• Nenhum resultado encontrado

ecos de uma obra experimental na produção compositiva posterior de Ligeti

Devido ao seu caráter nitidamente experimental e levando em consideração a totalidade da obra de Ligeti, Poème symphonique pode ser vista, em uma análise superficial, como despretensiosa, irônica e sem correspondência com qualquer outra obra de sua autoria. Trata-se de uma composição para cem metrônomos, dez executantes e um regente, com partitura verbal, concebida e es-treada no ano de 1962, quando Ligeti integrava o grupo Fluxus – um ano antes, ele mesmo havia conduzido o happening intitulado

L’avenir de la musique.1 A primeira audição da peça, programa-da para encerrar a Gaudeamus Music Week programa-daquele ano, foi um grande escândalo, gerando furor na plateia e nos organizadores. No entanto, a referida aura de polêmica que circundou – e talvez ainda circunde – a obra escondeu a existência de aspectos cruciais para os rumos compositivos de Ligeti, os quais se manifestaram por meio dessa experiência musical.

Poème symphonique integra um restrito grupo de composições

que partilha características idênticas: o primeiro eixo é constituído pelas obras eletrônicas Glissandi, Artikulation e Pièce électronique

Nr. 3; o segundo, pela referida composição; e o terceiro, pelas

ver-sões para pianola, à la Nancarrow, de alguns dos Estudos para

pia-no.2 Esse “tripé” de sustentação da produção de Ligeti possui como característica comum a importância fundamental dessas obras no que tange à transformação da poética do compositor. Além disso, curiosamente, são peças nas quais a produção sonora é proveniente de máquinas ou aparelhos mecânicos. Tal evidência não é casual: o embate entre o humano e o não humano pode ser considerado emblemático na obra do compositor, visto como representante da dialética entre presente e passado que permeia sua obra. Delaplace (2005) afirma que essa dialética resulta na preservação de elementos do passado e na transcendência do presente por meio da escritura musical, tornando possível o cumprimento de uma potencialidade que poderia cair no esquecimento.

Podemos observar que, a partir do final da década de 1970, em meio a um hiato compositivo, Ligeti afirmou ter se reaproximado da

1 Ligeti considera-o, na realidade, um anti-happening (cf. Michel, 1995, p.178). 2 Foram vertidos para pianola os estudos Vertige, Désordre e Touches bloquées, do

livro I, e o livro II por completo, além de Monument, Selbst-Portrait e

Bewe-gung, para dois pianos. Não se trata apenas de transcrições da parte para piano,

mas sim de versões em que Ligeti tirou proveito das possibilidades mecâni-cas da pianola e a fez tocar simultaneamente em todos os registros, além de escolher tempos muito mais rápidos do que nas obras destinadas a execução humana. Embora tais versões tenham sido realizadas por Jürgen Hocker, construtor de pianolas, e não pelo próprio Ligeti, todas foram monitoradas e aprovadas pelo compositor húngaro.

tradição, atitude que atribuiu à saudade de sua terra natal. Essa reto-mada não se deu por meio de um retorno literal ao passado – a maior evidência disso seria, dentre outros fatores, fazer uso do neotona-lismo ou neorromantismo –, mas manifestou-se, por exemplo, pela decisão de escrever gêneros consagrados, como Estudos, Concertos e

Trio, os quais envolveram o piano, seu instrumento predileto na

in-fância.3 Por meio dessas obras, Ligeti promoveu a renovação dessas tradicionais estruturas, ao construir nelas novas configurações es-criturais. No entanto, será no seio de obras que incluem o elemento não humano – e nas quais, aparentemente, ele possui maior liberda-de – que tais configurações serão testadas.

Assim como ocorreu no campo das experimentações eletrôni-cas, esse é o caso específico de Poème symphonique, que apresenta conceitos essenciais para obras posteriores. As dezenas de “vozes” dos metrônomos produzem uma massa sonora que se assemelha ao tecido micropolifônico, constituído, nesse caso, por sons inarmô-nicos. Assim como na micropolifonia as linhas não são claramente perceptíveis ao ouvinte e resultam em uma textura, a periodicidade derivada da pulsação contínua dos metrônomos – os quais funcio-nam, por sua vez, em diferentes velocidades – produz a sensação de uma micropolifonia automática, resultando em um maciço sonoro aperiódico e direcional que, filtrado, torna-se rarefeito à medida que cada metrônomo cessa seu tiquetaquear. Tal engendramento cria, por sua vez, o fenômeno de dessincronia temporal entre as “linhas mecânicas” contínuas e, em consequência, tem como resul-tante um tecido construído por diversas camadas, cada qual com um pulso diferente – uma alusão à polimetria.

Longe de constituírem novos elementos no panorama musical em si, esses aspectos passaram a ser perseguidos por Ligeti em suas composições e apresentaram-se como uma renovação escritural dentro da sua obra. Isso fica evidente em Continuum (1969), para cravo, com pulso extremamente regular, dado pela colcheia, e cujos

3 Monument, para dois pianos, composta em 1976, foi a primeira obra destinada

motivos, à medida que deixam de possuir igual tamanho, entram em defasagem. Em Monument, a correlação é bastante clara: as partes dos pianos, cada qual com padrões periódicos, não se en-contram em sincronia, o que resulta em uma estrutura nitidamente polimétrica, como em Poème symphonique. Isso também evoca a ambiência da música eletroacústica, devido ao caráter meccanico da peça com relação às imbricações entre as partes dos pianos. Essa expressão era utilizada por Ligeti para designar qualquer excerto de suas obras assemelhado a um maquinário que não funcione cor-retamente.4 Por se referir a autômatos e mecanismos de precisão, o elemento meccanico ligetiano exacerba um tipo de fusão entre os elementos que se alinha à esfera do não humano. Por isso, conecta tal composição ao eixo das composições de Ligeti que exploram essa característica.

Tais procedimentos são inevitavelmente afins à prática eletroa-cústica, e é interessante que tal abordagem tenha ocorrido justa-mente em composições para instrumentos de teclado, como se a condição per se do maquinário, do modo de funcionamento do cravo e do piano, amparasse ainda mais essa busca do compositor, chegando à coroação dessa prática nas obras vertidas para pianola. É inegável o fascínio que as máquinas exerciam sobre Ligeti, o que, aliás, remonta também à sua infância. Este aspecto será ainda mais explorado a partir da década de 1980, quando o compositor tomou conhecimento da obra de Conlon Nancarrow.

Conlon Nancarrow: a dialética entre humano e não