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A psicopatia em Freud

No documento Sob o véu da psicopatia ... (páginas 57-60)

Pelo fato de a psicopatia ter sido um conceito inserido propriamente no terreno da psicopatologia a partir dos trabalhos de Kurt Schneider, por volta da década de quarenta, seria impossível para Freud tecer considerações a seu respeito, uma vez que o pai da psicanálise faleceu em 1938. No entanto, tal como foi exposto no primeiro capítulo, o termo “psicopatia”

vem sendo usado desde o século XVII, ainda que em uma acepção bastante distinta da que hoje vigora. Freud não foi diferente nesse aspecto, também se referindo à psicopatia com certo grau de equívoco.

Embora Freud possua um artigo intitulado “Personagens psicopáticos no palco” (1906), não há ali qualquer sistematização acerca da psicopatia. Nesse texto, Freud discorre sobre os momentos nos quais a psicopatologia se faz presente nos palcos, explicitando os motivos que levam os indivíduos neuróticos a se identificarem com determinados personagens. Freud cita

Hamlet como um personagem “completo”, uma vez que nele entrevemos uma dinâmica

edípica recalcada que se faz reviver nos ânimos da plateia. O autor chega a dizer que o personagem Hamlet, embora não fosse um psicopata, transforma-se em tal no decorrer da trama.

No século XIX e início do XX, a expressão “psicopata” era comumente utilizada pela literatura médica em um sentido amplo para designar doentes mentais de uma maneira geral, não havendo, ainda, uma sistematização estritamente psicopatológica. Nesse texto freudiano, portanto, Freud lança mão do termo “psicopata” em consonância com a literatura vigente, utilizando-o em um sentido dilatado (Henriques, 2009).

Muitos psicanalistas que se arriscaram a trabalhar nesse espinhoso terreno representado pela psicopatia o fizeram privilegiando as ideias extraídas fundamentalmente de um artigo freudiano, de 1916, intitulado “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico”. De acordo com Sidney Shine, psicanalista paulista que elaborou um livro no qual resgata uma série de construções teóricas a respeito da psicopatia, principalmente de autores de orientação freudiana e também de alguns pós-freudianos filiados à APA, como Otto Kernberg, Freud, nesse artigo, “inaugurou toda uma linha de pesquisa e de exploração sobre os determinantes neuróticos de um ato criminoso” (Shine, 2000/2010, p. 32).

Desse modo, é interessante notar como a psicanálise invariavelmente tenta encaixar a psicopatia em uma das três principais nosologias diagnósticas (neurose, psicose e perversão), pinçando um determinado texto da ampla obra freudiana como um norte, a depender do modo como compreende a psicopatia. Ou seja, aqueles autores que defendem que a psicopatia se situa mais voltada ao âmbito da neurose, utilizam as ideias presentes no tipo de caráter referente aos criminosos em consequência de um sentimento de culpa como uma chave de leitura fundamental, tal como o fez Karl Abraham (1935). Para aqueles que defendem a psicopatia como uma psicose (Melitta Schimideberg, 1935) ou como uma perversão (Otto Fenichel, 1945 e Otto Kernberg,1995), observamos também amparos específicos advindos da obra freudiana, contudo, não é o nosso objetivo, por ora, resgatá-los, sendo-nos mais relevante

percorrer a obra freudiana sem interferências para lá encontrar subsídios teóricos que nos ajudem a compreender a psicopatia em termos psicanalíticos.

Retomemos então o artigo que, de certa maneira, inaugura os determinantes psíquicos presentes em um ato criminoso: “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916). No terceiro capítulo deste texto, Freud discorre sobre os “Criminosos em consequência de um sentimento de culpa”. O interesse do autor por esse tipo de caráter se deu a partir de relatos frequentes de seus pacientes a respeito de períodos, mormente na juventude, em que se dedicaram a práticas ilícitas, como furtos, fraudes e incêndios voluntários. O autor, durante muito tempo, acreditou que tais atos não mereciam grandes considerações, uma vez que seriam partes imanentes à fraqueza das inibições morais, comuns à juventude, também de acordo com o mesmo.

Contudo, o trabalho analítico foi lhe mostrando que “tais ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental” (Freud, 1916/1976, p. 375). O autor disserta ali, portanto, acerca de certos tipos de crime cujo móvel é a culpabilidade. Tais delitos seriam cometidos para atenuar um sentimento de culpa que seria prévio, e não posterior a eles.

Dessa maneira, Freud diz que há crimes que são cometidos com o intuito de ligar um sentimento inconsciente de culpa a algo concreto e situável, uma vez que a atuação criminosa suscitaria uma punição que possibilitaria a expiação da culpa, sendo o ato punitivo, portanto, parte integrante do sintoma delineado pelo próprio crime. O autor complementa sua teoria dizendo que tal sentimento de culpa adviria do complexo de Édipo, erguendo-se como uma reação às intenções criminosas de matar a figura paterna e ter relações sexuais com a mãe.

Embora Freud insira em tal artigo uma ideia que foi amplamente destrinchada por outros autores, o pai da psicanálise não se delonga muito em sua exposição, sendo bastante sucinto na defesa de sua hipótese, diferentemente dos outros dois tipos de caráter por ele trabalhado (“As exceções” e “Arruinados pelo êxito”) nos quais recorre a exemplos literários, como as obras Ricardo III e Macbeth de William Shakespeare.

É possível pensar que Freud não tenha se alongado muito no tipo de caráter aqui discutido, pois ele não considerava a sua ideia verdadeiramente original. O autor chega a dizer que o “criminoso em consequência de um sentimento de culpa” já era do conhecimento de Nietzsche em sua obra Assim falou Zaratustra (1885). Freud alerta o leitor que o filósofo fez referência ao chamado “criminoso pálido”, bastante semelhante aos pacientes “criminosos” de Freud.

Certamente, gostaríamos que Freud tivesse se detido com mais afinco a esse tipo de caráter. Embora o autor não tenha feito uso de outros recursos para ilustrá-lo, podemos fazer aqui um exercício para tal fim. Este, ainda que não traga a marca da pena freudiana, parece- nos ser bastante frutífero para ajudar a lançar luz sobre esse tipo de caráter. Com a licença do leitor, pulemos para um caso relativamente recente no qual podemos conjecturar que a culpabilidade prévia foi o móvel de uma atuação criminosa posterior que convocava uma punição.

No documento Sob o véu da psicopatia ... (páginas 57-60)