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Conlon Nancarrow: a dialética entre humano e não humano e a sua permanência na obra ligetiana

Na década de 1980 instauraram-se em definitivo novos rumos na poética musical de Ligeti. Após uma pausa de alguns anos na

4 Clendinning (1993) esclarece que esse interesse pelo meccanico, por máquinas que não funcionam de forma correta, é pensado musicalmente em Poème

atividade de compositor, entre 1978 e 1982, antecedida por compo-sições que prenunciaram o que seria perseguido na sua última fase – sobretudo em Monument –, abriu-se o caminho para composições rítmica e metricamente complexas. As suas experiências anteriores, cujo enfoque situava-se, de modo preponderante, nas relações po-limétricas e polirrítmicas do tecido compositivo, foram ainda mais aprofundadas a partir do contato com a música tradicional africa-na, em especial aquela produzida pelos povos ao sul do Saara. Tal música, tão distante da vivência de Ligeti e da concepção musical ocidental, exercia nele um tipo de prazer motor e corpóreo análogo apenas ao seu processo compositivo de obras para piano, em que os conceitos táteis – a anatomia das suas mãos em relação ao teclado e tudo o que isso envolve – eram tão importantes quanto os dados acústicos (Ligeti, 1996).

Ademais, a liberdade com relação à métrica ocidental, que Li-geti pensava ter sido inferida pelas manifestações africanas, veio ao encontro da antiga busca do compositor por estruturas de cunho global constituídas por camadas, as quais, em um misto entre o conceito micropolifônico e o da proposta observada em Poème

sym-phonique, possuem intrincados padrões rítmicos. Segundo Ligeti:

Quando esta música é corretamente executada, o que significa estar na velocidade correta e com as acentuações apropriadas em cada camada, depois de um tempo consciente ela “decola” como um avião a partir de seu início: o elemento rítmico, complexo de ser seguido isoladamente, passa a ser uma suspensão. Essa renúncia de

estruturas isoladas por um tipo de estrutura global é minha motiva-ção fundamental. Desde o final da década de 1950, ou seja, desde

a composição das peças orquestrais Apparitions e Atmosphères, estou à procura de novas soluções para realizar essa ideia basilar. (Ligeti,1988, p.297, grifo do autor)

Nesse excerto, observamos uma clara referência ao cerne da mi-cropolifonia e, em consequência, a comprovação de que o pensamen-to eletroacústico ainda encontrava-se presente nas obras do período.

Além disso, a ênfase nos aspectos métricos e rítmicos correlacio-na-se, da mesma maneira, com as primeiras experiências eletrônicas do compositor. Tal aspecto coaduna-se com a ideia de iteração de padrões provenientes da geometria fractal de Benoît Mandelbrot, com seu interesse pela teoria do caos, com as construções gráficas intrincadas de Mauritius Escher e também com a pianística de Bill Evans e Thelonius Monk, explicitadas principalmente no estudo

Arc-en-ciel (no 5, primeiro livro).

No entanto, foi a partir do contato com a música de Conlon Nan-carrow que Ligeti conseguiu alcançar tal ideal com plena potencia-lidade. Nos célebres Estudos para pianola, Nancarrow construiu tramas rítmicas e métricas de alta complexidade, inexecutáveis por um intérprete humano. Isso também explica a escolha da pianola: a exclusão do instrumentista do contexto da performance tornou fac-tíveis tais engendramentos. Assim, embora as motivações composi-tivas de Nancarrow se relacionem, em grande medida, com os ideais de Charles Ives, esse compositor parece revisitar a autonomia com relação ao intérprete própria da música acusmática, um dos fatores considerados profícuos desse gênero quando do seu surgimento e ainda defendido por muitos compositores dessa esfera. Nesse novo contexto, não se faz presente, entretanto, o aparato relativo à difu-são eletroacústica. Tal independência ocorre em um plano “acústi-co”, no sentido de ser destituído de transmissão por alto-falantes.

Assim, o entusiasmo de Ligeti com a obra de Nancarrow muito se deveu ao fato de que esta eliminou o fator que mais o desagradava no campo da música eletrônica: a difusão da música por meio de alto-falantes e o caráter nivelador que estes exercem sobre a produ-ção do som. A viabilidade desse aspecto trouxe-lhe a sensaprodu-ção de que seria possível engendrar quaisquer configurações métricas que imaginasse, constituindo-se como um viés bastante adequado para a configuração de ideias recorrentes.

Apesar disso, é evidente que Ligeti não eliminou por completo o intérprete do seio da sua obra. Embora entusiasmado com as com-posições de Nancarrow, e a despeito do seu profundo apreço pela ainda recente música computacional, ele visava a obter os resultados

antes descritos principalmente por meio da performance, de modo a aliar os aspectos nela observados ao virtuosismo instrumental. Assim se explica também a decisão de compor os Estudos e o

Con-certo para piano, obras que tradicionalmente pressupõem grande

virtuosismo por parte do intérprete e desafiam os próprios limites do instrumentista.

Observamos no seio da obra ligetiana o ápice do dualismo entre passado e presente, humano e não humano: de maneira não inten-cional, Ligeti incorporou definitivamente o dilema que as máquinas trouxeram à música, além dos caminhos trilhados quando ainda era recente o seu contato com a vanguarda do pós-Segunda Guerra. No contexto musical estabelecido pelo compositor a partir da década de 1980, tal aspecto manifesta-se por meio da busca pelo virtuosismo. Diferentemente do que observamos no período romântico – no qual o virtuosismo é instrumento de transcendência do próprio homem –, no final do século XX esse aspecto tornou-se um elemento indi-cativo das limitações humanas, diante da existência das máquinas. Se já ao final da década de 1950 as Sequenze de Berio abordavam o virtuosismo sob um viés humano, a partir de uma oposição entre intenção e gesto e como uma aglutinação de representações afetivas, em Ligeti esse aspecto surgiu, décadas depois, como elemento de tensão, manifestando um conflito entre o não humano e a própria natureza humana do intérprete.

Ademais, conforme observa Manoury, o gesto do instrumentis-ta – percebido pelo especinstrumentis-tador atrelado ao som que em seguida se produz – desmorona frente à virtuosidade:

A fascinação que [a virtuosidade] pode exercer provém do fato de que o ouvinte não mais percebe tal relação em seu modo mais imediato: os efeitos parecem desmedidos com relação a suas causas, ou ainda às potencialidades que se atribuem a essas causas. (Manoury, 1988, p.207)

Tal concatenação, que resulta no rompimento dessa relação cau-sal, possui caráter ilusório: da mesma forma que aparentemente

concede ao intérprete um poder maior do que o real, tal aspecto – designado por Manoury como um desvio do fator de causalida-de5 – liga-se ao conflito instituído pelo uso das máquinas na esfera musical. Como já abordamos no Capítulo 1, esse tipo de embate é largamente discutido no campo da música eletroacústica mista, visto que os universos instrumental e eletroacústico são paradoxais, devido às suas naturezas divergentes.

Em vista disso, ao introduzir em sua concepção escritural a ideia do meccanico, que faz referência aos autômatos, Ligeti não eximiu de sua obra a problemática que tange também à música eletroacús-tica mista: o embate entre os elementos humanos e os mecânicos ou tecnológicos.

Como é do seu feitio, entretanto, o compositor enfrentou tal dilema sob um viés peculiar: dentro dos limites do universo instru-mental. Embora Ligeti e Berio tenham trilhado vieses tão distintos na abordagem do virtuosismo, o instrumento musical desempe-nhou, para ambos, papel basilar nas suas escrituras. Ligeti parece concordar com as assertivas de Berio, para quem

os instrumentos musicais são ferramentas úteis ao homem, mas lhes falta objetividade: produzem sons que são tudo menos neu-tros, que adquirem significado ao confrontar o significado em si à realidade dos fatos. Eles [os instrumentos] são o depositório concreto da continuidade histórica e, como todas as ferramentas de trabalho e construções, têm uma memória. Carregam consigo traços das mudanças musicais e sociais e das molduras conceituais nas quais foram desenvolvidos e transformados. [...] São todos ferramentas do conhecimento e contribuem para fazer a ideia em si.

Verbum caro factum est (o verbo se fez carne), com doçura e técnica.

(Berio, 1996, p.25)

5 Utilizada por Manoury (1988), essa expressão consistiria “numa das razões fundamentais desse estranho modo de comunicação que se estabelece entre os produtores de mensagens (intérpretes e máquinas) e o ouvinte” (p.206).

Observamos que, na obra de Ligeti, os universos instrumental e eletroacústico interagem ao nível da escritura. O compositor traduz o macrocosmo que tais esferas abarcam para o microcosmo das suas composições para piano.