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A interpretação musical: definição do conceito e sua abordagem no contexto da querela dos tempos

O aspecto interpretativo1 consiste em um dos principais objetos ao se discutir a música mista. Uma provável justificativa para isso talvez resida no fato de esse gênero ter reincluído a figura do intér-prete no contexto eletroacústico.

Ao tratarmos a música mista e o retorno da presença de instru-mentistas por ela propiciado, é pertinente reiterarmos as afirma-ções de Pousseur (1966): à medida que se frustraram as tentativas

1 De acordo com Nattiez (2005), “o conceito de interpretação não é autoevi-dente e a duplicidade do termo é impressionante: há interpretação como

rea-lização sonora e viva de uma partitura, mas, também, interpretação como ato de compreensão [...]. No sentido fundamental do termo, interpretar é dar vida

às redes de significações múltiplas. E, se existe, entre os dois casos, uma tal proximidade entre a interpretação do artista e a do exegeta, isto se dá porque estamos em presença, em cada um deles, de um fenômeno de caráter

hermenêu-tico” (p.143, grifos do autor). Convém ressaltar que o termo “interpretação”

é entendido aqui como o ato de o instrumentista veicular uma composição musical. Embora se saiba que o ouvinte também pode ter sua “interpretação” da obra – o que será abordado adiante, quando se tratar a escuta propriamente dita –, usou-se o termo apenas em relação à ação do intérprete-instrumentista.

iniciais de controle rigoroso do som na esfera da eletroacústica, deu--se início a uma busca por caminhos de caráter mais imaginativo, que permitiam atingir um equilíbrio entre o intuitivo e o racional. Assim, para Pousseur, a música mista consiste justamente nesse caminho de equilíbrio, ao aglutinar as duas características citadas: o cálculo, que remete à parte eletroacústica da obra, de natureza nu-mérica (Manoury, 1998b), e a imaginação, possibilitada pela escrita instrumental e estreitamente ligada ao ato interpretativo.2

Se com o surgimento da música eletroacústica o compositor sentia-se autônomo com relação ao intérprete e aos gestos instru-mentais para a veiculação de sua obra – independência que, por sua vez, tornou factíveis estruturas musicais muito mais complexas, pois as limitações humanas do intérprete passaram a inexistir nesse contexto –, logo os compositores começaram a buscar justamente um caminho no qual a inclusão de instrumentos musicais em uma obra do gênero poderia não apenas trazer maiores possibilidades no que tange à riqueza sônica da composição, mas também estabelecer um elo histórico delineado com clareza entre os gêneros puramente instrumental e eletroacústico. E, a partir disso, surgiu no contexto da música eletroacústica outro fator que deve ser abordado: a inter-pretação musical.

O conceito de interpretação musical é, em si, alvo de contro-vérsias. Alguns consideram possível produzir, por meio do ato interpretativo, uma leitura da obra totalmente fiel ao pensamento do compositor no ato criativo. Seria missão do artista reproduzir com fidelidade as intenções do compositor reproduzidas na parti-tura, expressando exatamente o que ela significa (Nattiez, 2005).

Consideramos essa visão incompleta, pois concebe a escrita como alvo de uma única interpretação, validada somente por meio de uma pretensa tradução fiel do pensamento do compositor ao conceber a sua obra. A escrita instrumental possui um poder de

2 Manoury (1998b) afirma: “a interpretação é imaginária, provocada pelo hábito de leitura, pela faculdade de perceber [...], pelo simples ato de ler uma partitura” (p.65, grifo do autor).

abstração que permite certa arbitrariedade, em uma escala de va-lores interpretáveis absolutos ou relativos. É possível fazer emergir uma multiplicidade de significações, pois, além de a escrita permi-tir diversas leituras, por ser relativamente arbitrária, as próprias estratégias compositivas apresentam grande variabilidade e com-plexidade (Nattiez, 2005). Por esse motivo, é impossível haver uma única interpretação plausível de qualquer composição musical. Do mesmo modo que o compositor engendra uma infinidade de caminhos no ato de compor, o ato interpretativo exige que o instru-mentista possua um nível correspondente de engenhosidade para desvelar uma obra.

Partilhamos do conceito de interpretação musical arquitetado por Nattiez:

[Uma] posição que pode ser qualificada, simultaneamente, de

pluralista, construtivista e semiológica. Pluralista, porque [...], na

música [...], as significações são múltiplas, e não podemos nos ater a uma concepção reducionista [...] da interpretação artística.

Cons-trutivista, porque da mesma maneira que o ato composicional leva

progressivamente à existência de alguma coisa que antes dele não existia, os atos de interpretação [...] engendram formas simbólicas que modificam as configurações da paisagem cultural, intelectual e estética. Semiológica [...], porque não se podem localizar as sig-nificações musicais em apenas um dos três níveis da tripartição: o universo do compositor, as obras que criou, a performance dos intérpretes e a atividade perceptiva. (Nattiez, 2005, p.153, grifos do autor)

Em vista disso, de acordo com o autor,

quando pensa estar sendo fiel ao compositor, o intérprete, na rea-lidade, está meramente selecionando, com referência às possíveis causas da gênese da obra e à multiplicidade de significações que um autor lhe investiu, um enredo possível que nos é transmitido pelos meios apropriados de sua técnica de interpretação. Na interpretação,

assim como na história, é impossível levar tudo em consideração [...]. Conhecemos, apenas, o vestígio daquelas significações, jamais, diretamente, elas mesmas. (Nattiez, 2005, p.157, grifos do autor)

Desse modo, de início banida do contexto da música eletroa-cústica pura (acusmática), mas fazendo-se novamente presente no gênero misto, a figura do intérprete – aqui entendido como o veiculador de uma composição por meio de sua performance ins-trumental ou vocal – possibilitou a busca pelo imaginativo e con-feriu, de certa forma, maior maleabilidade às obras, o que atendeu ao desejo dos compositores de mantê-las relativamente inacabadas. Ressurgiu, portanto, no âmbito da música eletroacústica, o aspecto da variabilidade musical, a qual emerge a cada interpretação de uma obra, seja quando feita com instrumentistas diferentes,3 seja quando um mesmo intérprete repete a performance de determinada composição.

Isso permite entender a ênfase dada ao intérprete na querela dos tempos e no seio da música eletroacústica mista. No entanto, apesar da sua inegável importância, o foco das discussões não pode concentrar-se apenas nesse aspecto, visto que a interpretação musi-cal complementa o ato compositivo, colaborando para a atribuição de sentido ao todo da obra. Assim, interpretação e composição constituem facetas de igual valor, indissociáveis: quando a escrita chega ao seu limite, surge o intérprete, o qual, por meio da interpre-tação do texto musical, selecionará e construirá um enredo possível para a obra, baseando-se nos dados escriturais.

3 A esse respeito, Nattiez (2005) questiona: “se dois intérpretes de igual valor e probidade podem dar, de uma mesma partitura, interpretações apenas muito pouco diferentes, é lícito perguntar se essa partitura possui uma verdade ‘em si’ ou se, ao contrário, oferece a cada intérprete uma verdade diferente” (p.145). O próprio autor responde à questão utilizando as palavras de Paul Veyne: “A verdade é filha da imaginação” (apud Nattiez, 2005, p.147). Por-tanto, ao remeter à liberdade existente no referido processo, o autor refuta a possibilidade de existir uma única leitura literal da partitura, mas sim um momento de (re)criação.

E não é apenas devido ao fato de a composição, a interpretação e a escuta terem a mesma importância em uma obra musical que se consideram superficiais as discussões relativas à querela dos tem-pos. No que tange à esfera da interpretação em si, tais apontamen-tos são consideravelmente restritivos. Ao se abordar unicamente a questão da flexibilidade interpretativa do instrumentista na música mista e a “prisão temporal” a que é submetido pelos sons em tempo diferido, outras ideias intrínsecas ao ato interpretativo são relegadas a segundo plano, considerando-se somente a característica mais imediata da música: a de consistir em uma arte temporal, em que se encadeiam sons no tempo.4

Diante dessa característica dessa arte, tratar a questão da li-berdade interpretativa do ponto de vista do tempo cronológico é compreensível e necessário. No entanto, a música também é fruto do pensamento, um fenômeno atemporal, “espacial, ordenado, que somente depois se encarna nas formas simbólicas lineares, seja a linguagem ou a música” (Nattiez, 2005, p.98). Sua manifestação também acontece, dentre outras formas, por meio da interpretação musical, oriunda da imaginação do intérprete. Por intermédio do pensamento imaginativo, o instrumentista realiza conexões entre as partes e o todo da obra, dentro de limites que, apesar de conhecidos, comportam certa relatividade.

Em vista disso, o intérprete encontra-se diante de um paradoxo: dar forma à música, uma arte essencialmente temporal, através do ato de pensar, cujo caráter é atemporal. Para realizar essa transtação da atemporalidade para a temporalidade, a interpretranstação mu-sical desconsidera uma série de leituras possíveis de uma obra. A linearidade própria do tempo, para Nattiez (2005), não permite que seja desvelado “todo o feixe caótico e multidimensional de todas as significações situadas ‘detrás’ da obra”. O autor considera que

4 Ao comparar mito e obra musical, Lévi-Strauss (2004) afirma que trata-se de “linguagens que transcendem, cada uma ao seu modo, o plano da linguagem articulada, embora requeiram, como esta, ao contrário da pintura, uma dimen-são temporal para se manifestarem” (p.35).

para além das contingências do timbre, da instrumentação e do andamento, a interpretação tem por objetivo tornar manifesta uma estrutura transcendente na qual reside o absoluto da obra musical, um absoluto que deve escapar das vicissitudes da temporalidade. (Nattiez, 2005, p.101)

É exatamente a partir dessa premissa que a questão da liberdade interpretativa no âmbito da eletroacústica mista deve ser pensada. Alguns entendem que, além do embate existente entre temporali-dade e atemporalitemporali-dade a que o intérprete é constantemente subme-tido, no caso de obras com sons em tempo diferido ele ainda precisa lidar com o tempo não humano do suporte tecnológico. No entanto, é preciso ressaltar que, mesmo no caso da eletroacústica em tempo real, ele se encontrará diante desse paradoxo.

No que tange ao aspecto da “prisão temporal” gerada pela eletroacústica em tempo diferido, esse conceito não é totalmente válido. Embora existam na partitura pontos que devem ser sin-cronizados, o intérprete pode ter relativa flexibilidade entre eles. Além disso, da mesma forma que, em uma obra convencional, é necessário submeter a interpretação a aspectos como o contexto estilístico e até mesmo à observação rigorosa dos valores absolutos nela existentes,5 em uma composição mista isso também ocorre, no que se refere à parte instrumental.

Portanto, independentemente do tipo de difusão a ser utilizado nesse contexto, “a liberdade de que [o intérprete] dispõe para a construção de seu enredo interpretativo estará limitada pelo fato de que as verdades locais podem ser, às vezes, estabelecidas com segurança” (Nattiez, 2005, p.161, grifo nosso). Isso remete ao fato de que a interpretação musical, embora seja fruto do imaginário do instrumentista-intérprete, também está calcada em parâmetros

5 Lévi-Strauss (2004) assevera que existe na música um continuum externo, “cuja matéria é constituída [...] por acontecimentos históricos ou tidos por tais [...] e, no outro caso, pela série igualmente ilimitada de sons fisicamente realizáveis” (p.35).

externos a ele, os quais auxiliam na constituição do “entorno” da obra. Por isso, ao lidar com fatores externos a si próprio, aspecto intrínseco à natureza de sua atividade, o intérprete não trabalha em um nível que não lhe seja familiar. Isto invalida a ideia de que, submetendo-se ao tempo proposto pelos sons prefixados em su-porte, o instrumentista confrontará com algo estranho ao que está habituado em sua prática interpretativa.

Ao abordar a questão do tempo externo ao intérprete, surge outro viés que não pode deixar de ser mencionado. No caso de obras eletroacústicas mistas que envolvem mais de um instrumen-tista, existe também, além da questão paradoxal temporalidade

versus atemporalidade, o problema da sincronização entre os

intér-pretes. Soma-se a essa conjuntura, portanto, o tempo exterior pro-veniente de outro ser humano, uma realidade comum no âmbito da música tradicional, tanto no caso de obras orquestrais quanto camerísticas.

Como afirmamos, esse tempo exterior é similar àquele proposto pelo suporte tecnológico na música mista com sons em tempo dife-rido, com a diferença de que este último é não humano, e os outros são humanos. Na música mista com sons em tempo diferido que pressupõe mais de um intérprete – como é o caso de Kontakte, de Stockhausen –, os sons prefixados em suporte auxiliam essa sincro-nização, pois estabelecem pontos de chegada e partida de eventos. Dessa forma, mantém-se certa independência – ou, como preferem os adeptos da querela dos tempos, certa liberdade interpretativa – entre os próprios instrumentistas envolvidos na execução e, con-comitantemente, há uma latente flexibilidade durante os intervalos entre os instantes a sincronizar.

Outro fator é a própria intrusão das máquinas no fazer musical e suas implicações para o intérprete. Como afirma Belet (2003), as inovações técnicas introduzidas na esfera musical afetam todos os aspectos nela envolvidos, inclusive a interpretação. De acordo com as mudanças ocorridas no campo técnico, o instrumentista precisa adaptar sua técnica de execução para adequá-la à nova realidade.

Na eletroacústica em tempo real, o intérprete ainda lida com o fato de que o som que ele imagina nunca será idêntico àquele que resulta das transformações em tempo real. No ato interpretativo, faz parte do processo imaginar também a resultante sonora das ações sobre o instrumento: as variações tímbricas que podem ser produzidas nele, os modos de ataque para obter tais resultados, a intensidade sonora que se deseja em determinados trechos, entre outros aspectos. Assim, por mais que o instrumentista envolvido na performance de obras mistas com sons em tempo real esteja acos-tumado com essa prática, sempre haverá certa imprevisibilidade no modo como a parte eletroacústica soará. Dessa forma, embora ele tenha uma ideia geral sobre essas resultantes sonoras, é muito pro-vável que o que imaginou não corresponda totalmente à realidade: não é possível existir uma total previsibilidade tímbrica com relação aos sons eletroacústicos.

Portanto, o caráter imprevisível com que o intérprete lida na eletroacústica em tempo real é mais relevante do que a própria questão da falta de liberdade interpretativa produzida pelos sons em tempo diferido, fator defendido pelos sectários da querela dos tempos. Isto porque, ao contrário da questão dos tempos, que en-volve a prática musical com sons prefixados em suporte, o embate entre som imaginado e som resultante é, de certa forma, a prática instrumental, em que o intérprete é treinado, desde o início de seus estudos, a ligar-se ao som que produz, de forma a controlá-lo e obter os melhores resultados tímbricos possíveis, dentro das capa-cidades do instrumento musical sobre o qual atua.

A partir das observações aqui apresentadas, fica claro que a querela dos tempos é uma análise parcial também do ponto de vista interpretativo, pois restringe a própria questão da temporalidade musical apenas ao viés do tempo cronológico. Se o ato interpretati-vo consiste no embate entre o tempo do intérprete – tempo que, por sua vez, é calcado na imaginação do instrumentista, fator atemporal – e os tempos exteriores a ele – sejam aqueles provenientes de ou-tros instrumentistas ou do regente, seja o tempo linear a que todos

estão submetidos –, é necessário considerar toda essa conjuntura, e não apenas concentrar-se em uma fração dela.

A questão da liberdade interpretativa possui o mesmo nível de problemática nos dois tipos de difusão eletroacústica. Isto porque, ao contrário do que defendem os sectários dessa discussão, tanto o tempo diferido quanto o tempo real proporcionam relativa flexibi-lidade ao instrumentista. O intérprete, no entanto, sofre a interfe-rência de fatores ligados ao tempo, comuns a qualquer obra musical que envolva intérpretes humanos. Por isso, apesar de alguns con-siderarem que a música eletroacústica em tempo real proporciona maior liberdade ao instrumentista, trata-se de fator que não leva em conta, com maior profundidade, a questão do ato interpretativo.

A escuta: desdobramentos e alterações no