ordem, Coutinho comenta em uma entrevista que

na verdade as primeiras entrevistas teriam sido as feitas em São Rafael (com Elizabeth e seus filhos) e somente depois com os camponeses de Galiléia: “A primeira pessoa que filmei foi dona Elizabeth. (...) quando acabei de filmar a Elizabeth, já senti o filme com tal vida que decidi: Vamos direto para Pernambuco. (...) Dai nós fomos para Pernambuco e fizemos aquela cena da projeção”. OHATA, Op. cit. p.p.212-3.

263 Cena 18 – 00:19:35 264 Cena 19 – 00:21:02

265A utilização de outras imagens da década de 1960, como as da UNE Volante, dos comícios das Ligas Campo - nesas e de Francisco Julião também possuem essas mesmas funções no documentário.

filme por alguns segundos, principalmente devido a trilha sonora, que poderia inclusive, ter sido a utilizada na montagem dessa cena no Primeiro cabra.