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4.4 Matriz comparativa da ajuda chinesa versus ajuda tradicional

4.4.2 A promoção da democracia e o princípio da soberania

Desde 1991 que os doadores têm privilegiado como critério para a concessão de ajuda ao desenvolvimento, a implementação de um regime político democrático no país recetor, a par de boas práticas de governação e um baixo índice de corrupção. No entanto, após um aumento da ajuda, condicional ao critério da democracia no período posterior à implosão da União Soviética, os doadores demonstraram menos sensibilidade a critérios de luta contra o aumento da corrupção ou de isolamento de governos golpistas, autoritários ou desrespeitadores dos direitos políticos na concessão da ajuda (Easterly e Pfutze, 2008). Segundo os autores, como referido, cerca de 80% da ajuda é direcionada para países com restrição ou total limitação de liberdades políticas, fator que talvez se possa explicar pelo facto dos países mais pobres (que os doadores devem privilegiar) tenderem a apresentar regimes autoritários.

O critério da democracia tem sido secundarizado, quer pelos doadores, quer pelos próprios países africanos. Neste contexto, um aspeto do denominado “modelo chinês” que tem sido particularmente apelativo aos líderes africanos, em particular aqueles que lideram regimes mais repressivos é o facto de ” veicular a ideia que refuta o ponto de vista de que a democracia é uma precondição para o desenvolvimento” (Marks, 2008:4).

A onda de protestos políticos iniciada no norte de África em Dezembro de 2010, posteriormente disseminada a outros países árabes trouxe visibilidade a regimes políticos como o caso do Egito e da Tunísia que, apesar de formalmente serem democracias, eram efetivamente controlados por presidentes com poderes absolutos, exercidos de forma despótica, orientados para o enriquecimento pessoal, a par da inexistência de políticas económicas e sociais destinadas a gerar oportunidades económicas para a população. Estas reivindicações recolocaram em questão os regimes políticos democráticos em África.

Numa conferência sobre o futuro da Parceria Estratégia Europa-África, um advogado ativista defensor dos direitos humanos no Zimbabwe222, sublinhava que a Europa, devido ao seu relacionamento histórico com os países africanos, mantinha um papel de referência e de modelo (yardstick) quanto a formas de governação e ao papel conferido às instituições. Deste papel decorria segundo esse interlocutor, a obrigação de agir em consonância, nomeadamente através do corte de relações diplomáticas e de restrição dos fluxos de ajuda,

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Gagwa, Arthur (2014) Ponto de situação sobre a evolução da parceria estratégia Europa-África, conferência Europa-África: que futuro comum? Fundação Gulbenkian, 12 de Março.

162 em caso de desrespeito nítido por parte dos países recetores africanos, dos direitos humanos, de valores democráticos ou da suspensão do estado de direito. O crescimento das economias africanas na última década e o interesse nos recursos naturais do continente têm alterado a natureza e o conteúdo das relações dos países doadores europeus em África. Esta alteração de conteúdo tem sido acicatada pelo elemento competitivo da emergência das relações de cooperação económica e financeira da China em África. Segundo a diretora do Open Society Institute223:

“The EU interest in Africa is ever more commercial, it is an investment zone, and because of this the human rights bar has been lowered. Some say the cooperation has to be realistic and this means not letting China win the competition. But realistic does not have to mean resignation in what concerns human rights”.

Num contexto de crescimento económico em África desde o novo milénio e face à aparente alternativa apresentada pela China de um modelo de crescimento sem democracia, tem ganho preponderância, a ideia de que a democracia e os direitos humanos são elementos restritivos do crescimento económico, um aspeto que segundo Manji e Marks (2008), recolhe larga audiência entre dirigentes africanos.

A “aparência de democracia”224 tem sido mantida, à custa da replicação de

determinados predicados, como a realização de eleições multipartidárias, mas com a competição na arena política de apenas um partido, com o poder a ser exercido de forma autocrática, sem oportunidade para a expressão do descontentamento popular ou da oposição política. Ainda no contexto da reconstrução do Estado (statebuilding) segundo (Reilly, 2013), o processo eleitoral, ainda que considerado uma etapa essencial da legitimação da autoridade do governo, tem tentado corresponder a objetivos demasiado ambiciosos, com graus de sucesso variáveis. Segundo o autor, o processo eleitoral agrega em simultâneo o objetivo da transição do conflito violento para a paz e a transição para um regime político democrático, enquanto se tenta mobilizar a sociedade para resolver as disputas através de um processo político competitivo e não violento.

A realização de eleições em África é muitas vezes detonadora de tensões e conflitos sociais, levando ocasionalmente à irrupção da violência. Este facto deve-se à existência de clivagens profundas na sociedade e ao facto do processo eleitoral ser realizado numa etapa

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Martinnelli, M (2014) Ponto de situação sobre a evolução da parceria estratégia Europa-Africa, Conferência Europa-África: que futuro comum? Fundação Gulbenkian, 12 de Março.

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Esta denominação foi sugerida por um dos entrevistados E5, ao referir-se ao regime político angolano, e tomámos a liberdade de aplicá-la ao contexto mais abrangente da democracia em África.

163 muito precoce do processo de recomposição política e efetivamente o processo eleitoral decorrer com irregularidades (Reilly, 2013)225.

A ajuda chinesa privilegia, como referido no Quadro 4.2, o respeito pela soberania e pela não interferência nos assuntos internos dos Estados. Este é um princípio fundacional que preside ao estabelecimento da República Popular da China em 1949. Consagrados, como referido nos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica enunciados em 1953, pelo primeiro-ministro Zhou Enlai como princípios orientadores da política externa chinesa, foram posteriormente mantidos e reconfirmados nos documentos referentes à cooperação e à política da China para África.

Entre 1839, início da primeira guerra do Ópio e grosso modo até ao estabelecimento da RPC, a China viveu a fase final do período imperial, com a dinastia Ming, como referido no capítulo anterior, por uma série de três encontros bélicos com o Ocidente e pelas invasões japonesas, que resultaram na derrota militar dos exércitos chineses e na imposição de sanções e indemnizações a pagar pela China. A impotência tanto do sistema imperial como do sistema republicano a partir de 1909 (Qin, 2010) em fazerem face às exigências das potências ocidentais, resultou num sentimento difundido de insatisfação e de revolta entre a população contra a presença e influência estrangeiras no território, que esteve na origem da Guerra dos Boxers em 1898226.

A Guerra dos Boxers aliou uma força multinacional integrando elementos do exército inglês, americano, alemão, russo, francês e japonês, que interveio diretamente no território chinês, terminando com a invasão e saque de Pequim e o pagamento de pesadas indemnizações de guerra pela China aos países envolvidos.

Estas intervenções ocorridas entre 1839 e 1949 marcaram um período que mais tarde ficou conhecido como o “século da humilhação chinesa” (Kauffman, 2010) caracterizado por intervenções estrangeiras e anexações de território pelo Japão, que só

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É habitualmente referido o caso do Quénia como um exemplo em que a realização de eleições em 2007 resultou na irrupção da violência em larga escala, relacionada com a conflitualidade étnica e a fraca representatividade de alguns municípios junto do governo central. A falta de transparência do processo eleitoral e a inexistência de uma oposição organizada com capacidade de representar uma parcela significativa da população do país são apontados como elementos importantes do processo de reforma política no país. Uma circunstância impeditiva do processo de reforma política é a acusação ao presidente eleito em 2013, Uhury Kenyatta, de represálias sobre a população, após as eleições de 2007, estando requerida a colaboração das autoridades quenianas para que o atual presidente seja julgado no Tribunal Penal Internacional.

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As Guerras do Ópio, entre 1839-42 e entre 1856-1860, resultaram da decisão chinesa de fechar os portos imperiais chineses à comercialização de ópio levada a cabo pelos ingleses. O desfecho da primeira guerra terminou com a destruição de grande parte da armada chinesa e o saque de Guangdong e Nanjing e foi especialmente punitiva para a China.

164 terminaria com a tomada do poder pelo regime comunista em 1949. Segundo Kane (2001) a independência do regime e a autonomia internacional são princípios basilares da política externa chinesa, que se sobrepunham ao internacionalismo preconizado também por Mao, persistindo nas distintas lideranças após Mao. Em junho de 1989 o regime chinês, ao ordenar a repressão da revolta de Tiananmen, segundo o sinólogo Perry Link: “fechou para sempre a possibilidade de uma mudança do tecido político na China” (Público 04-06 2014). No rescaldo de Tiananmen a democracia foi apresentada, como um sistema político desadequado às circunstâncias particulares chinesas (guoqing), uma posição que é invariavelmente mantida até ao presente.