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Robert Hare e o definitivo desvio da obra de Harvey Cleckley: o “monstro

No documento Sob o véu da psicopatia ... (páginas 44-47)

O psiquiatra canadense Robert Hare começou a aproximar-se do tema referente à psicopatia quando era ainda recém-formado. Ao trabalhar com detentos de uma prisão de segurança máxima nas proximidades de Vancouver, Hare se intrigava com a questão concernente à suposta ineficácia da punição em indivíduos por ele considerados psicopatas.

Ainda que Harvey Cleckley seja considerado por muitos o pai dos estudos contemporâneos a respeito da psicopatia, Hare vem angariando admiradores, sendo visto hoje como uma das maiores referências quando falamos de sujeitos psicopatas. Ainda atuante, Hare é habilidoso em divulgar os seus trabalhos, não sendo incomuns aparições do psiquiatra na mídia. Parte dessa habilidade consiste em transmitir as suas opiniões de um modo bastante acessível, não sendo fortuito o sucesso que angaria na publicação de diversos livros sobre a temática. Sua publicação mais recente, intitulada Snakes in Suits: When Psychopaths go to work (2006) (Cobras de terno: quando os psicopatas vão ao trabalho) alcançou significativo sucesso editorial nos Estados Unidos e no Canadá.

Em entrevista concedida a Revista Veja em 29 de março de 2009, Hare pronuncia uma série de afirmações que marcam esse esforço em tornar o tema por ele estudado acessível e compreensível por quem quer que o leia. O autor diz, por exemplo, que "O psicopata é como o gato, que não pensa no que o rato sente. Ele só pensa em comida. A vantagem do rato sobre as vítimas do psicopata é que ele sempre sabe quem é o gato".

Se hoje o autor recebe críticas em função do modo como às vezes se refere ao indivíduo psicopata, ou seja, de um modo um tanto rasteiro e superficial, não foi dessa maneira como ele iniciou os seus estudos a respeito da psicopatia, muito pelo contrário. Na década de setenta, momento em que de fato se debruça sobre o tema, Hare levanta e defende a bandeira da cientificidade, contestando o trabalho de Harvey Cleckley, julgando-o como uma obra anacrônica, excessivamente empirista e pouco científica.

Robert Hare, embora tenha utilizado a trabalho de Cleckley como base para a elaboração do instrumento por ele desenvolvido para acessar a psicopatia, inseriu algumas importantes modificações teóricas no tocante ao delineamento do quadro, sendo duramente criticado por isso.

Hare é o criador do instrumento mais amplamente utilizado para a medição dos graus de psicopatia, o Hare Psychopathy Checklist (PCL-Hare, 1980/1991). Este teste é fruto da já comentada contestação do autor a respeito da confiabilidade e validade das ferramentas usadas para acessar o referido transtorno. Utilizando entrevistas semiestruturadas e estudos de casos, Hare realizou uma filtragem das características que surgiam com maior frequência nos indivíduos selecionados para a pesquisa e localizou vinte e dois critérios passíveis de serem vinculados a escores que possibilitariam medir o grau de psicopatia em um determinado sujeito. A amostra utilizada por Hare consistia em 143 homens brancos encarcerados, de 18 a 53 anos, estabelecendo uma média de idade de 26, 3 anos. Os critérios são:

1- loquacidade/ charme superficial; 2- diagnóstico prévio como psicopata; 3- egocentrismo/ superestima;

4- tendência ao tédio/ Baixa tolerância à frustração; 5- mentira patológica;

6 - manipulação/ Falta de sinceridade; 7- ausência de remorso ou culpa; 8- insensibilidade afetivo-emocional; 9- crueldade/ falta de empatia; 10- estilo de vida parasitário;

11- pobre controle comportamental e temperamento explosivo; 12- promiscuidade sexual;

13- transtornos de conduta na infância; 14- ausência de metas realistas a longo prazo; 15- impulsividade;

16- comportamento irresponsável como pai; 17- problemas conjugais frequentes;

18- delinqüência juvenil

19- risco em caso de liberdade condicional;

20- fracasso em aceitar responsabilidades pelas próprias ações; 21- diferentes tipos de delito;

22- abuso de álcool ou uso de drogas sem ser necessariamente causado pelo comportamento antissocial.

O autor divide esses traços em quatro dimensões primordiais: a interpessoal, a afetiva, a de estilo de vida e a referente à dimensão antissocial. Os escores variam de zero a quarenta pontos, sendo quarenta o mais alto grau de psicopatia. Ainda que a escala PCL-R tenha sido desenvolvida como uma escala de pesquisa clínica para medir o construto referente à psicopatia, Hare afirma que “.... por causa de sua demonstrada habilidade em prever recidivas, violência e tratamento, a PCL-R é rotineiramente usada em assessorias jurídicas, sozinha ou, mais apropriadamente, como parte de uma bateria de variáveis e fatores relevantes para psicologia e psiquiatra forense” (Hare, 2008, p. 221).

Embora não se faça relevante nos atermos aos detalhes do modo como o teste foi estruturado, é importante dizer que a sua confecção é atribuída a uma compilação de ferramentas de medição, de contribuições da genética comportamental, da psicopatologia do desenvolvimento, de teorias da personalidade, da neurociência cognitiva e de estudos comunitários.

Hare estabelece uma distinção fundamental entre os critérios elencados em seu check-list e os presentes no DSM IV: “Os critérios do DSM-IV para TPA consistem quase que exclusivamente em indícios comportamentais, negligenciando o afetivo-interpessoal, aspecto que parece refletir muito na noção de uma personalidade distinta tal como descrito por Cleckley (1941/1976)” (Hare, 2008, p. 221).

Mesmo que Hare busque diferenciar o seu trabalho das construções presentes no DSM IV, é possível localizar um ponto em comum entre eles: tanto o DSM (a partir da sua terceira edição) quanto a escala PCL-Hare foram determinantes para o estreitamento da vinculação entre psicopatia e o comportamento antissocial. Em relação ao DSM, essa associação tornou- se bastante clara com o resgate já realizado, sendo necessário demonstrá-la também na obra de Robert Hare.

Rogers (1995), Cooke (2005) e Blackburn (2007) efetuaram as críticas mais contundentes no sentido de evidenciar não só um desvio na obra de Hare em relação à base teórica construída por Cleckley, como também a importância dada pelo psiquiatra canadense ao fator referente à antissociabilidade.

Rogers afirma que “enquanto a psicopatia tem recebido um aumento de atenção por parte de clínicos e cientistas nas últimas duas décadas, é importante notar que a definição do transtorno se desviou das primeiras conceituações fornecidas por Cleckley e outros teóricos antes dele” (Rogers, 1995, p. 81). Cooke, por sua vez, argumenta que a Escala PCL se desvia das raízes estabelecidas por Cleckley porque inclui o comportamento antissocial na conceituação e medição da psicopatia. Blackburn afirma, por seu turno, que enfatizar a

participação do crime na psicopatia tornou sua natureza obscura, fazendo com que sua característica fundamental, qual seja, a de relações interpessoais prejudiciais, fosse preterida em detrimento da necessidade de se fazer presente uma manifestação criminosa.

Otto Kernberg, psiquiatra e psicanalista filiado da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), também realizou críticas contundentes em relação ao fato de que o DSM III descartava o “transtorno de personalidade de tipo não agressivo” (Shine, 2000/2010, p. 24). Para o autor, tal tipo deveria ser incluído, uma vez que nele não estaria em jogo a manifestação criminal, mas sim um comportamento considerado por ele de “cronicamente parasístico e /ou espoliativo” (Idem, p. 24).

Os itens 9, 18, 19 e 21 presentes nos critérios de Robert Hare, foram os mais severamente criticados, sendo contestada a verdadeira necessidade da inserção de tais critérios. Vale ressaltar que a escala construída por Hare foi estabelecida a partir de entrevistas com indivíduos já inseridos em uma instituição penal, o que torna basilar a inclusão da questão criminal na construção do instrumento.

No documento Sob o véu da psicopatia ... (páginas 44-47)