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1.2 A origem sociológica do conflito em Angola

1.2.1 Teorias do conflito

Cramer (2006) refere o papel histórico e progressivo das guerras no desenvolvimento do sistema tributário na Europa nos séculos XVII e XVIII, assim como no desenvolvimento do

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No original citado de Margaret Anstee, por MacQueen (1998), representante designada pelo Secretário-Geral das NU, para mediar o Protocolo de Lusaka em 1994 pode ler-se solução “quick fix”.

33 sistema financeiro e de produção em massa nos Estados Unidos16. As guerras civis no mundo em desenvolvimento, após a II Guerra, têm sido encaradas, segundo este autor, como “irracionais” e como um retrocesso de desenvolvimento (“development in reverse”) caracterizado por uma “animosidade primordial” com origem numa conceção essencialista de etnicidade, tribalismo, identidade, que resulta da localização destes países num estágio de pré-modernidade. Cramer (2006) refuta esta visão e refere que as guerras em países em desenvolvimento podem ser observadas a partir do mesmo nível de análise que conflitos surgidos noutros momentos históricos, ou seja têm origem num determinado contexto de economia política, em que um determinado grupo social pretende alterar a ordem existente, por outra mais favorável aos seus interesses.

Paul Collier (1999) sistematiza pela primeira vez a explicação para os conflitos com base nas motivações económicas dos beligerantes. Segundo este autor, as probabilidades de conflito aumentam em países com uma economia dependente da exportação de produtos primários, com prevalência de população jovem (entre os 15 e os 24 anos) com baixos índices de escolarização e com um nível de crescimento económico baixo ou inexistente. A partir de uma análise elaborada entre 1960 e 1995 na maioria dos países onde ocorreram guerras o autor estabelece uma matriz de previsão para a ocorrência de conflito. Nestes países, segundo Collier (1999), são maiores as probabilidades que o contingente de jovens desempregados ou inativos e desfavorecidos em termos de qualificações se tornem rebeldes, organizando-se em golpe de Estado ou rebelião organizada contra o governo em exercício, com vista à apropriação de recursos materiais ligados ao poder político. Segundo Collier (2007), em países com ausência de expetativas relativamente ao futuro (refere o caso da Serra Leoa), a guerra tem um custo de oportunidade baixo relativamente à paz e a pertença a um movimento de insurgentes é motivada pela falta de esperança e pela ideia da inexistência de represálias17. Collier fez uma análise dos conflitos ocorridos ao longo de trinta anos no período temporal acima descrito, baseado na regularidade de eventos, providenciando um modelo de previsibilidade de ocorrência de conflitos por inferência estatística, tendo por variáveis as oportunidades económicas dos jovens, o número de anos de frequência de escola pela população jovem, a dependência da exportação de recursos

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E acrescenta ainda na afirmação de um papel económico para a mulher, no contexto das guerras europeias do século XX.

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Collier refere mesmo que face ao clima de desesperança e de oportunidades, os jovens não têm nada a perder com a pertença a um movimento de insurgentes. Liga também a falta de oportunidades e a desesperança às possibilidades de manipulação psicológica por parte dos líderes dos movimentos sobre os recrutados (como no caso das crianças-soldado na Serra Leoa). Considera assim que na presença dos ambientes descritos, será fácil constituir milícias/grupos de insurgentes em países em desenvolvimento.

34 naturais e um crescimento económico negativo. A variável com maior poder explicativo na ocorrência do conflito seria, segundo este autor, a elevada dependência da exportação de recursos primários. A exportação de recursos primários é definida como uma variável da disponibilidade de recursos facilmente apropriáveis (“lootable”), que são os produtos com maior incidência de impostos, sendo, portanto um alvo de predação.

Collier (2007) define desta forma que o conflito ocorre por motivações económicas, ou seja pela ganância (“greed thesis”) de grupos rebeldes, em contextos caracterizados pela existência de recursos naturais facilmente apropriáveis, pela carência de oportunidades económicas e pela ausência de crescimento económico. Collier afasta desta forma explicações para o conflito baseadas em ressentimentos (grievances) decorrentes de contextos históricos e políticos de oposição étnica ou de desigualdade18, classificando-os como artifícios utilizados pelos movimentos para granjear maior número de recrutados ou para lograr maior apoio internacional. Berdal (2009) refere a novidade de Collier ao introduzir a análise das agendas económicas como causas de conflito, apesar de várias críticas de caracter metodológico19 e empírico serem suscitadas pelo trabalho do autor, nomeadamente a escolha e a utilização de variáveis e erros de codificação, que colocavam em causa a coerência dos dados e o alcance das conclusões apresentadas20. O método estatístico apresentado por Collier (1999) para a explicação ou previsibilidade de eclosão de conflito foi contraposto por uma série de análises, de tipo qualitativo, orientadas para o estudo das motivações económicas dos diferentes grupos em particular nas guerras civis. Segundo Nathan (2005), os métodos estatísticos baseados na teoria da escolha racional dos agentes permitem “estudar as causas das guerras civis, sem estudar as guerras civis e …determinar os motivos dos rebeldes, sem estudar as atuações dos movimentos rebeldes e a rebelião”. Ou seja, a inferência estatística inerente às análises, ao definir variáveis para permitir a retirada de conclusões generalizáveis, ignora o contexto histórico e social que presidiu à eclosão do conflito, nomeadamente a desigualdade de acesso verificada entre grupos sociais. Segundo Cramer (2002), as teorias do conflito baseadas na escolha racional “ignoram as especificidades e contingências (os acasos) do caso concreto, assim como a complexidade das motivações individuais e de grupo, reduzindo o indivíduo e grupos-chave num conflito a agentes maximizadores da utilidade”, movidos por imperativos exclusivamente económicos.

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Collier refere que o argumento de grievances é utilizado por alguns movimentos para aumentar o número de recrutados ou para granjear mais apoios internacionais.

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Messiant e Marchal (2001) referem que uma quantidade considerável de países com conflitos, teriam sido à partida, excluídos da amostra e que a análise do conflito nos diversos países não teria tido em conta a transição ocorrida entre período colonial e período pós colonial.

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35 1.2.2 A origem sociológica do conflito em Angola

Messiant (1994) refere como no caso de Angola o conflito foi despoletado pela desigualdade social, originada em distintos relacionamentos com a colonização portuguesa, com implicações no acesso diferenciado a oportunidades económicas por parte dos distintos grupos. Os principais movimentos independentistas tiveram origem após a II Guerra Mundial21 num contexto de incentivo aos movimentos de autodeterminação a partir da I Guerra Mundial (Oito Pontos de Wilson) e ao apoio oficioso concedido pelas fundações e igrejas norte-americanos aos movimentos independentistas através das escolas missionárias (metodistas, congregacionistas).

Após a II Guerra Mundial produzem-se alterações às condições em vigor para os assimilados, um grupo para o qual à luz da Lei do Indigenato publicada pelo Estado Novo em 192922, vigoravam privilégios de acesso a educação, ao exercício de determinadas atividades profissionais (incluindo a docência) e demais direitos económicos, relativamente aos restantes habitantes locais.

A Lei de Administração Civil das Colónias Ultramarinas publicada em 1914 havia estabelecido uma separação nítida em termos de direitos entre habitantes locais ou indígenas, e cidadãos, sendo que aos primeiros “não serão em regra concedidos direitos políticos relativamente a instituições de carácter europeu”, aplicando-se na administração das colónias o princípio da descentralização (Menezes, 2010). A Lei do Indigenato de 1926 consagra a aplicação de um estatuto jurídico distintivo e discriminatório aos habitantes indígenas, explicitando:

“Não se atribuem aos indígenas por falta de significado prático, os direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua vida individual, doméstica e pública às nossas leis políticas, aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria (…) sem prescindirmos de os irmos chamando por todas as formas convenientes à elevação, cada vez maior do seu nível de existência”23

Ou seja, aos naturais de Angola e Moçambique era aplicado um estatuto jurídico próprio, que separava estatutariamente os habitantes autóctones destes territórios do

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Wheeler e Pélissier remontam a génese do MPLA a 1954.

22 Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique”, aprovado através do

Decreto nº 12.533, de 23 de Outubro de 1926 (Boletim Oficial nº 48).

23 “Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique”, aprovado através do

36 estatuto jurídico e legal dos cidadãos originários da metrópole. Aos indígenas fica desta forma reservada a aplicação dos “costumes privados das respetivas sociedades”. Aliada a esta divisão, o Regulamento de Trabalho Indígena de 1899 e o Código de Trabalho Indígena de 1914 haviam instituído um regime de trabalho compulsório entre os habitantes autóctones, como forma de “elevação pessoal” e forma de adquirirem meios de sustento próprio e das respetivas famílias. Com o Estatuto do Indigenato de 1929 foi estabelecida a obrigatoriedade de remuneração do trabalho assalariado, apesar de o documento reafirmar o carácter obrigatório do trabalho indígena em obras públicas e o recrutamento forçado daqueles que se tivessem eximido ao pagamento dos impostos individuais.

No contexto da implementação do trabalho forçado foi determinante a monetarização da economia nas colónias, que impediu a prática dos sistemas de troca direta, através da qual os habitantes rurais trocavam produtos agrícolas por outros produtos de consumo24 e introduziu a aplicação de impostos individuais.

Uma categoria intermédia que surge nesta classificação é a dos assimilados. Aos assimilados, categoria já existente na lei anterior, é permitida a obtenção da nacionalidade portuguesa se cumprido um conjunto cumulativo de critérios, incluindo o domínio verbal da língua portuguesa e “o exercício de uma profissão remunerada, hábitos culturais portugueses e o cumprimento do serviço militar obrigatório25. O cumprimento destes requisitos exigia uma proximidade geográfica e de relacionamento à colonização portuguesa, uma vez que o ensino do português era ministrado em exclusivo até ao final do século XIX nas escolas de denominação religiosa católica. Segundo Messiant (1994), a categoria de assimilado surgiu como forma de marginalização e de desclassificação da burguesia multirracial existente em Angola até ao final do século XIX. Este estatuto definia legalmente as condições de acesso da população não branca a privilégios, que anteriormente eram garantidos pela socialização formal com a colonização portuguesa, sem restrições previstas por lei e tendo por base o aprofundamento de relações de parentesco entre a comunidade de colonos e as populações locais.

Contudo, o maior afluxo de populações migrantes vindas da metrópole, na sequência das campanhas de povoamento iniciadas com o General Norton de Matos no início da década de 1920, conduziu ao encerramento da sociedade colonial em torno de si própria, com a diminuição das relações inter-raciais, sociais e matrimoniais (Messiant, 1994). Entre 1940 e 1951 tem lugar uma nova campanha de incentivo à emigração para Angola, que tem como repercussões a alteração do estatuto dos assimilados. Se, até à década de 1940, era

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Como sal, fósforos e bens alimentares.

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Outras condições eram: “demonstrar bom comportamento e ter adquirido a ilustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito privado e público português; ter cumprido o serviço militar”.

37 prova suficiente, para o acesso ao estatuto, o exercício de uma profissão ou ofício remunerado e o fazer prova de aquisição de hábitos culturais portugueses, com a vaga de emigração portuguesa pós II Guerra passou a ser exigido o parentesco direto (filiação) ou por via do casamento com cidadãos portugueses nascidos na metrópole.

Segundo Messiant (1994), o grupo que vivia em Luanda e no interior da respetiva província até Malange e em Benguela constituiu o grupo de antigos assimilados. Eram um grupo não necessariamente étnico, mas com laços familiares e de contacto com a comunidade de colonos portuguesa, perspetivando-se como a elite da população não branca. Uma nova categoria sociológica emergiu com a difusão das missões de evangelização protestantes após a II Guerra Mundial, os novos assimilados. Igualmente expostos a uma educação formal proporcionada pelas missões não católicas, são socializados fora dos principais centros urbanos de influência portuguesa (Luanda e área de influência, Malange e Benguela), mantendo e preservando uma maior ligação às comunidades africanas de origem, o que incluiu o domínio e preservação da língua local. Segundo Messiant (1994), são elites “neo-tradicionais”, educadas em Leopoldville, atual capital da República Democrática do Congo, sob influência da socialização religiosa protestante e inseridas na economia moderna. Contudo, esta classe, se bem que detentora de privilégios de educação formal, não consegue aceder aos benefícios de promoção social anteriormente disponíveis para os antigos assimilados. Por um lado porque se verifica a restrição de oportunidades de acesso a profissões e a atividades de caracter comercial26 por parte da população autóctone, caracterizada pelo “endurecimento das condições presentes nas relações raciais e sociais” (Messiant, 1994). Por outro lado os antigos assimilados protegiam o acesso às oportunidades (agora decrescentes) de outros grupos sociais, considerando-se em larga medida a elite da população não branca.

Segundo a mesma autora, o fator étnico não era um fator constitutivo dos antigos assimilados – estes eram sobretudo caracterizados por uma “experiência social e uma tradição cultural específica e uma forte consciência de si próprios como elite nacional de Angola”. Apesar de os mestiços serem predominantes entre este grupo, resultado dos laços de parentesco iniciados com a política de assentamento após o congresso de Berlim, o grupo incluía igualmente negros e brancos. Ou seja, os antigos assimilados eram sobretudo uma categoria social e cultural, mais do que uma categoria étnica.

Por sua vez, os novos assimilados nascem sobretudo por oposição à antiga classe de assimilados, marcados por um forte pendor étnico, orientados para a criação de um

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Não se referiam simplesmente ao ensino, mas ao acesso a profissões e à detenção de meios de produção, como terra e outros bens de produção. A partir de 1940 começou a ser exigido que a profissão de professor fosse exercida somente por portugueses nascidos na metrópole.

38 estado secessionista no norte de Angola, numa recriação do antigo reino do Congo. Face ao projeto nacionalista, de inspiração europeia e humanista dos “antigos assimilados”, que constituem o núcleo formativo inicial do MPLA, os “novos assimilados”, bakongos “evoluídos”, que formam originalmente a União das Populações do Norte de Angola, têm para Angola um projeto de tipo segregacionista, que rejeita não só o colonialismo, mas a convivência num arranjo político pós-independência, com os antigos assimilados, que considera não africanos e desvinculados das aspirações do povo.

Segundo Messiant (1994), este antagonismo foi criado quer pela diferenciação de oportunidades económicas existentes para os dois grupos sociais, quer pela própria diferenciação física e cultural existente entre novos e velhos assimilados. A religião foi o fator diferenciador na formação da identidade das diferentes comunidades – enquanto em Luanda a educação nas escolas católicas, contribuía para uma aculturação e uma separação da sociedade tradicional; as restantes confissões religiosas que influenciaram os bacongo (metodistas) e os ovimbundu (congregacionistas) preservavam a língua local e uma ligação à comunidade e a uma herança cultural africana. Tal não significou, porém, uma associação direta entre os novos assimilados de socialização protestante e os movimentos opositores ao MPLA. Em Luanda e até ao interior da província, até Malange e em Benguela, onde existia um equilíbrio entre protestantes e católicos e maior inter-relação entre as duas comunidades, muitos novos assimilados aderiram ao MPLA. Contudo com a exceção destas duas cidades, os novos assimilados tenderam a dividir-se entre os dois movimentos nacionalistas e a organizar-se por grupos de interesse etnolinguístico. A formação de elites no seio do MPLA decorreu precisamente do antagonismo entre antigos assimilados e novos assimilados de diferentes etnias, resultando na manutenção forte dos antigos assimilados na direção do MPLA, a par de uma “forte progressão” dos novos assimilados na estrutura do partido. As oportunidades de escolarização concedidas a uma parte destes membros permitiu-lhes, segundo Messiant uma afirmação social, a par de uma afirmação política.

Segundo Cramer (206:146), a guerra em Angola foi sobretudo uma guerra por posição social (no que refere às elites), com “expetativas e ressentimentos que resultaram do contexto de formação material e histórica das identidades sociais”. Esta tipologia de luta por posicionamento social em cenário de recursos escassos é retirada de Hirsch27 e explica

27 Cramer explica o conceito de “guerra por posição social” através da competição por bens escassos

decorrente do crescimento económico de Hirsch (1976). Em contexto de crescimento económico (Hirsch) ou de mudanças políticas económicos e sociais grosso modo a provisão de determinados bens é restrita, e o respetivo consumo implica uma competição, pois o consumo de um indivíduo ou grupo de pessoas implica a restrição de consumo ou o barramento de acesso a outro grupo de

39 não só o papel privilegiado atribuído aos crioulos (sobretudo uma narrativa), como a competição entre assimilados (antigos e novos) e a própria competição por posição no seio dos movimentos de libertação nacional.