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A publicidade pelo viés cultural: fluxo e recepção publicitária

3. O MASCULINO NA PUBLICIDADE

3.1 A publicidade pelo viés cultural: fluxo e recepção publicitária

O esvaziamento teórico-metodológico do estudo do campo da comunicação publicitária é decorrência da ainda baixa produtividade de teorias que sustentem a sua complexidade quando imbricada ao viés cultural, sendo-o, talvez, por reflexo das abordagens superficiais, do ponto de vista das problemáticas propostas, que se isolam em análises econômicas da publicidade. Nosso questionamento não está no interesse em privilegiar a produção ou a mensagem, mas na carência de um ponto de vista cultural nessas pesquisas, assim como propõem as de recepção. Vale lembrar que tal situação se estabelece muito em função dos próprios profissionais e pesquisadores aceitarem uma visão polarizada e pouco profunda teoricamente na sua área de conhecimento. Com vistas à superação do referido cenário, entendemos ser preciso reconhecer a publicidade como processo imerso em um contexto efetivamente cultural e de caráter interdisciplinar, independentemente, da temática de pesquisa adotada.

Desse modo, há necessidade de estabelecer-se uma discussão de caráter epistemológico, levando em consideração a natureza multifacetada da publicidade, que ultrapassa as questões puramente econômicas. Para isso, deve-se compreendê-la articulada com o macro e o micro contexto social, onde os atores estão em constante socialização, realizando as suas práticas e construindo as suas identidades. Segundo Jacks, a superação das fragilidades das pesquisas, no Brasil, está condicionada ao “desenvolvimento de teorias e metodologias adequadas para pensar o fenômeno da publicidade no mundo contemporâneo” (2001, p.211), especialmente, no que diz respeito a sua articulação com o mundo social.

Contudo, o problema não está limitado apenas na falta de produção acadêmica que discuta a publicidade. Se observarmos o próprio desenvolvimento das Teorias da Comunicação, percebemos que a publicidade ganhou espaço em diversas correntes teóricas, desde os princípios funcionalistas. Na verdade, estamos nos referindo ao fato da produção contemporânea acerca da publicidade ser bastante esparsa em artigos o que, por falta de sistematização e diálogo dessas perspectivas, não possibilita ainda a formulação de bases mais concretas para a elaboração de uma Teoria da Publicidade como as que sustentam e embasam o debate no campo jornalístico (LONDERO, 2011). Por conta disso, não raro, deparamo-nos

com discussões que ainda buscam definir a publicidade, na tentativa de sair da inércia conceitual que a trata, exclusivamente, como uma ferramenta econômica.

Olhar a publicidade com outros olhos é preciso. Rocha (1995) afirma que, em primeiro lugar, o “mundo da publicidade” deve causar-nos inquietude e estranhamento, consequentemente, seremos capazes de promover reflexões mais aprofundadas sobre as práticas publicitárias, tomando-a como um fenômeno que também é social e, portanto, um produto cultural. Então, a partir da perspectiva dos Estudos Culturais, julgamos possível desvendar o (imenso) universo publicitário, cada vez mais presente em nosso cotidiano, e a sua relação com as diferentes esferas da sociedade, sobremaneira, ampliando a noção da publicidade restrita as questões econômicas e, portanto, superando a ideia determinista e relativizando a sua atuação, para pensá-la imbricada ao fazer social e a realidade dos sujeitos.

A propaganda comercial produz há décadas um rico, vasto e complexo material de investigação. Suas relações com a economia e a cultura, suas tentativas de persuadir o público e sua vocação para oferecer representações culturais estão mergulhadas em ambivalências, tensões e contradições que estão presentes também em outras áreas do tecido social. Explicitar, debater e desenvolver estas perspectivas teóricas multidisciplinares é fundamental para a evolução dos estudos sobre a publicidade no campo da comunicação (MAZETTI, 2011, p. 11).

Desta forma, referimo-nos à importância de abarcar outros aspectos que envolvem o processo publicitário, sejam os valores de quem produz a mensagem ou que circulam socialmente e são acionados para compor o discurso publicitário, sejam os sentidos agenciados nos anúncios ou ainda as mediações que balizam a relação dos receptores com a publicidade. Assim, garante-se um eixo teórico que articule aspectos econômicos e culturais na compreensão da publicidade, tendo em vista a sua atual configuração de fenômeno cultural e social. Neste aspecto, é o caso do uso da Teoria das Mediações de Martín-Barbero (2006), que, conforme propõe Casaqui, é uma articulação que “busca contemplar fenômenos que tensionam os limites da publicidade, mantendo o sentido da comunicação persuasiva vinculada ao consumo, porém com modos complexos de configuração discursiva e de interlocução com os sujeitos identificados como consumidores” (2011, p. 133).

Cabe salientar que embora a perspectiva em análise desenvolva-se e ganhe interesse científico mais recentemente no campo dos Estudos Culturais, devido ao boom midiático das últimas décadas, a sua relevância já podia ser observada nos estudos de um dos seus precursores, ainda nos anos de 1960. Naquela época, Raymond Willians já alertava que a comunicação publicitária extrapolara a fronteira das transações econômicas e passava a ser um espaço de ensinamento de valores sociais e pessoais e, portanto, afirma que somente seria

compreendida “se pudermos desenvolver um tipo de análise total onde os fatores econômicos, sociais e culturais sejam visivelmente relacionados” (apud LONDERO, 2011, p. 15).

A publicidade configura-se como um expoente objeto de estudo, uma vez que retrata os valores e as ideias vigentes de um determinado período histórico da sociedade. No caso desta pesquisa, não é diferente. Os anúncios contemporâneos são um interessante objeto de investigação que nos possibilita entender como o padrão tradicional de masculinidade, que historicamente circula no âmago social, é reconfigurado e ganha novas facetas no discurso publicitário. Ainda que possa ser reduzida a uma mensagem que busca estimular as vendas, Piedras (2009, p.20) afirma que a publicidade igualmente “pode ser entendida como um processo comunicativo, cujas mensagens persuasivas são produzidas e recebidas em contextos contraditórios, implicados tanto pelo sistema hegemônico da estrutura econômica quanto pelas práticas culturais dos sujeitos”, demonstrando, deste modo, a importância de analisarmos a publicidade a partir de quem verdadeiramente é o seu motivo maior, o receptor.

Por conta disso, adotamos, neste estudo, a perspectiva que relaciona o fenômeno publicitário aos aspectos culturais (Estudos Culturais) de modo a entender a sua dinâmica, pois, ao “considerarmos simultaneamente as dimensões econômica, política e cultural na análise da publicidade, chegamos a sua definição como fenômeno cultural cuja natureza é multifacetada” (PIEDRAS, 2009, p. 59). Assim, é necessário compreender como os elementos e os valores culturais reeditados pela publicidade, anteriormente aceitos e reproduzidos socialmente, são resignificados e apropriados pelos sujeitos, considerando que “os elementos de uma cultura e suas significações podem ser utilizados para criar em planos múlt iplos e entrelaçados a mensagem contida no anúncio” (ROCHA, 1995, p.85).

Neste trabalho, compreendemos a publicidade como um produto cultural, parte e fruto do contexto social, que somente adquire sentido quando é dotada de significados que circulam entre as relações e práticas sociais e cotidianas. Consideramos que, mesmo com todo o esforço desprendido no processo de produção e a complexidade da mensagem, é no espaço da recepção/consumo que o sentido do discurso publicitário é posto à prova e adquire valor social, justificando a importância da realização de pesquisas que analisem os modos de apropriação do discurso dos anúncios publicitários pela recepção. Além de verificar a eficiência persuasiva na aquisição dos produtos/serviços e os valores simbólicos produzidos pelo seu uso, estes estudos explicitam também as negociações estabelecidas pelos receptores na incorporação de representações promovidas pelos anúncios, não lhes exigindo, necessariamente, a compra dos bens de consumo, ainda que essa seja a sua intenção.

Com base na importância em compreender a relação publicidade/receptor, destacamos que nossa investigação trata os anúncios como um produto que poder ser “consumido”, independentemente, do interesse e das condições econômicas de aquisição do que é ofertado pela publicidade. Portanto, a intenção está centrada na compreensão sobre como os anúncios publicitários em circulação são recebidos e incorporados simbolicamente, tendo em vista a premissa de que as pessoas consomem muito mais publicidades do que produtos. E, assim, pretendemos entender quais os usos e sentidos produzidos pelas representações promovidas por seu discurso que ultrapassam o consumo material e acomodam-se na identidade de gênero do homem contemporâneo.

Adotada tal perspectiva, entendemos que a publicidade é inserida numa lógica muito mais ampla e complexa que ultrapassa as questões essencialmente econômicas e é posta em um ambiente cultural e dialógico. Isto quer dizer que o discurso publicitário encontra-se numa ininterrupta interação com os mais diversos campos sociais, ou seja, ele “influencia e é influenciado por diferentes redes discursivas e não é o único a tentar imprimir modos específicos de pensar no público” (MAZETTI, 2011, p. 9). Ressaltamos que os estudos em publicidade devem reconhecer a autonomia, as contradições e as ambiguidades produzidas pelos atores sociais que compõem o processo e, portanto, não deve ser tratada como uma ferramenta de ação vertical e impositiva.

Artifício de sedução social, a publicidade e a propaganda não são criação ou arbitrariedade imposta: elas se apoiam em tendências latentes, em desejos manifestos, em inclinações não implícitas mas detectadas, e as manipulam, induzindo ao consumo, à aceitação, ao maravilhamento (PESAVENTO apud CASAQUI, 2011, p. 140)

Assim compreendida, a comunicação publicitária caracteriza-se como um processo de movimento contínuo e ininterrupto e de mútua influência entre a esfera da produção e da recepção. Neste circuito, circulam valores e desejos de interesses pessoais e sociais, tanto dos consumidores quanto dos produtores do discurso, perpassados pelas lógicas econômicas. Explicamos: “se, em um momento as práticas de recepção oferecem subsídios para determinar a produção dos anúncios, em outro, a estrutura econômica e as práticas de produção condicionam sua recepção” (PIEDRAS, 2009, p.80).

Desta forma, o que pretendemos expressar é que há uma circulação de valores e significados entre o processo de produção e o de recepção/consumo, caracterizados pela influência entre ambos. De um lado, da produção, encontram-se as lógicas capitalistas de mercado que, invariavelmente, impõem as suas regras, bem como as próprias lógicas de

produção (interesses comerciais e corporativos, ideologias pessoais e das empresas, aspectos tecnológicos) que submetem e condicionam a mensagem publicitária. De outro, da recepção, estão os interesses do público-alvo e a sua cultura, mediados por inúmeras particularidades dos sujeitos (classe, gênero, faixa etária, etc.) que, ao serem detectadas através de pesquisas de mercados e tendências, subsidiam a criação publicitária.

Portanto, a perspectiva cultural da recepção publicitária adotada nesta pesquisa encontra justificação pelo interesse de observar a relação de receptores com os anúncios, entretanto, não desconsideramos as questões econômicas que envolvem esta relação, que visam ao estímulo para o consumo, apenas propomos um recorte no processo da comunicação publicitária. Então, queremos é reconhecê-la de forma ampliada e complexa, como um verdadeiro fenômeno cultural (PIEDRAS, 2009) e, portanto, como uma possibilidade de abordagem dentro dos Estudos Culturais. Sendo assim, o objetivo não é propor uma abordagem materialista da publicidade, nem tampouco desvincula-la do capital. Mas, pensá-la a partir da sua relação direta com a cultura e os seus agentes, haja vista que, em nossa compreensão, é no momento da recepção, aqui considerado como o espaço de “consumo” dos anúncios, que efetivamente há o encontro e a relação entre o a mensagem publicitária e os atores sociais, ou seja, é o momento/espaço de (re)produção de (novos) sentidos.

Deste modo, entendemos que a perspectiva cultural permite compreender a publicidade como um fenômeno que, especialmente, nas últimas décadas, insere-se cotidianamente na vida dos sujeitos, através de inúmeros meios e formas, tornando-se uma importante fonte promotora de representações sociais (classe, gênero, raça, etc.). Segundo Mazetti, em comentário sobre Rocha,

(...) as narrativas publicitárias serviriam de mapas e roteiros para que os indivíduos se orientem e organizem suas relações sociais. A publicidade dinamizaria sistemas de hierarquia capazes de classificar pessoas e produtos, difundindo ideais de sociabilidade e bem viver (2011, p.7).

O fenômeno publicitário é capaz de validar valores e padrões, mesmo que indiretamente ou, por vezes, não intencionado, principalmente, se consideradas as características identitárias instáveis e fluídas nas sociedades contemporâneas (BAUMAN, 2008). Este é um período de instabilidade, consequência da intensificação do processo de globalização, que “está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais” (HALL, 2011, p.8). Ao mesmo tempo, torna-se um espaço oportuno para que o discurso publicitário contate os seus públicos e introduza-se, indistinta e

incessantemente, nos mais distintos grupos sociais, servindo-lhes de referência para as suas identidades.

Para diminuir os pontos de conflitos entre o anúncio e o receptor, a publicidade apropria-se do cotidiano social, porém, de forma amena (sem dor, miséria e angústia) para que não haja repúdio ou afastamento de quem o recebe. Por isso, nenhum discurso publicitário é criado de forma aleatória e sem denotação com o real, ao contrário, é baseado em outros discursos sociais circulantes, inclusive, fora do espaço midiático, e relacionado diretamente aos comportamentos e sentimentos humanos, já que, na relação com o receptor/consumidor, “não se busca rupturas, mas sim conformações, concordâncias e ausência de dissonâncias” (CASAQUI, 2012, p.5). E, para isso, o discurso publicitário “ritualiza situações cotidianas, separando e ligando cenários, que nessa incessante colagem, se transforma de rotineiros em mágicos” (ROCHA, 2006, p. 37), como em um jogo de sedução, envolvendo e conquistando sujeitos, potencializando consumidores.

Embora muito criticada por conta do seu “universo mágico”, não cabe à publicidade apresentar, em seus layouts, a tristeza, a pobreza, a incapacidade, o medo, ou qualquer que seja outra mazela que corre nas veias sociais. Nem há razões para isso, já que o seu intuito, em menor ou maior grau, é promover a venda, através da inserção dos produtos “dentro dos anúncios, em meio a relações humanas, sociais e simbólicas” (ROCHA, 2006, p. 23), do mesmo modo que nenhum sujeito aprovaria tais representações. Todavia, não quer dizer que o discurso publicitário seja enganoso, manipulador e subestime o receptor, como se chegou a pensar, por exemplo, na Teoria Hipodérmica. Há um longo período, no campo da comunicação, essa noção é superada, reconhecendo uma audiência ativa e dotada de consciência.

O discurso publicitário é “uma forma de reencantamento do mundo, ao traduzir ‘necessidade’ e ‘desejos’, detectados em pesquisas de mercados, para mundos possíveis colocados em circulação para o consumo midiático” (PESAVENTO apud CASAQUI 2011, p.140; grifos do autor). Aqui, mais uma vez, retomamos e reiteramos dois pontos importantes. O primeiro é a articulação da publicidade com o mundo real, percebida quanto aquilo que é ofertado pelos anúncios encontra-se anteriormente em interesses latentes ou em potenciais na sociedade, apenas reconhecidas através de pesquisas. O segundo diz respeito ao fato da publicidade, quando posta em movimento, estar disponível a todo e qualquer indivíduo, independente, por exemplo, das condições de classe social. Assim, ao dispor de um consumo que é midiático e não impõe a necessidade de completude do circuito da comunicação persuasiva, a compra, para a apropriação da mensagem publicitária, ainda busca “fazer sonhar

para desencadear, nutrir e manter o processo de compra de um produto e/ou adesão a uma ideia” (ZAZZOLI, 2002, p. 33).

A publicidade é um processo em que sujeito e produto definem-se mutuamente (ROCHA, 2006), entretanto, adaptamos e ampliamos tal afirmação à noção de que a mensagem publicitária também influencia no comportamento de quem apenas consome o anúncio, do mesmo modo que é influenciada pela cultura vivida destes indivíduos. Noção que nos permite pensar que a publicidade é um produto midiático e cultural com as suas representações sociais capaz de, através do seu consumo simbólico, a recepção, servir como referência para que os indivíduos construam as suas identidades, independentemente, da aquisição e usos simbólicos dos produtos e serviços adquiridos.

De modo geral, esta relação ocorre através da criação ou adaptação do discurso publicitário e dos produtos e serviços, a partir das necessidades e demandas dos potenciais consumidores, uma vez que, segundo Rocha, “o anúncio edita uma outra realidade que, com base no cotidiano real, produz uma narrativa idealizada” (2006, p.50). Do mesmo modo que as significações produzidas pelos sujeitos na relação são postas em movimento no contexto das relações sociais e humanas. Neste movimento, de interação recíproca e mão dupla, a publicidade não pode ser a única responsabilizada por produzir ideias dominantes, entretanto, não há também como desconsiderar o seu enorme potencial de agendar e reproduzir ideias. Então, há de relativizar-se quanto ao seu poder de atuação.

O fato anteriormente aludido faz retomar a noção de que todas as representações estampadas nos anúncios publicitários e projetadas sob os receptores (e consumidores), entre elas, as de masculinidade, são baseadas em valores circulantes e vigentes na trama social.

Como retórica do consumo, o discurso publicitário vai amalgamar as representações sociais imersas no espírito de seu tempo, nos sistemas socioculturais e econômicos dos quais é derivado. Seus processos de mediações envolvem a tradução da racionalidade produtiva e corporativa para o campo sensível das afetações dos sujeitos. (...) esses significados são atribuídos de acordo com o período histórico e com a cultura em que esses elementos se inserem (CASAQUI, 2011, p. 135). Já quando as representações causam estranhamento ou afastamento do receptor, provavelmente, isso está relacionado pelos desejos e necessidades, agora, explicitados pela publicidade, estarem adormecidos, muitas vezes, em espaços intocáveis, como é o caso dos tabus, uma vez que podem afrontar e até desestabilizar padrões hegemônicos e tradicionalmente aceitos na sociedade. Ilustramos a discussão, por exemplo, com o fato do discurso publicitário cada vez mais agregar características femininas ao comportamento do homem, como o cuidado com a aparência, e que parece ser aceitas apenas parcialmente,

especialmente, quando considerado as questões de classe social. Portanto, “os anúncios publicitários formam um sistema simbólico fundamental, pois, através deles, é possível divisar um vasto panorama do estilo de vida da sociedade contemporânea” (ROCHA, 2006, p.65).

Para além do estímulo à compra, a publicidade ocupa um espaço privilegiado na cultura contemporânea. Ela é um fenômeno cultural capaz de explicar a ordem social e simbólica de períodos históricos, tendo em vista as suas incontáveis representações de valores, comportamentos, situações, acontecimentos e sujeitos. A publicidade coloca-se cotidianamente nas relações humanas e sociais e reinventa-se conjuntamente com os próprios indivíduos, assim, tornando-se uma instituição que ultrapassa os limiares econômicos, formando um “sistema de ideias permanente posto para circular no interior da ordem social, é um caminho para o entendimento de modelos de relações, comportamentos e da expressão ideológica dessa sociedade” (ROCHA, 1995, p.29).

Assim entendido, o discurso publicitário oferece aos receptores mais do que produtos e serviços. Interesses financeiros a parte, ele disponibiliza aos atores representações que se articulam, se reinventam e se reproduzem nas relações cotidianas, na maioria das vezes, até mesmo de forma imperceptível. São modos de ser e socializar, estilos de vida, opiniões, valores, manuais de etiqueta que transcendem a materialidade e o financeiro e colocam-se à disposição de uso, independentemente do sexo, raça ou classe. Mazetti reitera afirmando que “se uma das principais funções da publicidade seria verbalizar os poderes comunicativos dos bens de consumo, as representações sociais produzidas pelo discurso publicitário não se limitariam a esfera das mercadorias” (2011, p. 8). Portanto, são passíveis de apropriação mesmo sem o uso dos produtos e servem como suporte e orientação para que os indivíduos organizem-se, estabeleçam relações e construam suas identidades.

Em termos práticos de reconhecimento, é necessário considerar a complexidade que envolve o universo publicitário, tanto em termos dos sentidos agenciados no âmbito da produção quanto da articulação com o mundo social e seus receptores, fato que exige certo tempo e dinâmica para que as pessoas assimilem e aceitem tais representações. O que queremos dizer é que as representações (re)produzidas pelo discurso publicitário somente ganham sentido e são naturalizadas pelo imaginário social ao longo de seu processo de circulação na sociedade. Mais do que em movimento, é preciso que estejam presente em diferentes plataformas midiáticas (impressas, audiovisuais, digitais, etc.), atuando de modo concomitante e ininterruptamente, no sentido de um fluxo publicitário (PIEDRAS, 2009).

Com base na noção sobre o fluxo televisivo desenvolvido por Raymond Willians7, Piedras (2009) sugere uma valiosa e promissora adaptação da ideia para o contexto publicitário contemporâneo, principalmente, se pensarmos a publicidade “como parte integrante de uma paisagem midiática mais ampla e complexa e as mensagens comerciais passam a ser lidas num contexto de forças culturais mais heterogêneas e contraditórias”