• Nenhum resultado encontrado

A proposta pragmática para a referência temporal

ANEXO 6 – Lista de expressões temporais

3.5 A proposta pragmática para a referência temporal

Os fatos enunciativos podem também ser vistos a partir de uma teoria pragmática (pós Austin). É o que propõem MOESCHLER et al. (1994) e MOESCHLER (1998) para tratarem da referência temporal. Eles consideram que as categorias temporais não são dêiticas nem anafóricas, mas que apresentam usos dêiticos ou anafóricos, cuja referência deve ser calculada, tratando-se, portanto, de um problema pragmático ligado ao uso da língua. Tal abordagem procura explicar o problema do intervalo (entre eventos ou acontecimentos), da ordem temporal (encadeamento) e da relação

de causa, bem como tratar das seguintes questões:

a relação entre as categorias gramaticais dos tempos verbais (tenses) e as categorias conceituais (anterioridade, simultaneidade, posterioridade); – o caráter anafórico e/ou dêitico dos tempos verbais;

– a relação entre a semântica do tempo e a semântica do espaço; – as relações temporais nos textos;

– a co-ocorrência de tempos do passado e de expressões dêiticas no estilo indireto livre e na narração.

MOESCHLER et al. (1994) consideram que, em teorias sobre a temporalidade, se encontram teses como:

– os tempos verbais compõem um sistema que varia de língua para língua; – os tempos verbais têm conteúdo representacional, cada tempo

correspondendo a diferentes valores semânticos;

– o conteúdo representacional dos tempos verbais é ora temporal, ora aspectual e ora modal;

– há limitações de emprego de tempos verbais nos planos lingüístico e textual.

A crítica de MOESCHLER et al. (1994) a respeito de tais teses deve-se ao fato de elas apresentarem o problema da referência temporal independente de outros problemas semânticos e pragmáticos.

Com o objetivo de dar um novo tratamento à referência temporal, MOESCHLER et al. (1994) apóiam-se na distinção entre referência virtual e referência atual (MILNER, 1982). A referência atual de uma expressão é o segmento da realidade associado a uma seqüência lingüística, enquanto que a referência virtual é o conjunto das condições que caracterizam a expressão. Uma definição de dicionário representa, portanto, a referência virtual ou sentido lexical de uma unidade. Uma vez empregada (enunciada ou atualizada), a unidade lexical é portadora de uma referência atual.

Outro conceito importante na teoria pragmática da referência temporal é o da autonomia. MOESCHLER (1994) considera os advérbios como expressões temporais autônomas, por fixarem um ponto de referência em relação ao qual outras marcas temporais (principalmente os tempos verbais) fixam sua localização. Quando a

significação lexical de um termo referencial é suficiente para determiná-lo, diz-se que tal termo possui autonomia referencial. Por outro lado, os termos que são desprovidos de significação lexical são privados de autonomia referencial. Os pronomes pessoais, por exemplo, são expressões não-autônomas referencialmente.

Seguindo o raciocínio de MILNER (1982), MOESCHLER (1994) admite a existência de expressões temporais autônomas e não-autônomas. As expressões temporais autônomas têm a função de fixar uma localização temporal, a partir do qual outras marcas vão entrar em relação, sobretudo os tempos verbais. KERBRAT-ORECCHIONI (1999) chama essas mesmas expressões de referência absoluta. Para MOESCHLER (1994), tais expressões podem ser de referência imprecisa, tais como: era uma vez,

um dia, quando João chegou; ou de referência precisa, tais como: em 1956, no dia x, às tantas horas, quando o sol saiu, à noite, etc.

As expressões temporais autônomas referencialmente permitem a anáfora temporal, na medida em que fornecem uma ancoragem às expressões referenciais não autônomas. Esse raciocínio remete a uma das condições do PIDT (Princípio de Interpretação do Discurso Temporal) de DOWTY (1986), segundo o qual o tempo de referência de uma dada sentença é fornecido pela expressão adverbial (quando e se ocorrer) ou pelo tempo que sucede imediatamente o da sentença anterior.

As expressões temporais não-autônomas constituem o conjunto das referências dêiticas e anafóricas. As expressões dêiticas contêm instruções que permitem uma interpretação atual variável, em função do momento de enunciação. Por exemplo, na ocorrência

Depois de amanhã, Auchlin vai estar em uma banca em Paris,60

a expressão depois de amanhã só vai se referir ao dia 10/02/2002, se enunciada no dia 08/02/2002 (como foi o caso). A referência temporal atual se altera, caso a enunciação ocorra em dias diferentes.

As expressões não-autônomas anafóricas entram em relação com uma expressão que fixa a referência temporal. É o que ocorre em

Antes do derrame, ela comia com as próprias mãos,61

em que o fato de comer com as próprias mãos se situa num tempo anterior ao fato de ter sofrido um derrame; diferentemente de

Ela comia com as próprias mãos,

cuja interpretação não tem ancoragem temporal.

MOESCHLER (1994) apresenta duas definições de referência temporal:

Definição 1: "La référence temporelle actuelle d’une expression temporelle est un

moment (point ou intervalle temporels) assigné dans lequel elle apparaît." 62

(MOESCHLER, 1994:92)

Definição 2: "La référence temporelle virtuelle d’une expression ou marque temporelle

est l’ensemble des conditions permettant de définir sa référence temporelle actuelle." 63

(MOESCHLER, 1994:92)

Outra definição importante no quadro geral da pragmática da referência temporal de MOESCHLER (1994) é a de evento/acontecimento, que consiste no que denota a

60

Exemplo fabricado por nós.

61

Idem.

62

"A referência temporal atual de uma expressão temporal é um dado momento (ponto ou intervalo) designado ao enunciado ao qual ela pertence." (tradução nossa)

63

"Uma referência temporal virtual de uma marca temporal é o conjunto das condições que permitem definir sua referência atual." (tradução nossa)

construção verbal de uma frase, podendo ser indiciado temporalmente. De acordo com o seu grau de autonomia, MOESCHLER (1994) classifica as referências da seguinte forma:

Referência

autônomas não-autônomas

definidas indefinidas dêiticas anafóricas Figura 5 – Classificação das referências, segundo MOESCHLER (1994)

Mesmo considerando que nem todas as frases contêm expressões temporais (autônomas ou não-autônomas) que permitam localizar a referência atual, há princípios pragmáticos que possibilitam a interpretação dessas expressões. Em relação aos tempos verbais, MOESCHLER (1994) considera-os dêiticos par défaut, isto é, eles não são de natureza dêitica, mas se comportam como tal. De acordo com essa tese, qualquer indicação temporal pode desempenhar a função de localização, ancoragem. Na ausência dessas, faz-se necessária uma interpretação relativa ao contexto de enunciação. Para REICHENBACH (1947), há sempre um ponto de referência, mesmo que coincida com o momento da fala (S).

São três os princípios pragmáticos da referência temporal, apontados por MOESCHLER (1994):

– princípio de atualização do AGORA, que fornece o procedimento de

interpretação de um enunciado que não tem outra indicação temporal;

– princípio da localização do ponto de referência temporal, versão pragmática do princípio da ordem temporal de DOWTY (1986), segundo o

qual toda indicação temporal pode vir a ser o ponto de referência temporal do enunciado. Se, numa seqüência, um dado enunciado não apresenta marca temporal, a referência temporal anterior é mantida;

– princípio de localização temporal dos dêiticos, de acordo com o qual os dêiticos temporais designam um instante (ponto ou intervalo) em relação à enunciação e aos participantes da enunciação.

Os princípios apontados por MOESCHLER (1994), com o objetivo de explicar a referência temporal, não são ad hoc, mas decorrem do princípio da relevância. Trata-se de considerar a referência como procedural, qualificação associada à distinção feita por SPERBER & WILSON (1986, 2001) que distinguem dois tipos de informações codificadas lingüisticamente: a conceitual e a procedural. Enquanto a informação conceitual traz em si um conceito sob forma lingüística, a procedural oferece instruções sobre a maneira de a informação ser tratada.

Uma distinção entre a abordagem pragmática da referência temporal e a abordagem lógica ou semântica diz respeito aos aspectos verifuncionais dos enunciados.64 MOESCHLER (1994) argumenta em favor de um tratamento não-verifuncional dos tempos verbais. Para ele, ao se considerarem os tempos verbais portadores de instruções procedurais não-verifuncionais, torna-se possível explicar questões como certos encadeamentos temporais, a ordem e o intervalo dos eventos. A idéia de se questionar o estatuto verifuncional dos enunciados tem bases no conceito de implicatura de GRICE (1979). A partir desse conceito, REBOUL e MOESCHLER (1998) e MOESCHLER (1999) identificam uma ruptura entre a lingüística e a pragmática, na medida em que a verifuncionalidade implica uma separação definitiva entre aspectos

64

A abordagem verifuncional da semântica ancora-se na relação entre a linguagem e o mundo; ou seja, o significado é uma função das condições de verdade. Nessa perspectiva, ao usarmos a linguagem, falamos sobre o mundo, mesmo que seja do mundo ficcional, dos sonhos, etc. (PIRES de OLIVEIRA, 2001)

semânticos (portanto lingüísticos) e aspectos pragmáticos. Segundo os autores, tal ruptura justifica-se em função das seguintes idéias:

– enquanto os fatos semânticos são verifuncionais, os pragmáticos não determinam o valor de verdade dos enunciados;

– os aspectos pragmáticos do sentido (implicaturas) são conseqüência do princípio geral de cooperação, que governa a comunicação, e do respeito às máximas conversacionais (quantidade, qualidade, relação e maneira); – o sucesso da comunicação depende do caráter intencional da mensagem

e das inferências feitas pelo destinatário.

Ao admitir a produção de sentidos pelo ponto de vista da pragmática griceana, diversas questões problemáticas para a lingüística, tais como a pressuposição, os conectores lógicos, as anáforas e a referência temporal, puderam ser analisadas, por MOESCHLER et al. (1994).

Para os objetivos deste trabalho, será usada a visão pragmática de encadeamento ou seqüência dos eventos e da natureza das referências temporais, porque há interesse em verificar as interpretações do leitor de línguas estrangeiras diante das manifestações lingüísticas do tempo.