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2 PSICOSE E FEMINILIDADE NO CASO SCHREBER

2.5. A QUESTÃO DA FEMINILIDADE NA ETIOLOGIA DA PARANÓIA

Os delírios de Schreber serviram para a verificação de algumas hipóteses fundamentais da psicanálise sobre a sexualidade, neste sentido, a relação da paranóia com a sexualidade, como nos foi apresentada no caso Schreber, possibilita-nos a retomada das principais características do estudo sobre a sexualidade feminina, ao mesmo tempo em que, o estudo da feminilidade, nos dá material para compreendera teoria da paranóia.

É importante considerar que a relação entre o complexo de Castração e a fantasia de desejo feminino não são suficientes para diferenciar a neurose da paranóia, já que está presente nas duas estruturas clínicas. No artigo de Freud sobre o caso Schreber, a diferença entre a neurose e a paranóia parece estar na reação e nos sintomas que são formados a partir da castração e do recalque da fantasia de desejo feminino, sendo que, na paranóia, o resultado é o delírio.

A questão da castração foi, portanto, o motor tanto da primeira quanto da segunda doença de Schreber, sendo que a diferença entre as duas foram os sintomas originados a partir do recalque da castração. Na primeira doença, o retorno do recalcado foram os sintomas de hipocondria, uma resposta neurótica. Na segunda doença, a resposta para o recalque se apresentou de um novo modo, na forma de delírio, uma resposta paranóica.

Devemos ressaltar que os artigos posteriores de Freud trazem uma nova concepção, na qual a principal diferença não é mais a resposta, mas, antes disso, o que impulsionou o indivíduo a ter de responder de tal modo, ou seja, a reação do indivíduo frente a realidade. Enquanto na neurose, o indivíduo tenta fugir da realidade e só consegue recalcar pequenos fragmentos desta, na

paranóia, a realidade é refutada e substituída por outra, essa seria a diferença fundamental da primeira para a segunda doença de Schreber. Na primeira doença, já havia uma grande indisposição em relação à realidade, mas só fragmentos dela foram recalcados, e o fracasso desse recalque trouxe no seu retorno os sintomas hipocondríacos. Na segunda doença, por sua vez, a realidade foi refutada inteiramente e substituída por outra e o tratamento já não seria tão breve como foi o primeiro.

É importante ressaltar que o processo de recalque consiste num desligamento da libido em relação às pessoas e coisas que foram anteriormente amadas, sendo que o retorno do recalcado traz novamente a libido para as pessoas que se havia abandonado, mesmo que pela via da projeção.

A projeção é a característica mais perceptível na formação dos sintomas da paranóia, ou seja, na formação dos delírios. Podemos compreender a projeção como uma percepção de conteúdos do indivíduo que são suprimidos e deformados a tal ponto que deixam de ser percebidos pelo sujeito como seus e reingressam na sua consciência como algo vindo de fora, sob a forma de percepção externa.

A partir desses dados, Freud aponta a importância do narcisismo e da fixação na etiologia da paranóia. Segundo Freud, o narcisismo consiste no investimento libidinal que o indivíduo direciona a si mesmo, tomando o seu próprio corpo e o seu próprio ego como objetos de investimento. No desenvolvimento normal, o indivíduo faz esse tipo de investimento nas fases de auto-erotismo e narcísica, redirecionando, subseqüentemente, grande parte dessa libido para um objeto amoroso outro.

Durante o processo de desenvolvimento psicossexual, entre o auto- erotismo e o amor objetai, algumas pessoas demoram longamente neste primeiro e podem, posteriormente, tomar como objeto amoroso um indivíduo com órgãos genitais semelhantes aos seus, fazendo, segundo Freud, uma escolha homossexual. Considerando que todos nós possuímos disposições bissexuais, é possível considerar que um indivíduo possa passar por um estágio de escolha objetai heterossexual, enquanto suas tendências homossexuais são desviadas e aplicadas a novas situações. Este indivíduo pode tanto se manter nesta posição por toda sua vida, quanto essa escolha pode passar por grandes modificações em respostas aos resquícios do estágio do auto-erotismo associado a acontecimentos na vida deste.

As pessoas que não se libertaram completamente do estágio de narcisismo - que, equivale a dizer, têm nesse ponto uma fixação que pode operar como disposição para uma enfermidade posterior - acham-se expostas ao perigo de que alguma vaga de libido excepcionalmente intensa, não encontrando outro escoadouro, possa conduzir a uma sexualização de suas pulsões sociais e desfazer assim as sublimações que haviam alcançado no curso de seu desenvolvimento. Este resultado pode ser produzido por qualquer coisa que faça fluir regressivamente [por uma frustração] (...) (Freud, 1911/1996, p. 69-70).

Devido ao esforço que observamos ser feito contra essa sexualização de seus investimentos pulsionais, somos levados a procurar a etiologia da paranóia em algum lugar entre os estágios de auto-erotismo e narcisismo. Neste sentido Freud elabora a idéia de que, na paranóia masculina, o cerne do conflito é uma fantasia de desejo homossexual que pode ser enunciada na seguinte frase: “Eu, um homem, amo um homem”.

Tanto a primeira fantasia de Schreber, quanto os seus delírios cada vez mais elaborados, apontam para o desejo e o horror da feminilidade, representado pela fantasia de ser transformado em mulher:

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Vale dizer, para Schreber se reconciliar com esse abismo desastroso que se abriu em sua subjetividade através da constituição de uma metáfora delirante, tal encontro com a feminilidade seria possível apenas se fosse alçado a uma condição privilegiada, isto é, estar como mulher na origem de uma nova “raça de homens”. Em outras palavras, para Schreber seria impossível conviver com a sua feminilidade pura e simplesmente. Por isso mesmo, ele precisa ser uma mulher excepcional, reconstruída pela lógica fálica de seu delírio interpretativo, que está na base de uma nova humanidade (Birman, 1999, p. 27).