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2. CONTEXTO MAIOR: A DESIGUALDADE ENTRE OS SERES HUMANOS

2.3. A quebra do paradoxo: a intervenção do Direito

É nesse sentido que, em face dos efeitos advindos da concorrência entre os indivíduos e da desigualdade que lhes é constante, o paradoxo somente pode ser rompido através de uma força interventora. Ora, se todo esse estado de coisas parte, afinal, das ações humanas tomadas em meio à vida em sociedade, cabe ao Direito, como regramento desta vida, introduzir mecanismos de intervenção e agir para reverter esses efeitos.

Afirma Meirelles (2002, p. 37) que:

“O Direito, objetivamente considerado, é o conjunto de regras de conduta coativamente impostas pelo Estado. Na clássica conceituação de Ihering, é o complexo das condições existenciais da sociedade, asseguradas pelo Poder Público. Em última análise, o Direito se traduz em princípios de conduta social, tendentes a realizar a justiça”.

Sendo, portanto, o Direito o conjunto de normas imperativas que regulam o comportamento humano, será ele o instrumento idôneo para realizar a intervenção dentro do agir na sociedade.

É o que se depreende, ademais, da “definição kantiana: O Direito é o conjunto das

condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros de acordo com uma lei geral de liberdade” (NADER, p. 76).

A intervenção estatal consiste exatamente na execução das disposições normativas que impõem uma regulação das liberdades. Não é o Estado um ente autônomo que simplesmente proclama a intervenção. É, na verdade, o direito vigente que exige do Estado, que

lhe é executor, a atuação junta às atividades particulares para limitá-las, no intuito de salvaguardar todas as premissas jurídicas que são anteriores às próprias consequências do agir privado.

Não se quer dizer com isso que o Direito antecede ao homem, já que tal afirmativa seria de incoerência patente, ao nível de se admitir que a construção precede ao construtor. O que se quer afirmar, na verdade, é que, após se desenvolver, o Direito conseguiu estabelecer premissas que antecedem às condições da sociedade, pois atendem a previsões racionais a respeito de quais condições são indispensáveis à vida social, resultantes diretamente do empirismo civilizatório humano.

Assim, ainda que os indivíduos almejem certas condições dentro da sociedade, estas não podem contrariar fundamentos intrínsecos à vida social, dentre os quais estão a preservação da vida e a racionalidade nas relações humanas. Nesse sentido, a preservação da vida humana, por um lado, representa a própria finalidade de se viver gregariamente, a fim de mitigar ao máximo as adversidades que o mundo de escassez impõe. Já a racionalidade nas relações humanas, por outro lado, reflete o cerco da previsibilidade e da calculabilidade ao agir alheio, que, prima facie, é uma necessidade variante da preservação à vida e da sustentabilidade das trocas livres, uma vez que a anarquia de comportamento produz riscos bem maiores do que aqueles riscos sobre os quais se pode criar previsão.

A racionalidade consiste, grosso modo, em percepção e controle sobre nexos de causas e efeitos. Assim, o ser racional admite causas ou razões para dados acontecimentos sensorialmente perceptíveis, com base em evidências, sejam aparentes ou comprovadas. Este é o patamar evolucional do ser humano, que, por meio de um cérebro com memória associativa e dotado de um córtex pré-frontal capaz de exercer autocontrole na tomada de decisões, permite-lhe associar circunstâncias a outras, em causalidade, e, desta forma, ante à experiência, prever a repetição delas no futuro e se controlar a fim de agir conforme tais previsões.

Portanto, o ser humano, ao se relacionar com os demais, presenciou que a competição pelos recursos escassos promovia conflitos de elevado risco à vida de quem deles participava. Em outra face, caso não disputassem, acabariam também por sofrer risco à vida por falta de meios de subsistência. A alternativa, ao final, seria promover uma disputa por recursos que não se baseasse nos confrontos diretos e violentos, mas sim nas relações pacíficas das trocas livres. Então, espontaneamente se proliferaram os comportamentos negociais, em que os indivíduos acordavam trocas e convivências pacíficas que lhes permitissem empreender

recursos na atividade produtiva.

A partir desse ponto surge, como já delineada, toda a evolução das relações humanas, das sociedades e do Direito. Retornou-se a isso, todavia, não de forma despropositada, mas sim para demonstrar que os acontecimentos presenciados durante a vida são as causas que devem ser administradas para que ocorra a sua preservação, que vem a ser, portanto, efeito ou resultado destas causas.

A correlação disso com o que foi exposto até agora se refere às consequências da desigualdade, que, quando não administradas, impõem dificuldades de grande prejudicialidade à vida daqueles que as sofrem. Isto introduz uma contradição no seio da civilização racional e do império do direito, em que a preservação da vida é extenuada em razão da ação descompromissada dos mercados com a vida humana.

Veja-se que as trocas livres promoveram, indiscutivelmente, o progresso do padrão de vida da humanidade até então, mas o fizeram por consequência espontânea da otimização que os empreendimentos privados promovem aos recursos disponíveis. E esta ótima alocação de recursos resulta exatamente da transferência de ônus entre os indivíduos e da exclusão dos indivíduos que são ineficientes aos desígnios do mercado.

Neste processo, não há compromisso algum com a vida humana. Como já se percebeu, as relações econômicas entre particulares são primorosamente negociais, o que indica uma troca de benefício entre si e, naturalmente, um uso instrumental daquele que aceita o negócio. As trocas livres, portanto, instrumentalizam os seres humanos uns aos outros e, como tais, submetem ao descarte aqueles que não tiverem uma utilidade ao processo comercial.

Esta é uma das grandes contradições que o Direito presenciou ao longo do progresso da humanidade: a norma jurídica organizou a convivência pacífica entre os seres humanos para que, ao final, estes pudessem desenvolver as próprias relações que comprometeriam a sobrevivência de uns em prol de outros, tendo em vista que, sob a tutela da lei, poderiam transformar a vida humana em mero instrumento para a satisfação dos interesses daqueles que possam ofertar recursos para tanto.

Contradição, também, por causa de a norma jurídica primar pelo ser humano como um fim, um objetivo a ser preservado e protegido, sob o primado da razão, em decorrência da exata constatação de que a pacificidade e a previsibilidade das relações humanas devem atender à promoção do menor risco possível à vida do indivíduo. Esta é a condição ao qual o ser humano

pretende quando engendra a norma de direito: proporcionar o menor risco possível à manutenção da vida humana.

É claro que tudo não provém de uma deliberação única e consciente de todas essas circunstâncias, mas sim do desenvolvimento que ao longo dos séculos foi obtido pelo Direito através das distintas experiências civilizatórias da humanidade, cujo refinamento dos institutos

jurídicos culminou na Era dos Direitos10.

Nesse sentido, a igualdade universal perante a norma coercitiva e a concentração da força no Poder Estatal são exemplos francos de fundamento no menor risco possível: a igualdade formal garante que não haverá prevalência entre uns e outros, o que diminui a probabilidade de se ser preterido, ao passo que o monopólio da força no executor da lei garante, quando prevalecente a própria igualdade formal, que os poderes destrutivos e violentos não recairão sobre aquele que devidamente não atentar contra as regras, evitando que interesses privados exerçam suas próprias forças sobre os demais.

Costuma ser uma circunstância esquecida aquela de que qualquer um pode ser submetido a forças alheias, uma vez que ninguém detém força suficiente para vencer todas as forças adversas. Este é o ponto essencial da construção do Direito enquanto refúgio universal da vida: retira de cada indivíduo a capacidade de utilizar sua força para submeter os demais, a fim de que a força concentrada seja monopólio de um poder previsível e adestrado, evitando que qualquer um seja alvo daquilo que não poderia vencer. O Direito, deste modo, realizou a mágica de, em meio a tantas forças desconhecidas e poderosas, colocar o indivíduo na situação de menor risco possível. Cada pessoa, portanto, para o Direito, vem a ser a finalidade precípua. Esta condição, ainda que originária a todas as normas jurídicas, vem a ser esquecida e mitigada por aqueles que não dependem dela. Quando se possui recursos, se torna possível desmoralizar o Direito, pois apenas a necessidade do indivíduo recorre ao pacto racional. Foi assim em sua origem, quando as necessidades insuperáveis demandaram a convivência pacífica em prol da melhor sobrevivência, e continua sendo assim quando as necessidades clamam pelas condutas racionais dos demais. Porém, quando não há necessidade, isto é, quando não se

10 Um momento da História em que há a um aumento exponencial de direitos, sobre o qual Bobbio (2004, p. 63) afirma que “essa multiplicação (ia dizendo “proliferação”) ocorreu de três modos: a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc”.

submete o indivíduo a alguma perda caso não se haja conforme o Direito, é que este vem a ser ofuscado. E isso é que se passa com a abundância de recursos, por meio da qual as necessidades podem ser superadas e as regras vem a ser uma mera consequência do bel-prazer de quem pode evitá-las.

É o que se vê, por exemplo, naquele que, detendo liberdade e livre disposição de garantias fundamentais, defende a retirada da liberdade e das garantias de outro. Ou quando aquele que tem amplos recursos disponíveis diz que aquele que passa miséria está assim porque não se esforça o suficiente, uma vez que parece fácil demais a ele suportar o esforço. Aquele que não necessita do Direito é o primeiro a querer suplantá-lo, sem lembrar que, somente figura desta forma, porque o Direito o amparou desde sempre.

Apesar de tudo, o Direito se organiza ininterruptamente, pois os indivíduos que dele necessitam sempre continuarão a projetá-lo e a defendê-lo. Continuará sempre, portanto, a sustentar o menor risco a todos.

Nessa visão, a vida humana ser a finalidade da sociedade e do ordenamento jurídico é a máxima garantia contra o acaso, isto é, contra a possibilidade de se vir a ser aquele que necessita de amparo. E este, ao final, é o ponto nevrálgico: a tutela da proteção tem de ser inabalável para o Direito, pois somente dessa forma o indivíduo pode ter a certeza de que, se houver desespero, o auxílio virá. Para atender a isto, todavia, necessita o Direito vencer àqueles que, por não demandarem o auxílio, querem-lhe mitigar e até removê-lo.

E diga-se que nada vem a ser mais racional do que isso. É a própria glória do primado da ideia de justiça, de que não se deve onerar aquele que não merece suportar o ônus. Nesse sentido, a ausência de riscos anárquicos garante que algumas imprevisibilidades absolutas não prejudiquem indivíduos que de forma alguma contribuíram para isso, tendo em vista que, inevitavelmente, as relações humanas tendem a distribuir os ônus existentes na sociedade.

É o que se observa, por exemplo, quando a desigualdade indomada provoca a exclusão de indivíduos do acesso aos recursos disponíveis e lhes impõe trade-offs proporcionalmente perniciosos à medida em que encaram maior miserabilidade de recursos. A imprevisibilidade absoluta do nascimento gera, para aqueles que nascerem a partir desses seres humanos excluídos, colocados à margem, a imposição de ônus que eles não chegaram a contribuir de qualquer forma.

É em face da imprevisibilidade que o ser humano almeja, se lhe for admitido determinar, as condições que ofereçam o menor risco possível. Uma circunstância de fato, inevitável, que possui máxima imprevisibilidade é a do nascimento. Ora, nascer e, ainda mais, as condições de nascença, é, para quem nasce, uma circunstância absolutamente imprevisível. Isto serve para colocar em reflexão como prover condições mais equânimes dentro da sociedade pode ser uma medida profundamente racional, pois, dependendo de qual posição se ocupe, os trade-offs oponíveis possuirão menor disparidade quanto aos prejuízos e, dessa maneira, a “roleta-russa do nascimento” será uma dificuldade mais facilmente superável pela própria desigualdade imanente ao indivíduo, relativa ao mérito, ao esforço, ao labor e à aptidão para vencer adversidades rotineiras e alcançar a abundância econômica sustentável.

Como bem coloca Rawls (2016, p. 16), ao afirmar que "[...] cada pessoa se encontra, ao nascer, em determinada situação em alguma sociedade específica, e a natureza dessa situação repercute de maneira substancial em suas perspectivas de vida".

Uma criança, por exemplo, que nasce em uma família pobre não tem culpa da pobreza, mas terá de suportá-la até que as circunstâncias mudem por causas que lhe são alheias ou até que mudem por seus próprios esforços. Por outro lado, uma criança que nasce em família rica simplesmente pode desfrutar dos benefícios de tal condição, se lhe for admitido, sem prejuízo aos seus esforços a fim de perpetuar esta situação. De qualquer forma, a primeira enfrentará inúmeras dificuldades a mais que a segunda simplesmente pela aleatoriedade de ter nascido, ante a ausência de quaisquer possibilidades de escolha.

Apesar de tudo, não parece factível conceber um mundo onde as dificuldades não existirão, de uma forma ou de outra. Entretanto, parece plenamente viável a oferta de meios interventivos para demolir certos óbices que, impostos pela concorrência em meio à desigualdade de recursos, operam uma rigidez indireta e subliminar à mobilidade econômica. Isto se configura quando, em proporção à pobreza, mais extraordinário tem de ser o esforço ou a capacidade individual para se alcançar as posições mais abundantes, o que não representa, diante de todo o contexto, um arranjo social razoável, ante o prejuízo à maioria da humanidade. Ainda que em meio à normatividade do menor risco, portanto, persiste a distribuição de riscos em benefício de uns e em detrimento de vários. Não é difícil perceber que qualquer indivíduo nota, sensorialmente, a persistência dessa incoerência dentro da sociedade. É comum observar indignações e questionamentos a respeito de por que tantas pessoas possuem tão pouco e tão poucas possuem tanto e como, em meio aos direitos graciosos presentes na letra

da lei, ainda existem tantos massacres à dignidade humana.

Esse estado de coisas relativo à escassez de muitos não pode produzir outra coisa senão a angústia e o sofrimento daqueles que suportam tais agruras. Muitas vezes a revolta cede lugar ao desrespeito às regras jurídicas e à violência, derrubando, tragicamente e em cadeia, as pretensões do Direito.

Deve-se esclarecer, não obstante, que não se pretende apontar classes ou grupos de indivíduos responsáveis pela conjuntura da desigualdade nas sociedades. A bem da verdade, eles parecem não existir, em última instância. Obviamente que algumas classes são claramente mais beneficiadas com a sujeição da maioria à concentração de recursos, porém, quando analisados o andar da história e a natureza do ser humano, percebe-se que a desigualdade e a marginalização, como já pontuado, tendem a ocorrer de forma espontânea, quando totalmente livre o agir humano. Quer dizer, não parece existir, aparentemente, uma conspiração global de classe para escravizar os demais de forma deliberada e planejada, mas sim um mero aproveitamento da capacidade de fazê-lo, por não se existir nenhuma alternativa àqueles que se submetem ao jugo escravizador, isto é, um auxílio àqueles que enfrentam a escassez para que venham a superar esta sem ter de agir extraordinariamente.

Ademais, não se pretende tornar sofrível a condição daqueles que conquistaram a opulência, mas sim, pelo contrário, fornecer meios, para aqueles que estão à margem dos recursos disponíveis, de alcançar o acesso a estes, sem que isto implique em esforços tão raros se comparados aos dos demais. A intenção, notoriamente, é um bem-estar geral na sociedade e não uma vindita entre grupos injustiçados e grupos privilegiados.

Nessa trilha, o Direito reconheceu a contradição que crescia em sua sombra e formulou novas previsões jurídicas, a fim de tentar demolir o que a liberdade selvagem, amparada pela posição negativa do Estado, vem a criar: sociedades de exclusão, a partir da concentração de recursos em poucos indivíduos.

Juridicamente, surgiram, então, os direitos sociais, relativos às garantias do indivíduo quanto à igualdade material, isto é, aos recursos mínimos para se ter uma vida alheia às imposições da pobreza. Direitos estes “por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos” (MENDES, 2013, p. 137).

“O princípio da igualdade de fato ganha realce nessa segunda geração dos direitos fundamentais, a ser atendido por direitos a prestação e pelo reconhecimento de liberdades sociais – [...]. Os direitos de segunda geração são chamados de direitos sociais, não porque sejam direitos de coletividades, mas por se ligarem a reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos têm por titulares indivíduos singularizados”.

Nesse momento da história, o Estado passa a agir positivamente para reverter o processo de exclusão que até então vinha passivamente testemunhando. Acontece que, como explicado, para agir no mundo dos fatos, necessita-se de recursos, levando, dessa forma, o poder soberano estatal a reivindicar dos próprios indivíduos os meios para que prestasse o auxílio interventor.

2.4. O preço da intervenção: o aumento da transferência de recursos para o Estado