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Capítulo 2. Da ditadura à abertura democrática

2.1 Dos primeiros anos de ditadura ao “milagre econômico”

Na madrugada de 31 de março de 1964 ocorria às primeiras movimentações golpistas de tropas do exército. A quarta divisão de infantaria sob o comando do general Olímpio Mourão Filho marchava de Juiz de Fora para o estado da Guanabara. Estava lançada a sorte do mandato de João Goulart. Antes mesmo do presidente deixar o solo brasileiro para seu exílio no Uruguai, o presidente do senado, Auro de Moura Andrade, declara a vacância de seu cargo, assumido por Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados. Entretanto, a disputa pela presidência não se operava mais na esfera do poder político civil. Os chefes das três forças armadas articulados no Comando Supremo da Revolução exerceriam o poder executivo e lançariam em 9 de Abril seu primeiro decreto ditatorial. Decretava-se um Ato Institucional concentrando poderes na mão da presidência da república atribuindo-lhe a capacidade de cassar mandatos, interromper direitos políticos e modificar a constituição.

Ao contrário do que muitas vezes o senso comum aponta, o golpe militar de 1964 não deve ser entendido como uma ação unilateral dos chefes das forças armadas, nem como uma ação dependente exclusivamente dos interesses americanos na política nacional. Como diversos estudos constatam, a participação civil foi ativa e determinante sob diversos aspectos para a tomada do poder pelos “generais”. É certo também que os setores “golpistas”, apesar de características comuns, possuíam um leque de concepções ideológicas e propósitos variados sobre como gerir o “desenvolvimento nacional”. Enquanto uma parcela queria uma intervenção cirúrgica para afastar Jango e seus aliados radicais, legitimar o golpe institucionalmente e retornar à democracia, outros setores advogavam a intervenção militar para erradicar o comunismo e o varguismo por completo, sem problemas com o uso da força e da exceção por tempo indeterminado. Entre os civis e militares também havia divergências sobre o modelo econômico a ser implementado: de apoiadores de um Estado interventor e centralizador da economia e da vida política, a adeptos de um projeto liberal baseado no Estado diminuto - esse último pensamento forjado e divulgado principalmente através da ESG e do complexo IPES/IBAD. Dessa forma, como aponta o historiador Daniel Aarão, a ditadura nunca foi “una”, mas “vária”, com disputas desde sua gênese, tendo como marco o “hibridismo”: uma combinação de atos institucionais, configurando um estado de exceção, e o respeito pela fachada legal de um regime constitucional liberal: a perspectiva de destruir o

varguismo e o comunismo, presentes no primeiro governo, liderado por Castello Branco, combinada com a tentação de manter o Estado forte, intervencionista e regulador, evidente desde a posse de Costa e Silva. 119

Com a “linha dura” e o “liberalismo” se afirmando no imediato pós-1964, as primeiras diretrizes valorizam a ortodoxia financeira em conformidade com as políticas do FMI e do liberalismo internacional, assim como de aproximação diplomática e militar com o governo americano. Em nome do saneamento financeiro e da contenção da inflação era necessário cortar os gastos públicos, o crédito e arrochar os salários. Entretanto, apesar da retórica não intervencionista, o Estado não se eximiu de fomentar a economia e manter sob controle seus rumos através de subsídios, a ação de estatais e o monopólio de produtos e serviços. 120

Nos primeiros anos de ditadura militar os setores adeptos de uma “limpeza” profunda na política nacional, sem problemas na utilização de métodos de exceção e truculentos, ganham força e recebem a alcunha de “linha dura”. A repressão atinge as organizações ligadas a projetos de esquerda e lutas sociais como a UNE, a CGT, as Ligas Camponesas, grupos católicos de esquerda como a JUC e a AP, assim como o PCB. Milhares de pessoas são presas irregularmente e a tortura generalizava-se. Com as restrições do Ato Institucional n.2 121, relativo à criação de novos partidos, parte da oposição ao regime se organiza “por dentro” sob a sigla do MDB. Junto a esse partido, outros setores faziam uma “oposição moderada” e defendiam o retorno à democracia de forma pacífica, sendo o caso da Frente ampla 122, setores da igreja, liberais e políticos civis golpistas descontentes ou perseguidas pelo regime. Os militantes do PCB que conseguiram fugir da repressão articulam uma reunião de seu comitê central em maio de 1965 e reestruturam sua linha de atuação política para o “frentismo” pelas liberdades democráticas e a participação ativa nas limitadas eleições possíveis durante a ditadura.123

119 REIS, Ditadura e democracia, 2014. p.52.

120 LUNA, KLEIN. Mudanças sociais no período militar. In: REIS. A ditadura que mudou o Brasil. 2014. p.p.94-

6.

121 Nas eleições diretas para governador em1965 os partidos de oposição aos militares elegem 5 dos 11

governadores, o que demonstra sua expressividade. A fim de contê-los os militares decretam o AI.2, extinguindo todos os partidos e criando uma cláusula de barreira: era necessário ao menos 20 senadores e 120 deputados federais para a legalização de uma sigla. Na prática, isso inviabilizou a existência de algum partido para além do ARENA (ligado aos militares da situação) e o MDB (de oposição).

122 Nos primeiros anos de ditadura, uma série de políticos de direita e conhecidos golpistas se desencantam com

os rumos políticos do regime. Carlos Lacerda, vendo suas pretensões eleitorais se acabarem em 1966, lança a Frente Ampla nesse mesmo ano. A Frente contará com participações ilustres e contraditórias como a de Juscelino Kubitschek (cassado em 1964 e exilado em Lisboa) e a de João Goulart (exilado em Montevidéu). A Frente é proibida em 1968.

Apesar da inflação ter reduzido seus índices pela metade nos primeiros anos do regime militar, estava longe de ser o ideal, gerando insatisfação na opinião pública e na população.124 Além disso, a “limpeza” também alcançava setores liberais, inclusive mandatos de políticos que apoiaram o golpe militar. O descontentamento com o regime também se demonstrava através dos movimentos sociais, como as passeatas organizadas pelas entidades estudantis na ilegalidade. No dia 26 de junho de 1968 a insatisfação culminou na “passeata dos cem mil” no Rio de Janeiro. Inicialmente organizada a partir das reivindicações estudantis, ganha contornos mais amplos com a participação de intelectuais, artistas e categorias de trabalhadores. O movimento operário entrava em cena em sua primeira greve desde o golpe, com mobilizações por reivindicações salariais em Contagem e Osasco. Apesar dessas mobilizações não ganharem uma articulação nacional e capacidade de questionar o regime e as políticas financeiras de arrocho salarial, demonstrando que a sociedade não era toda apática a situação do país, mas se opunha com reivindicações ainda que de forma fragmentada.

A conjuntura de contestação ao regime a partir do frentismo político e cultural, de grupos guerrilheiros e dos movimentos sociais, ainda que enfraquecidos e fragmentados, demonstra que para se sustentar seria necessário aos militares serem mais “enérgicos” com as oposições. Utilizando como justificativa a recusa do Congresso em cassar os deputados Márcio Moreira Alves e Hermano Alves (ambos do MDB) após declarações “ofensivas” e “intoleráveis”, o Ato Institucional n.8 é decretado.125 O ato concentrava e ampliava ainda mais o poder do presidente da república e o caráter de exceção de suas funções, ampliando “legalmente” a possibilidade de repressão aos movimentos sociais e as vozes de oposição.