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Os antagonismos no âmbito da música eletroacústica mista vão além daqueles que circundam o par escrita/escritura. Há uma dico-tomia causada pela própria diversidade de técnicas para a produção dos sons eletroacústicos, denominada por Manoury (1998b) de

querela dos tempos. Este termo refere-se às divergências existentes

na atualidade com relação ao uso das técnicas em tempo real ou em tempo diferido. Esta discussão, numa esfera compositiva, adquire proporções diversas daquelas que abordamos anteriormente, rela-tivas à liberdade interpretativa do instrumentista – ou à falta dela – no uso de um ou outro meio de difusão eletroacústica.

Diante disso, é fundamental ressaltar algumas características bastante particulares a cada uma das técnicas de difusão dos sons eletroacústicos. Desde que surgiram, os sons eletroacústicos em tempo diferido sofreram poucas mudanças. Apenas foi trocado o seu suporte inicial – o disco e, logo depois, a fita magnética – pelos computadores ou outras mídias móveis, tais como os compact discs (CDs) e os digital video discs (DVDs). O surgimento da música mista foi praticamente concomitante ao da própria música acus-mática, e os sons eletroacústicos gravados em fita magnética cons-tituíram um tipo de tecnologia que sofreu poucas alterações desde a década de 1950 (ver Bennett, 1990, p.32 ss.). O suporte pode ter sido modificado, mas o princípio preservou-se desde a sua gênese: os sons são gravados em momento anterior à performance da obra.

As técnicas em tempo real, por sua vez, surgiram um pouco mais tarde e aprimoraram-se com o passar dos anos. Devido aos progressos técnicos na área da síntese sonora, sempre foram benefi-ciadas com a evolução das pesquisas tecnológicas. Desse modo, não

é incomum detectar certas posturas sectárias, comumente adotadas pelos defensores dos sons em tempo real, que atribuem à eletroa-cústica em tempo diferido o estigma de antiga ou ultrapassada. Ao mesmo tempo, os avanços tecnológicos na área da eletroacústica em tempo real são vistos como supérfluos por aqueles que defendem a eletroacústica em tempo diferido, pois desviariam a atenção do compositor do próprio embate com a obra para uma espécie de “deslumbramento tecnológico”.

Apesar de as técnicas em tempo real propiciarem aos instru-mentistas maior liberdade do ponto de vista do tempo cronológico, no que se refere à elaboração compositiva – ou seja, à escritura – geravam, até pouco tempo atrás, uma perda inevitável, pois não possibilitavam uma profunda elaboração da morfologia sonora:

Se a música live se distingue por uma maior flexibilidade, em contrapartida ela não atenta, a não ser em raros casos, para a com-plexidade musical, como ocorre em grande parte das obras para fita magnética [eletroacústica em tempo diferido]. (Bennett, 1990, p.35)

Na atualidade, porém, programas tais como o Max/MSP alar-gam de modo considerável o âmbito das intervenções em tempo real, de forma que essas limitações já não se fazem necessariamente presentes. Fazemos tal afirmação porque, em uma obra mista com sons em tempo real, os sons eletroacústicos derivarão, em grande parte, dos sons produzidos pelos próprios instrumentos musicais também envolvidos na esfera compositiva, o que resulta, inevita-velmente, em semelhanças morfológicas entre os dois universos.

Assim, devido ao fato de tais transformações serem quase simul-tâneas à performance instrumental – ainda que o som eletroacústico não seja literalmente produzido em tempo real, mas com um atra-so ínfimo, imperceptível ao ouvinte –, é mais difícil realizar uma elaboração dos sons eletroacústicos que revele uma independência espectral em relação às fontes instrumentais. Portanto, enquanto os sons eletroacústicos em tempo real podem trazer certo

“confor-to” e flexibilidade temporal ao instrumentista, do ponto de vista compositivo pode existir prejuízo, até certo ponto, no que tange à elaboração sônica da obra. A esse respeito, Menezes afirma:

A crítica de cunho bouleziano [...] de que o tempo fixado em suporte não pode se tornar orgânico numa interação bem-suce-dida não faz nenhum sentido, porque uma interação efetiva não dependerá do fato de os sons eletroacústicos serem fixados ou não, mas sim da elaboração de tal interação no âmbito compositivo, de acordo com as possibilidades morfológicas. (Menezes, 2002b, p.306, grifos do autor)

Com base nessas afirmações, consideramos que o aspecto deter-minante da flexibilidade de uma obra eletroacústica mista não é o tipo de técnica utilizada na construção dos sons não instrumentais, mas sim a forma como o compositor concatenará suas ideias e orga-nizará os eventos musicais da sua composição.

Uma das estratégias compositivas para que isso ocorra reside no conceito de fusão e contraste entre estruturas eletroacústicas e instrumentais.7 Por esse conceito, a fusão consiste na necessida-de necessida-de necessida-determinadas transferências localizadas necessida-de características espectrais de um universo sonoro para outro. Para tanto, é mais interessante que o compositor trabalhe com sons provenientes dos próprios instrumentos musicais utilizados na composição, ao invés de eleger outras fontes. Isso resultará em uma identidade sonora entre ambas as esferas e, como consequência, haverá a fusão das partes instrumental e eletroacústica. O contraste, como o próprio termo sugere, consiste na diferença absoluta entre os universos so-noros. Sua presença se faz necessária porque é justamente por meio da percepção do contraste que o ouvinte poderá apreender de modo apropriado a fusão entre os universos instrumental e eletroacústico.

7 Ver Menezes (1996, p.13-20; 2002b, p.305-11; 2006, p.377-99), cujos textos tratam exatamente dessa questão.

A partir disso, fica evidente que na música eletroacústica em tempo real sempre existiu, até certo ponto, a preponderância inevi-tável da fusão, pois os sons eletroacústicos derivam diretamente das fontes instrumentais. Embora isso seja interessante por projetar a emissão instrumental no espaço acústico, enriquecendo a sonorida-de dos instrumentos e “ampliando o som”, do ponto sonorida-de vista audi-tivo o uso exclusivo desse recurso acaba limitando as possibilidades de elaboração sonora de que um compositor poderia lançar mão em uma obra mista.

Por outro lado, reconhecida a importância do contraste entre a parte eletroacústica e a instrumental, uma obra mista não pode conter apenas momentos de completa distinção entre esses univer-sos. O compositor poderia trabalhar as infinitas possibilidades de exploração sonora existentes entre os dois extremos considerados nesse contexto e, para que ele atue dentro desse prisma, torna-se inevitável pré-elaborar o material eletroacústico que fará parte da obra. As ideias de Bennett vêm ao encontro de tais premissas e re-forçam a questão da querela dos tempos:

Se é certo que a música para fita magnética oferece sonoridades e sensações diferentes [referindo-se aqui à questão da inflexibili-dade temporal que esse suporte pode conferir ao instrumentista], esta diferença não se constitui como um argumento favorável à superioridade da música live [...]. Se a música live se distingue por possuir maior flexibilidade, ela não atenta, em contrapartida, a não ser em raros casos, para a complexidade, assim como ocorre em muitas obras para fita magnética. (Bennett, 1990, p.34 ss.)

Além disso, ao realizar uma análise histórica da música eletroa-cústica, percebemos que, desde os seus primórdios, tratou-se de um gênero cujo momento de criação das obras é uma experiência sensorial para o compositor, pois ele trabalha com o som em si, dedicando uma atenção refinada para a própria estruturação dos sons. E um controle desse tipo dificilmente é aplicável no contexto da eletrônica em tempo real, porque a elaboração minuciosa da

morfologia sonora só é possível mediante um trabalho anterior à execução da obra, em estúdio. Ou seja, o argumento que defende a continuidade histórica oferecida pela eletrônica em tempo real – já que nela a figura do intérprete volta a ter destaque – é rebatido com outro de cunho histórico: a essência primordial do gênero eletroa-cústico consiste no trabalho rigoroso em estúdio, em fase anterior à performance da obra, de modo a garantir aos sons compositivos uma elaboração rica do ponto de vista espectromorfológico.

Até pouco tempo atrás, o compositor eletroacústico podia en-contrar-se diante de um impasse: privilegiar o intérprete e fazer uso dos recursos em tempo real, relegando ao segundo plano a ela-boração compositiva, ou primar pela continuidade histórica que a música em tempo diferido proporciona, não atentando para os avanços tecnológicos no âmbito da síntese e do tratamento sonoros em tempo real. Esse é o dilema que os adeptos da querela dos tem-pos propõem.

Na época atual, existem caminhos alternativos para o compo-sitor, vias de trabalho que transitam pelas duas esferas. É possível aliar, por exemplo, uma meticulosa elaboração compositiva, reali-zada em estúdio, com a atenção às necessidades dos instrumentistas, sem adotar uma ou outra postura sectária. Isso pode ser obtido com a utilização do reconhecimento de partitura (Manoury, 1998b), tal como nos é oferecido hoje pelo programa Max/MSP. Embora seja comumente chamado de seguidor de partitura (partition suivi), não se trata de um seguidor propriamente dito,8 mas sim de um siste-ma que detecta os pontos nos quais deverão ser acionados certos trechos musicais eletroacústicos elaborados em tempo real, a partir de determinadas ações do instrumentista, o que Manoury (1998b) denomina partituras virtuais (partitions virtuelles). Assim,

o reconhecimento de uma partitura executada por um intérprete se limita geralmente a marcar pontos de referência dentro de uma

8 Manoury (1998) também afirma que o termo “seguidor de partitura” é impró-prio para esse dispositivo.

sucessão cronológica de eventos que admite uma certa tolerância ao erro. Espera-se um evento anteriormente memorizado e o proces-sador deve reconhecê-lo instantaneamente. A partitura instrumen-tal é anteriormente codificada, e o processador compara os eventos detectados com aqueles que são cronologicamente supostos [...], o que é feito por meio de uma “janela de análise” que não trabalha com o reconhecimento de eventos isolados, mas sim com uma cole-ção de eventos. (Manoury, 1998b, p.75, traducole-ção nossa)

Portanto, a partir desse recurso seria possível promover um entrelaçamento das técnicas em tempo diferido e em tempo real. Estruturas anteriormente elaboradas em estúdio, que possuem um momento exato para serem disparadas no discurso temporal de uma obra, seriam acionadas a partir das ações do instrumentista, o qual, por sua vez, teria maior conforto, do ponto de vista cronológico.