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2. CONTEXTO MAIOR: A DESIGUALDADE ENTRE OS SERES HUMANOS

2.4. O preço da intervenção: o aumento da transferência de recursos para o Estado

disponíveis em um mundo de escassez. Percebeu-se, afinal, que esse processo seria irrefreável, caso dependesse apenas do comportamento daqueles que lhe estavam envolvidos, restando ao Direito, sob a premissa de preservar a vida humana e de reintegrar à sociedade aqueles que haviam sido excluídos, intervir para opor limites à exclusão massiva.

Para tanto, o Estado, enquanto arauto do interesse público, já visivelmente atrelado à proteção do bem-estar coletivo, exigiu o maior afluxo de recursos para a sua tutela, cujo destino seria, a partir desse momento, o provimento das necessidades básicas daqueles que estavam à margem da abundância, isto é, à satisfação dos anseios daqueles que tinham pouco ou nada.

É evidente que isto provocou um trade-off para toda a sociedade: o aumento da transferência de recursos para o Estado reduziu os recursos disponíveis para os propósitos particulares dos indivíduos. Desde então, cresceram as críticas contundentes ao poderio do Fisco, de retirar para si aquilo que seria o gozo do indivíduo, antes figura reinante do espectro jurídico.

Diz-se esta última parte porque o que prevalecia até a transmutação do Estado em agente social interventor era o primado da liberdade individual, sob o qual, em face da igualdade formal perante a norma jurídica, o indivíduo poderia realizar, possuindo recursos para tanto, a tudo o que não contrariasse a lei. Nesta perspectiva, o papel do Estado seria, então, o de monopolizar a força, evitando que os indivíduos submetessem uns aos outros, mediante forças próprias; garantir o cumprimento das dívidas e dos pactos negociados e punir aqueles que

contrariassem o convívio pacífico dentro da sociedade.

Os direitos do indivíduo seriam, nessa medida, a própria garantia contra o ente estatal, uma vez que, este, soberano e todo-poderoso, deveria ater-se somente ao regramento, não podendo, dados eventuais interesses de seus agentes, utilizar-se do seu poder fora do império da lei, isto é, à margem da legalidade. Esses direitos individuais protetivos contra a ação estatal constituíram, à luz do Direito, a primeira geração de direitos fundamentais.

Para Bonavides (2004, p. 563):

“Os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.

Este caráter dos direitos de primeira dimensão11 de imposição negativa ao Estado

representa o freio originário que o pacto racional formulador do Poder soberano instituiu ao monopólio da força. Com um poder tão imenso concentrado em comandos que, de alguma forma, seriam exercidos por indivíduos, embora legitimados para tanto, havia a necessidade de limitar-lhes profundamente, a fim de que a atuação do poder estatal não esvaziasse a sua própria finalidade, que é a de concentrar em si a força capaz de executar o direito com imparcialidade e certeza. Assim, impôs-se ao Estado a posição de se abster quanto às ações dos indivíduos, apenas fazendo recair seu poderio sobre as condutas que se desviassem das regras de convivência pacífica. Contudo, em relação às condições materiais do exercício das liberdades e em relação à distribuição dos recursos, o Estado deveria apenas observar o livre agir das vontades privadas, ainda que, em última instância, estas retirassem, sem contrariar a letra da lei, a liberdade de outros indivíduos.

Na primeira dimensão dos direitos fundamentais, portanto, o Estado deveria garantir que nenhum abalo ocorreria diretamente à liberdade. Quanto ao esvaziamento indireto da liberdade, mediante a concentração de recursos e a miséria de parte da sociedade, o Estado, porém, deveria ser mero expectador.

11O termo “gerações” se tornou obsoleto a partir do entendimento doutrinário de que geração sugere uma gradação cronológica dos direitos, de maneira que as gerações seguintes viessem a tornar caducas as anteriores, o que não acontece. Na realidade, existe uma cumulatividade e complementação entre todas as dimensões de direitos, assim consideradas por se referirem a conteúdos principiológicos diferentes, relativos a garantias individuais, coletivas, econômicas, difusas, etc. “Força é dirimir, a esta altura, em eventual equívoco de linguagem: o vocábulo “dimensão” substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo “geração”, caso este último venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações antecedentes, o que não é verdade” (BONAVIDES, 2004, p. 572).

Como se percebe, esse período testemunhou um Estado Mínimo, reduzido à atribuição de carimbar as formalidades da convivência pacífica e dos cumprimentos aos negócios jurídicos e de reprimir às condutas desviantes da literalidade legal. Desde sempre precisou de recursos para agir, mas os exigia, ante ao seu tamanho diminuto, de maneira pouco incômoda. Detinham, portanto, os indivíduos quase a totalidade dos recursos disponíveis, embora acumulados centralmente em disparidade cada vez maior às margens.

Foi tanta abundância e miséria concomitante que questionou como poderia existir justiça e, em última instância, legitimidade, em uma sociedade cuja grande parte dos membros perde a liberdade real. Mesmo diante de um direito eminentemente protetor do indivíduo, parecia que de alguma forma a norma jurídica se esvaziava, pois ao passo em que uma pequena parte agregava para si meios de grande opulência, a parte restante vivia sufocada pela escassez. Dentro da sociedade, alegava-se a prevalência da injustiça, pois não se podia compreender como a disparidade de recursos entre as pessoas, formalmente iguais perante a lei, continuava a aumentar e a separar o exercício das liberdades.

A resposta do Direito foi, então, o reconhecimento de que a vida em sociedade prima pelo acesso a uma vida plena, em que as necessidades básicas do ser humano sejam satisfeitas de forma digna, sem sujeições indevidas ou capazes de desmanchar, ainda que de forma indireta, os seus direitos fundamentais individuais, há muito já instituídos nos códigos. Não foi, portanto, uma revolução jurídica em prol da igualdade absoluta entre os seres, mas sim a percepção de que as liberdades individuais já consagradas exigiam mais do que uma forma: demandavam, também, uma substância, que lhes concedesse uma tangibilidade, isto é, que fosse sensível para quaisquer membros da sociedade.

Assim é como demonstra Silva (2005, p. 789), para o qual “um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria”.

A ação interventiva do Estado, no propósito de demolir as desigualdades e mitigar a pobreza, surgiu, portanto, a partir da transformação do Estado Liberal, que consagrou os direitos de primeira dimensão, em Estado Social, que determinou o compromisso com a justiça social.

ou neutralismo do Estado liberal provocaram imensas injustiças, e os movimentos sociais do século passado e deste especialmente, desvelando a insuficiência das liberdades burguesas, permitiram que se tivesse consciência da necessidade da justiça social [...]”.

E, novamente, discorrendo sobre o Estado Liberal e o Estado Social, Silva (2005, p. 787) afirma que:

“O primeiro (Estado Liberal) firmou a restrição dos fins estatais, consagrando uma declaração de direitos do homem, como estatuto negativo, com a finalidade de proteger o indivíduo contra a usurpação e abusos do poder; o segundo (Estado social intervencionista) busca suavizar as injustiças e opressões econômicas e sociais que se desenvolveram à sombra do liberalismo”.

Essa mudança de perfil do Estado, que deixa de ser expectador para se tornar ator dentro da sociedade, culminou no crescimento da tributação, que, como já se disse, em derradeira escala, representa nada mais do que a transferência de recursos dos indivíduos para o ente estatal soberano, a fim de que possua os meios para exercer as previsões do Direito.

É com este crescimento da arrecadação do Estado, a partir de então, que se poderá trazer à baila quais os efeitos que essa atividade fiscal exerce, pois, retirando recursos dos indivíduos, haver-lhes-á de devolvê-los por alguma forma, seja em retorno direto, por meio de benefícios financeiros concedidos pelo Estado, ou por retorno indireto, mediante as diversas ações tomadas pelo poder público na prestação de serviços e bens aos particulares.

Eis que surge, nesse diapasão, a pergunta sobre a possibilidade de o próprio Estado incrementar a desigualdade entre as pessoas, em total contrariedade a toda a evolução do Direito e da sociedade, admitindo-se que pode vir a fazê-lo de duas formas: (I) extraindo recursos daqueles que possuem, proporcionalmente, menos capacidade de contribuir e (II) transferindo recursos, em retorno, para aqueles que já possuem acesso suficiente a eles. Seja como for, se em uma dessas formas incorrer, opera-se, mediante ação estatal, um incremento à injustiça ontológica que ele próprio pretendia solucionar com sua ação interventiva, devendo-se, portanto, se refletir sobre isto.