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Capítulo 3 – A análise de Cabra marcado para morrer

3.3 A retomada de Cabra marcado para morrer: uma nova intenção

Cena 11 – 00:10:37 Cena 12 – 00:11:15

Cena 13 – 00:13:11

Superada a contextualização do Primeiro cabra, Coutinho explicitará os objetivos de seu documentário e partirá em busca do primeiro contato com os camponeses de Galiléia. A voz over de Coutinho assere sobre uma longa panorâmica em cores do Engenho da Galiléia:

“Fevereiro de 1981. Dezessete anos depois voltei a Galiléia para completar o filme do modo que fosse possível. Não havia um roteiro prévio, mas apenas a ideia de tentar encontrar os camponeses que havi- am trabalhado em Cabra marcado para morrer. Queria retomar nosso contato através de depoimentos sobre o passado, incluindo os fatos ligados à experiência da filmagem interrompida, a história real da vida de João Pedro, a luta de Sapé, a luta de Galiléia e também a trajetória de cada um dos participantes daquela época até hoje.”

Objetivos expostos, Coutinho inicia a primeira entrevista do documentário com João Virgínio da Silva, um dos dois camponeses ainda vivos que participaram do processo de desapropriação na Galiléia. O camponês conta sua história em frente a sua casa ao lado de familiares e amigos.255 Como veremos no decorrer do documentário esse formato coletivo das entrevistas é constante, atribuindo um caráter de experiência “comunitário” aos depoimentos. 255 Cena 11 – 00:10:37

Em sua entrevista João Virgínio conta como foi às primeiras reuniões para a formação da Sociedade Mortuária Beneficente de Galiléia. Sobre imagens dos camponeses na época a voz over de Gullar complementa: “Galiléia era um Engenho de Fogo morto, dividido em pequenas parcelas de terra. Nelas viviam 150 famílias de foreiros que cultivavam lavoura de subsistência (...). O aumento do forro também foi uma das causas da fundação da liga.” Na continuidade, João Virgínio conta a importância de Bem Zezé na formação da Sociedade agrícola e pecuária dos plantadores de Pernambuco e a repressão à sindicalização rural naqueles anos: “Que se botasse o nome de sindicato naquela época a gente era naufragado, a gente era morto.” Gullar novamente intervém: “José Francisco de Souza, o Zezé da Galiléia, homem muito respeitado e que tinha sido administrador do engenho durante mais de trinta anos, foi eleito presidente da liga. O proprietário de Galiléia decidiu expulsar todos seus moradores quando percebeu que a Liga não se preocupava apenas com os mortos (...)” Jornais da época anunciam: “Mais de 100 famílias camponesas despedidas do Engenho Galiléia”; “Lutas contra o aumento do forro”.256 Sobre imagens das mobilizações camponesas na região, Virgínio conta a luta pela desapropriação do engenho e a intervenção do recém-escolhido advogado das Ligas camponesas, Francisco Julião.

Interessante notar que a entrevista de Virgínio vem mediada pelos complementos e explicações de Gullar. Se a voz over em alguns momentos traz elementos novos, em outros repete as informações sistematizadas do relato de Virgínio para melhor compreensão. Dessa forma, a voz over caminha no sentido mencionado anteriormente: um narrador impessoal que interfere, complementa e ajuda o relato a ter inteligibilidade narrativa e histórica. Dessa forma, a voz over interfere construindo junto à “fala” e às “fontes históricas” uma narrativa histórica. Por fim, é interessante notar que o uso das manchetes de jornal e fotos aqui é similar ao da sequência anterior, servindo para demarcar cronologicamente os acontecimentos, “ilustrar o passado” e dar veracidade aos “fatos históricos”.

Cabe aqui uma ressalva: é preciso compreender a fala de Virginio junto a interação de Coutinho e sua montagem também como “agente” dentro dessa narrativa. Leituras como a de Menezes apresentada aqui, caminham no sentido da valorização da “manipulação” em detrimento da “realidade do encontro”, deixando de lado que as entrevistas por si só representam “vestígios” e interferem na narrativa fílmica, muitas vezes independente da vontade ou das necessidades do cineasta. É o que se demonstra no momento final da 256 Cena 12 – 00:11:15

entrevista de Virginio, na qual o camponês comenta o debate no parlamento em relação a desapropriação do Engenho Galiléia:

“Um gritava: minha gente, não vamos fazer a desapropriação de Galiléia, porque não é desapropriar uma Galiléia, é desapropriar várias Galiléias, porque dai a vante pegará fogo dentro do Brasil, de ponta a ponta, que ai o pessoal fica viciado, tá vendo, vão sacaniza e vão pedir aos poderes públicos para de- sapropriar as propriedades. Mas felizmente agente ganhemo, os deputados votou com a gente.”

A “fala” de Virginio veio a público pela intervenção de Coutinho – suas escolhas ao longo da entrevista e da montagem – entretanto, carrega consigo o testemunho e as memórias do camponês, não sendo, obviamente, uma “fala imparcial” ou “espontânea”, mas influenciada pelo encontro com o cineasta. Esse trecho da entrevista de Virginio pode ser tomado como “vestígio” pelo historiador para a reconstrução da história das Ligas Camponesas, por exemplo, sendo ela antes uma “fala” mediada pelo encontro e pela montagem, do que propriamente uma “fala” do cineasta. Nesse sentido, o testemunho do camponês aponta importantes elementos para compreender a história social e política da época, como a polarização das forças políticas em torno do debate da reforma agrária, bem como medo das elites políticas e proprietários rurais da generalização dos processos de expropriação. Esse “caráter de vestígio do encontro” se apresenta independente dos “efeitos de verdade” de determinada linguagem cinematográfica, mas sem dúvida, a análise fílmica e histórica deve considerar as “estratégias de verdade” para não atribuir a certa tradição de representação o estatuto de “emanação do verdadeiro”.

Na última tomada dessa sequência, segue-se o primeiro plano de um camponês apresentando sua carteira de associado da “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (Liga Camponesa). 1955”. 257 Na primeira página sua foto, na seguinte os atestados de contribuição. Independente de como essa cena surge, se por um pedido de Coutinho, ou pela apresentação espontânea do agricultor de seu documento, o fato é que ele se coloca na narrativa como “vestígio do passado” e “documento” que atesta a história contada. Seguindo a função comentada, a voz over de Gullar assere o desfecho: “A desapropriação por interesse social de Galiléia foi feita em dezembro de 1959 através de justa e prévia indenização em dinheiro como determinava a constituição. Galiléia tornou-se então um símbolo da força do movimento camponês, mas até hoje os galileus não tem a escritura de suas terras.” Esse trecho, mesmo mesclando o discurso sobre o passado com depoimentos da atualidade, ainda dá contornos de grande importância para a voz over como organizadora das 257 Cena 13 – 00:13:11.

falas e da “narrativa histórica”. O jornal e a carteira de associado se colocam como “vestígios” e “atestadores” da história.