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2 PSICOSE E FEMINILIDADE NO CASO SCHREBER

2.4 SCHREBER E FLECHSIG

Para possibilitar a estruturação do caso de Schreber, Freud se propõe a ressaltar a importância da relação de Schreber com Flechsig, embora os relatórios médicos não dêem tanta relevância a tal questão. Flechsig é uma figura presente durante todo o percurso da enfermidade de Schreber, mesmo antes desta segunda internação, na medida em que atendeu Schreber em sua primeira crise, caracterizada como hipocondríaca. Flechsig foi também o primeiro inimigo perseguidor de Schreber e, até o fim da narração das memórias e na carta aberta a Flechsig, Schreber conserva a idéia de que o

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médico, ou melhor, sua alma, também recebia as mesmas revelações sobrenaturais que ele.

Após destacar o lugar de Flechsig nos delírios de perseguição de Schreber, Freud interpreta essa relação do seguinte modo:

Parece que a pessoa a quem o delírio atribui tanto poder e influência, a cujas mãos todos os fios da conspiração convergem, é, se claramente nomeada, idêntica a alguém que desempenhou papel igualmente importante na vida emocional do paciente antes de sua enfermidade, ou facilmente reconhecível como substituto dela. A intensidade da emoção é projetada sob a forma de poder externo, enquanto sua qualidade é transformada em oposto. A pessoa agora odiada e temida, por ser um perseguidor, foi, noutra época, amada e honrada. O principal propósito da perseguição asseverada pelo delírio do paciente é justificar a modificação em sua atitude emocional (Freud, 1911/1996, p. 50).

Na ocasião em que Schreber sonhou que a doença havia retornado e imaginou a possibilidade de ser copulado sob a forma de um corpo feminino, seu médico Flechsig ganhou um importante destaque, pois ele havia sido responsável pela cura na primeira doença, tendo sido reverenciado com enorme gratidão pela esposa de Schreber que manteve, durante anos, o retrato do médico sobre a escrivaninha e foi também o primeiro a ser procurado no início da segunda doença.

Outro ponto que pode contribuir para a compreensão da leitura feita por Freud diz respeito à posição de impotência e subjugo a que um doente se submete durante sua enfermidade, sendo que o médico e seus assistentes ocupam uma posição de poder sobre o corpo do paciente, podendo fazer com este o que bem entenderem. Neste sentido, podemos dizer que a fantasia de ser abusado é representada por Schreber pela possibilidade de ser transformado num corpo feminino e ser copulado, por Flechsig, numa posição de completa passividade. Embora a fantasia tenha sido acompanhada de

completamente rechaçada e acompanhada de desprazer.

Esta fantasia aponta para a importância da manifestação homossexual como causa ativadora da paranóia, de tal modo que, justamente aí, localizamos uma tese etiológica freudiana: “(...) o paciente temia um abuso sexual das mãos do próprio médico. A causa ativadora de sua doença, então, foi uma manifestação de libido homossexual; o objeto desta libido foi provavelmente, desde o início, o médico, Flechsig, e suas lutas contra o impulso libidinal produziram o conflito que deu origem aos sintomas” (Freud, 1911/1996, p. 52).

Quando Freud defende a homossexualidade como base da moléstia, ele esclarece que não se trata de uma homossexualidade manifesta, mas de uma homossexualidade que surge da oscilação que todo ser humano passa, ao longo da vida, entre sentimentos hetero e homossexuais e defende que determinadas frustrações ou desapontamentos podem impulsioná-lo numa direção contrária a que ele se encontrava até então.

No percurso da enfermidade, o lugar ocupado por Flechsig passa a ser ocupado por Deus, que leva, a princípio, a uma intensificação do delírio de perseguição, quando Flechsig passa a ter Deus como cúmplice, mas também possibilita a passagem para um segundo estágio da doença, em que a emasculação passaria a ser vista, por Schreber, como uma missão de acordo com a Ordem do Mundo, e a possibilidade de ser copulado se ligaria diretamente a Deus, sem mais passar por Flechsig. Temos, portanto, dois personagens, Flechsig e Deus, e, se o médico foi originalmente uma pessoa amada por Schreber, então podemos considerar que também Deus é um substituto de alguém com uma importância ainda maior, ou seja, o pai. Deste

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modo, Freud conclui que Flechsig ocupou o lugar do irmão mais velho de Schreber que foi, por sua vez, temporariamente nomeado como substituto do pai depois de morto, mas que acabou morrendo também, suicidando-se aos 38 anos de idade.

Essa relação entre Deus e o pai faz com que o estudo das memórias de Schreber tome uma nova perspectiva:

Estamos perfeitamente familiarizados com a atitude infantil dos meninos para com o pai; ela se compõe da mesma mistura de submissão reverente e insubordinação amotinada que encontramos na relação de Schreber com o seu Deus, e é o protótipo inequívoco dessa relação, fielmente copiada dela. Mas a circunstância de o pai de Schreber ter sido médico, e médico dos mais eminentes, que sem dúvida foi muito respeitado por seus pacientes, é que explica as características mais notáveis de seu Deus e aquelas sobre as quais se demora, de maneira tão crítica (Freud, 1911/1996, p. 60).

A nova perspectiva do estudo retoma a fantasia inicial de Schreber, a de se transformar em mulher, à medida em que a presença da figura paterna traz à tona a questão da castração. Outro fator ligado a essa fantasia feminina, relaciona-se com a frustração de não ter podido ter filhos. Em seu delírio, a posição feminina lhe possibilitaria a oportunidade de gerar a humanidade.

A partir desses dados, Freud considerou que a causa ativadora do delírio de perseguição, primeiro grande sintoma da paranóia, foi a fantasia feminina, que tomou a figura do médico como objeto, ou ainda, a defesa contra a fantasia, que tinha um significado homossexual, fez com que seu conteúdo fosse projetado e assumisse a forma de delírio de perseguição.