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A proletarização e a precarização do trabalho docente

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2.2 O tempo na ação docente

2.2.1 A proletarização e a precarização do trabalho docente

Os estudos e as denúncias da proletarização do trabalho docente são de longa data. Já na década de 1980 importantes educadores integrantes da área de trabalho e educação no Brasil, como, Bruno (1996), Enguita (1991), Nunes (1990), dentre outros, por meio de suas formulações teóricas e de sua militância no meio acadêmico-científico, têm se colocado radicalmente contra a precarização do trabalho docente. O trabalho de Andreza Barbosa (2011) reforça a tese de precarização ao admitir que o trabalho docente esteja incluído no âmbito do capitalismo e compartilha de sua lógica e de suas contradições.

O processo de proletarização e precarização do trabalho docente foi agravado pela adoção das políticas neoliberais, que atingiram vários aspectos, dentre eles a forma de gestão pública. O Estado ─ em todas as esferas, federal, estadual e municipal ─ não realizou concurso público, e as vagas que foram surgindo eram preenchidas via contratos temporários e terceirizados. Outro fator significativo é que o governo não repassou aos salários as perdas inflacionárias. Os professores efetivos que permaneceram no quadro de funcionários submeteram-se a extensas jornadas de trabalho para conseguirem sobreviver e, por medo de perseguição política, afastaram-se dos espaços de lutas e reflexões, contribuindo para a fragilização dos sindicatos. Retomaremos a discussão sobre esse ponto na terceira seção da tese.

As pesquisas realizadas por Bruno (2011) confirmam esse entendimento e apontam a baixa produtividade como resultado da precarização. Para a autora,

Intensificar o trabalho do professor, aumentar a jornada e reduzir o valor da sua força de trabalho por meio de baixos salários, são mecanismos típicos da mais-valia absoluta. Historicamente, isso gera apatia e desinteresse dos docentes por seu trabalho, o que, por sua vez, agrava o quadro de baixa produtividade e compromete ainda mais a qualidade do ensino, impedindo o recurso à mais-valia relativa, num círculo vicioso que só agrava o quadro geral. (BRUNO, 2011, p. 559).

A conclusão a que chega Bruno (2011) reafirma a compreensão de Bernardo (1993, p. 10) de “que a definição de trabalhador produtivo, ou seja, aquele que produz mais-valia, nada tem a ver com a eventual materialidade do produto, nem com as características peculiares da sua atividade”. A produção do trabalho docente está presa a um modelo de gestão que se organiza de modo a controlar o trabalho docente, retirando-lhe o domínio sobre seu próprio tempo.

Bernardo (1998) entende que o grande feito de Marx, de ordem epistemológica, consistiu em transportar para o quadro das concepções econômicas aquelas preocupações com que se havia deparado no quadro da filosofia, para o qual fez uso de novos objetivos e métodos.

Para tanto, a compreensão do termo trabalho passa a ser de processo que é manifestado como tempo utilizado em seu decurso. Bernardo (1998) retoma Marx para explicar como acontece esse processo, o exercício do trabalho expresso no tempo:

Esta é uma questão indispensável para se compreender o modelo da mais- valia, que não opera nem com trabalhadores, entendidos enquanto pessoas, nem como produtos, entendidos enquanto coisas ou serviços específicos, mas somente como tempos de trabalhos, despendidos por uma força de trabalho e incorporados em algo. (BERNARDO, 1988, p. 7).

Esse tempo de trabalho consiste em um processo internamente repartido. Esta divisão interna, supondo a união indissolúvel de seus termos, pessoas e produtos, é a exploração que recai sobre o controle do tempo do trabalhador que não usufruiu dos objetos ou dos serviços que produz, ou seja, sobre o exercício de seu tempo. Assim, a mais-valia é explicada por Bernardo (1988, p. 7-8): “o tempo de trabalho que os trabalhadores são capazes de despender no processo de produção é maior do que o tempo de trabalho que eles incorporam na sua própria força de trabalho”. O autor complementa: “[...] O tempo de trabalho, e portanto a mais-valia, a ele indissociavelmente ligada, deixaram de ser conceitos estruturantes do modo de produção capitalista e foram relegados ao estatuto de modalidades técnicas, possíveis de serem empregados em qualquer circunstancia” (BERNARDO, 1988, p.8).

Em relação ao trabalho escolar, a reprodução de mais-valia pode ser compreendida a partir de Bruno (2011, p. 557):

[...] um aumento na produtividade do trabalho escolar, tanto do aluno quanto do professor, reduz o volume de capital variável necessário à formação das novas gerações de trabalhadores, pode contribuir para a expansão da mais- valia, ou, inversamente, uma redução do trabalho de ambos pode comprometer essa expansão.

Nas últimas décadas os capitalistas encontraram no setor educacional um espaço fértil para a obtenção de lucros, e muitos serviços foram automatizados com tecnologias inteligentes. Os valores incorporados nesses serviços aumentaram a exploração da mais-valia relativa. O estado/gestor, amparado na teoria administrativa da qualidade total, entendeu que era necessária a introdução dessas tecnologias no espaço escolar, precisamente na sala de

aula. Todavia, o que se pretendeu buscar foi a redução do tempo de trabalho dos professores, priorizando apenas a reprodução do conhecimento. Trata de reforçar o tecnicismo e a busca do capital, substituindo o trabalho vivo por trabalho morto.

Mesmo reconhecendo o protagonismo dos sujeitos envolvidos na ação de resistência, não se pode negar, principalmente na educação básica, que a escola tornou-se a instituição principal de formação/qualificação dos jovens. Porém, os capitalistas “ao fazer com que sejam produzidos trabalhadores, estão a produzir um produto de duplo efeito, um produto que é produto e que vai ser produtor” (BERNARDO, 1989, p. 8). O produto e o produtor são social e historicamente produzidos, o que significa dizer que esse processo não é estático tampouco homogêneo, mas marcado por contradições e conflitos expressos nas variadas formas de resistência, tanto por parte dos profissionais da educação/formadores quanto dos alunos em formação.

O processo de produção sofre transformações no decorrer do tempo, como é possível constatar nas reformas educacionais realizadas na década de 1990 na América Latina e evidentemente também no Brasil, que sofreram influências externas e foram orientadas sob um duplo enfoque para a formação dos trabalhadores: “a educação dirigida à formação para o trabalho e a educação orientada para a gestão ou disciplinação da pobreza” (OLIVEIRA, 2004, p. 1.131). Isso nos leva a entender que temos educações com qualidades e objetivos diferenciados. A formação para o trabalho destina-se a produzir trabalhadores com determinada qualificação para fazer uso das tecnologias voltadas a atender um determinado contexto sócio histórico.

Bruno (1996, p. 92) declara que

a qualificação diz respeito à capacidade de realização das tarefas requeridas pela tecnologia capitalista. Esta capacidade pressupõe a existência de dois componentes básicos: um muscular e outro intelectual, que têm sido combinados de diferentes formas nas sucessivas fases do capitalismo e nos diversos tipos de processo de trabalho. Neste sentido, diria que é qualificada aquela força de trabalho capaz de realizar as tarefas decorrentes de determinado patamar tecnológico e de uma forma de organização do processo de trabalho. Isto já confere ao termo temporalidade e relativiza seu conteúdo, à medida que em cada estágio de desenvolvimento social e tecnológico e em cada forma de organização do trabalho, novos atributos são agregados à qualificação e novas hierarquizações são estabelecidas entre eles.

Nem todos que vivem do trabalho serão qualificados, uma vez que, na perspectiva do capital, muitos terão acesso ao trabalho precarizado e temporal e outros vão compor o exército de reserva, os desempregados, que têm por função estabilizar ou até mesmo diminuir os

salários. Para eles foi reservada a educação orientada na perspectiva da gestão ou do disciplinamento da pobreza, que tem a escola, segundo Libâneo (2008), como espaço e tempo de convivência e sociabilidade do acolhimento social.

Para Gentili (1996), tal orientação tem por base a equidade, explicação neoliberal20 de que nem todos são capazes de se apropriar dos conhecimentos científicos, ou seja, de que cada um tem suas possibilidades individuais. O autor argumenta também, nessa mesma direção, que o acolhimento e a sociabilidade também carregam em si conteúdos a serem apreendidos, preparando as pessoas para conviverem disciplinadamente em harmonia, visando à manutenção da ordem vigente.

Para Oliveira (2004, p. 1134-1135),

o trabalho docente não é definido mais apenas como atividade em sala de aula, ele agora compreende a gestão da escola no que se refere à dedicação dos professores ao planejamento, à elaboração de projetos, à discussão coletiva do currículo e da avaliação [...]. A discussão acerca da autonomia e do controle sobre o trabalho é o ponto fulcral. Assim, a profissionalização aparece nesse contexto como uma saída defensiva dos trabalhadores da educação aos processos de perda de autonomia no seu trabalho e de desqualificação no sentido apontado por Braverman, ou seja, o trabalhador que perde o controle sobre o processo de trabalho perde a noção de integridade do processo, passando a executar apenas uma parte, alienando-se da concepção.

Em alguns casos, o que se apresenta como auto alienação pode ser entendido como forma de resistência, às vezes não explícita, mas que se configura na negação de si mesmo, circunscrita ao individualismo dos aturdidos e encantados com as possibilidades da vida online.

O trabalhador precarizado dentro das escolas tem seu tempo real pedagógico delimitado segundo as possibilidades de substituições dos professores efetivos devido a problemas de saúde e gravidez, licenças para aperfeiçoamento, aposentadoria de docentes efetivos ou mesmo à falta de concurso. Cada ente federado se encarrega de encontrar o caminho a trilhar e a nomenclatura a ser utilizada por esses docentes, bem como a definição do tempo pedagógico e de seus correlatos (planejamento, reuniões diversas, avaliações, dentre outros).

20

“Neoliberalismo é um complexo processo de construção hegemônica do capital. [...] é uma estratégia de poder que se implementa em dois sentidos articulados: por um lado, através de um conjunto razoavelmente regular de reformas concretas no plano econômico, político, jurídico, educacional... Através de uma série de estratégias culturais orientadas a impor novos diagnósticos acerca da crise [do capital] e construir novos significados sociais a partir dos quais legitima as reformas neoliberais” (Gentili, 1996, p. 9). Nesse modelo, o estado implementa amplas políticas de financiamento para o capital privado e traça estratégias e políticas de ajustes sociais, o que significa menos recurso para a educação, a saúde, a moradia, o transporte coletivo etc.

Tal situação caracteriza a desproteção social a que os professores da educação básica da Rede Pública Municipal (RPM) têm sido vitimados. Vejamos a que ponto chega a situação dos professores do país, até mesmo os de São Paulo, o estado mais rico da federação, que, no entanto, possui 57 mil professores contratados, sendo que 23% do quadro possui contrato temporário21, precário, sem direito a vale transporte e refeição ou fundo de garantia e, portanto, sem direito a salário desemprego. O estado de São Paulo possui o maior contingente de professores, e, apesar de ser um estado rico, os salários desses profissionais são apontados como baixos há algum tempo. Um levantamento feito pelo jornal A Folha de São Paulo, em abril de 2010, aponta o estado na 14ª colocação entre os 27 estados brasileiros no ranking de salários dos professores da educação básica.

Esse quadro caótico, de péssimas condições econômicas, sociais e culturais, em que os professores da educação básica da Rede Pública Municipal estão submetidos, fragiliza todo o processo educacional. A escola enquanto instituição pública também fica enfraquecida perante a sociedade. Hélio Fernandes e Orso (2013, p. 9 e 12) enfatizam que

a pauperização do trabalhador conduz à precarização das suas condições econômicas, sociais e culturais acarretando prejuízos para a manutenção da sua própria vida e de seus familiares e a precarização do trabalho, por sua vez, acarreta a pauperização do trabalhador em sua condição de proletário. [...] Ou seja, a precarização, a pauperização e a proletarização caminham juntas e se inter-relacionam. A precarização docente liga-se à pauperização e vice-versa e, ambas, articulam-se à proletarização.

Essa realidade de desproteção social da categoria professores/as é tamanha que os/as trabalhadores/as domésticos/as, no mês de maio de 2013, foram uma das últimas categorias a conquistar direitos sociais trabalhistas, restando ainda, fora destas conquistas, os professores com contratos temporários (FERNANDES, M.; CARNEIRO, 2013)

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