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Sadismo e masoquismo como defesas

No documento Sob o véu da psicopatia ... (páginas 125-130)

4 O USO DE DEFESAS SADOMASOQUISTAS NA PSICOSE E A DINÂMICA DO

4.9 Sadismo e masoquismo como defesas

Embora Freud tenha, amiúde, relacionado o sadomasoquismo ao domínio da perversão, ele não se restringe a tal estrutura. A relevância desta díade ultrapassa largamente o plano das perversões, uma vez que a atividade e a passividade que formam suas características fundamentais são constitutivas da vida sexual em geral.

Além disso, em Freud, percebemos usos distintos do termo “sadismo”. Se em um primeiro momento, no contexto dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), o sadismo se restringia à associação da sexualidade à violência dirigida a outrem, mais adiante encontramos referências menos rigorosas ao sadismo no qual ele se desvincula da sexualidade e passa a ser visto somente como o exercício da violência. Dessa maneira, não são incomuns utilizações terminológicas errôneas nas quais o sadismo e a agressividade tornam-se sinônimos. Por mais relevante que seja o cuidado no tocante a essa distinção, propomos deixar essa discussão de lado e buscar articular o sadismo ao campo pulsional, para assim evidenciar em que medida é possível situá-lo no campo das defesas.

Com o texto “Além do Princípio do Prazer” (1920), Freud empreende uma ruptura no seu pensamento e introduz um novo dualismo pulsional representado pela pulsão de vida e pela pulsão de morte. Esta última, embora tenha sido forjada de um modo essencialmente especulativo, adquire acentuada relevância no arcabouço teórico psicanalítico.

A pulsão de morte pode ser entendida como uma luta ativa e permanente para reencontrar um estado de paz conhecido anteriormente, um esforço obstinado para se livrar do que é vivido como perturbador. Embora Freud sublinhe o caráter silencioso de tal pulsão, ele não deixa de abordar a sua outra faceta, esta mais estrondosa e extraordinária: a destruição. O autor chega a elaborar a noção de pulsão de destruição para dizer de um derivado da pulsão de morte no qual esta passa a ser orientada para o exterior. Assim, a pulsão de morte se desvia do próprio indivíduo devido ao seu investimento libidinal narcísico e volta-se para o exterior por meio da musculatura. O indivíduo, portanto, destrói o outro para não se destruir, e é justamente nesse ponto que podemos vislumbrar o sadismo como uma defesa. Ao se voltar contra o outro, o ego dá vazão à pulsão de morte que o invade, preservando assim sua integridade egóica.

Conceber o masoquismo como defesa, por sua vez, não é algo tão simples, sendo necessária uma maior abstração teórica. Para tal empresa, recorreremos ao texto “Problema econômico do masoquismo” (1924), artigo no qual Freud fornece sua descrição mais completa a respeito do fenômeno.

No trabalho em questão, Freud distingue três formas de masoquismo: o erógeno, o feminino e o moral. O primeiro deles acompanharia a libido por todas as suas fases de

desenvolvimento, e dela deriva seus revestimentos psíquicos cambiantes. Como exemplo, podemos trazer o prazer originado do espancamento das nádegas na fase anal-sádica. O masoquismo feminino, por sua vez, era para Freud o mais acessível à observações e também o menos problemático. Nesta forma de masoquismo o sujeito se compraz com fantasias cujos conteúdos orbitam na temática da submissão, sendo frequentes imagens de amordaçamento, espancamentos, açoitamentos e outras situações nas quais o indivíduo é maltratado, sujado, aviltado e humilhado. Para Freud, tais fantasias poderiam ser interpretadas como o desejo por parte do masoquista de ser tratado como uma criança travessa. No masoquismo moral, por fim, haveria um afrouxamento com a sexualidade. Nesta modalidade o que está em jogo é o sofrimento, não importando os meios para alcançá-lo. O masoquismo moral põe em xeque o sentimento inconsciente de culpa que busca ser expiado das mais diversas maneiras. Ao observar a incongruência lingüística relativa à noção de “sentimento inconsciente de culpa”, Freud passa então a usar o termo “necessidade de punição”. O autor observa que “contrariamente a toda teoria e expectativa, uma neurose que desafiou todo esforço terapêutico pode desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um casamento infeliz, perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença perigosa.” (Freud, 1924, P. 207). Embora não seja explicitado, o que parece estar em jogo no masoquismo feminino e no moral é fazer localizar uma culpa de raízes inconscientes (em Freud é notável as vinculações da culpa inconsciente com o conflito edípico) em uma punição. Ou seja, um sentimento de culpa que se expressa por meio de uma acentuada carga de ansiedade e angústia, trazendo grande desprazer ao ego, pode ser localizado e restringido por meio de uma punição. O que antes ficava dissipado e desintegrado, características sinalizadoras da invasão pulsional, passa a ser situado com a punição masoquística. Dessa maneira, podemos vislumbrar a punição de cunho masoquista agindo de modo a defender o ego da desintegração típica de Tânatos. Tanto o masoquismo feminino quanto o moral nos levam a concluir que neles existem um modo peculiar de defesa que retira da punição os meios para se defender da invasão da pulsão de morte.

Com as elaborações previamente articuladas respondemos, em parte, o que foi inicialmente proposto neste tópico: Como entender, a partir de Freud, a ideia de Jean Claude Maleval do uso de defesas perversas na psicose?

Vimos, em Freud, apontamentos que sugerem a possibilidade da defesa estrutural perversa se infiltrar em outras estruturas. Desse modo, já em Freud, observamos que não é descartada a possibilidade de um indivíduo, ainda que psicótico, se valer de processos simultâneos de

recusa e reconhecimento da realidade, tal como nos é evidenciado em “A divisão do ego nos processos de defesa” (1938).

Contudo, são necessários maiores avanços, trazendo à baila à questão do sadismo e masoquismo na psicose. Esta díade parece adquirir maior relevância ao longo do texto de Maleval, tornando secundárias as elaborações feitas aqui a respeito da Verleugnung.

No domínio da psicose, o mecanismo de defesa primordial é, como bem sabemos, a Verwerfung. Se estamos caminhando nas veredas da psicose, é preciso concebê-la (Verwerfung) como basilar para só depois vislumbrarmos a possibilidade de defesas secundárias. Antes de concluirmos a questão referente às defesas sadomasoquistas na psicose, façamos uma breve retomada da Verwerfung, também em Freud, uma vez que ainda não falamos dela, muito embora estarmos falando da psicose.

Embora Freud tenha se posicionado de um modo um tanto pessimista perante a psicose, são inegáveis os esforços por ele empreendidos na apreensão do fenômeno psicótico. A despeito de julgar os métodos psicanalíticos da época ineptos para o tratamento de psicóticos (para o pai da psicanálise o ego do psicótico não seria suficientemente integrado para manter uma aliança terapêutica e auxiliar na análise), Freud tentou compreender os modos de funcionamento dessa afecção, buscando estabelecer em que medida a psicose e a neurose se distinguiam.

Seria impróprio conjecturar que esse pessimismo freudiano em relação à psicose enviesou de algum modo as suas elaborações acerca dos mecanismos de defesa nessa afecção? Tal questionamento se respalda na ausência de uma elaboração teórica consistente que abarcasse as especificidades defensivas da psicose. Tal ausência seria da ordem de uma dificuldade ou de uma recusa por parte de Freud em fazer avançar a teoria em veredas por ele consideradas áridas? De certo não saberemos as razões implicadas nesse ponto, restando-nos percorrer a obra freudiana para colher o que ali o que foi construindo, tendo em mente o legado deixado por Lacan que sempre nos apontou, pelo contrário, que não devemos recuar diante da psicose e que a psicanálise, a ela, muito pode oferecer.

Feita essa pequena digressão, retornemos à maneira como Freud abordou os mecanismos de defesa na psicose. Para isso, faz-se necessário invocar a utilização do termo Verwerfung na obra freudiana. Observamos que o referido termo é usado basicamente em três acepções em Freud: em um sentido frouxo de recusa bastante próximo à idéia de recalque; no sentido de uma rejeição sob a forma do juízo consciente de condenação (juízo de condenação); e, por fim, em um sentido que opõem a Verwerfung ao recalque, considerando a primeira um modo muito mais radical de recusa frente a uma representação insuportável. Esta última acepção nos

parece a mais interessante e é, de fato, a base para o desenvolvimento futuro do conceito lacaniano de “forclusão”.

Interessante é notar que a concepção mais frutífera de Freud em relação à Verwerfung se dê em um de seus textos iniciais, a saber, em “As neuropsicoses de defesa” (1894). Neste, o autor visa formular uma teoria acerca da gênese da histeria, das fobias, obsessões e de certas psicoses alucinatórias. Ao comparar histeria e psicose, Freud chega à seguinte conclusão:

Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como “confusão alucinatória. (Freud, 1894, p. 64)

Anos mais tarde, em 1915, nas “Conferências introdutórias sobre psicanálise”, Freud retoma essa suposição ao duvidar que o recalque nas psicoses tenha algo em comum com o recalque nas neuroses de transferência.

Nos anos seguintes, evidenciam-se avanços a partir do desenvolvimento da teoria da libido, o que leva Freud a constatar que na psicose haveria um progressivo desligamento da libido dos objetos em direção ao eu. A ampla análise das “Memórias de um doente dos nervos” de Daniel P. Schreber (1911) permitiu a Freud alcançar importantes conclusões a respeito da psicose, principalmente no tocante ao papel desempenhado pelo delírio. Este deixa de ser da ordem do déficit e passa a ser concebido como um esforço rumo à cura: “o delírio se encontra aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo” (Freud, 1923/1976, p. 192). No lugar da fenda entre o ego e o mundo externo, surgiria, portanto, uma amarração, um “remendo” que, ainda que de um modo rudimentar, conecta o doente ao mundo. Vale sublinhar ainda que, somado aos avanços referentes à problemática do delírio, encontramos a projeção como um dos mecanismos de defesa na paranóia, movimento que consistiria na rejeição de elementos internos para o exterior.

Desse modo, ainda que sejam observados aprimoramentos no que tange à compreensão da psicose, ainda assim, verifica-se um Freud claudicante quando o ponto é o mecanismo de defesa particular a ela.

Retomemos, enfim, a questão à qual nos dedicamos neste tópico. Quando Maleval diz “defesas perversas”, acreditamos que há nessa fala uma imprecisão. O autor, na verdade, não tem como intenção falar da Verleugnung, mas sim de modos defensivos que carregam um

se refere à defesa fundamental da estrutura perversa, mas sim de modos de funcionamento que, em função de sua tonalidade “cruel” e “maligna”, passam a ser tratados como perversos. Ao concebermos que o sadismo e o masoquismo estão presentes em qualquer uma das três estruturas, podemos, enfim, vislumbrar maiores avanços. O que estaria verdadeiramente em jogo naquilo que Maleval denomina “defesas perversas” são certos modos defensivos secundários à Verwerfung que se valem do sadismo e do masoquismo.

Já vimos em Freud como sadismo e masoquismo podem atuar como defesas. Retomando: em relação ao primeiro, podemos dizer que o indivíduo, invadido pela pulsão de morte, destrói o outro para não se destruir, sendo que o sadismo pode ser um modo de fazê-lo; já o masoquismo pode ser um modo de defesa à medida que, por meio da punição, localiza o que antes estava dissipado e mantendo acentuado grau de desprazer. Contudo, se nos valermos apenas de Freud para elucidarmos a ideia de defesas sadomasoquistas na psicose iremos esbarrar, inevitavelmente, em uma insuficiência teórica. Com Freud, o sadismo pode ser lido como uma defesa frente à pulsão de morte e o masoquismo como uma defesa à ansiedade advinda do sentimento de culpa inconsciente. Mas, na psicose, o sadismo e o masoquismo, quando presentes, seriam usados como defesa a essas duas perturbações?

Vale sublinhar que, se Maleval aponta que o uso de defesas sadomasoquistas na psicose é um modo de estabilização; Freud, por sua vez, irá privilegiar o delírio como a maneira de conectar o sujeito psicótico ao mundo externo. Acreditamos que para avançar no sentido de lançar luz sobre o uso de defesas sadomasoquistas na psicose, devemos recorrer a um outro conceito bastante utilizado no texto de Maleval, a saber, a fantasia. Acreditamos que, ao retomá-lo, deixaremos mais claro como o sujeito psicótico, tal com o Sr.M ou como Jeffrey Dahmer, defendem-se de uma psicose mais evidente ou, como nos diz Maleval, do marasmo de uma psicose declarada.

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