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2 PSICOSE E FEMINILIDADE NO CASO SCHREBER

2.2 FREUD E “AS MEMÓRIAS”

O artigo sobre Schreber não é a primeira referência na obra de Freud sobre a paranóia, mas é, sem dúvida, a mais importante sobre o tema. Freud escreveu o artigo, em 1910 [1911], a partir de uma autobiografia intitulada

Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber.

Daniel Paul Schreber nasceu em Leipzig no dia 25 de julho de 1842, filho do ilustre ortopedista Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861) e de Louise Henrietta Haase (1815-1907); irmão de Daniel Gustav Schreber (1839- 1877), Anna (1840-1944), Sidonie (1846-1924) e Klara (1848-1917).

Havia três homens naquela casa, três Daniel Schreber, todos os três marcados por grandes sucessos profissionais mesclados a conturbadas histórias de vida, sempre interrompidas tragicamente. O mais velho Daniel Schreber, o pai, fora um médico famoso na Alemanha e no exterior com os seus livros sobre pedagogia, ginástica e higiene. Em 1958, aos 50 anos de idade, Daniel Gottlieb Schreber sofreu um acidente que resultaria, três anos mais tarde, em sua morte prematura: uma barra de ferro caiu sobre a sua cabeça levando-o a um grave quadro de saúde, marcado por freqüentes impulsos agressivos e homicidas, devido a um comprometimento cerebral irreversível.

O segundo Daniel Schreber, suicidou-se com um tiro na cabeça, em 1877, aos 38 anos de idade, logo após ser nomeado conselheiro do tribunal. Finalmente, o terceiro Daniel, cujas memórias foram estudadas por Freud, teve

sua primeira crise hipocondríaca em 1878, poucos meses após o suicídio do irmão e no mesmo ano de seu casamento com Ottlin Sabine Behr.

Durante essa primeira crise, Schreber foi acompanhado pelo Dr. Flechsig, sem a necessidade de uma internação. Alguns anos mais tarde, em 1884, após ser nomeado vice-presidente do Tribunal Regional de Chemnitz e ser derrotado nas eleições parlamentares, Schreber sofre sua segunda crise hipocondríaca e acontece, então, sua primeira internação. O médico responsável é, mais uma vez, o Dr. Flechsig e a internação dura seis meses. Finalmente, em 1893, após a visita do ministro da Justiça e da nomeação para o cargo vitalício de juiz-presidente da Corte de Apelação, Schreber volta a se consultar com Flechsig e, após dez dias de tratamento domiciliar sem resultados, é internado novamente, desta vez por um período de nove anos.

Daniel Paul Schreber sempre foi reconhecido por sua grande capacidade intelectual, que o possibilitou, inclusive, a escrever o livro, estudado por Freud, sobre suas memórias. Tal livro foi escrito com o objetivo de possibilitar sua saída do sanatório e pedir a suspensão da curatela de seus bens. Um outro objetivo, descrito por Schreber, como conseqüência deste importante trabalho, foi o de transformar seu livro numa referência a estudiosos, o que o levaria a superar a tradição da família e, megalomania à parte, a se imortalizar como o mais famoso dos Schrebers.

Schreber não tinha dúvidas sobre suas habilidades intelectuais e a certeza acerca da importância de suas “Memórias” para a história mundial sustentaram boa parte de seus delírios:

Sou também apenas um homem e, portanto, preso aos limites do conhecimento humano; só não tenho dúvida de que cheguei infinitamente mais perto da verdade do que os outros homens, que não receberam as revelações divinas (Schreber, 2006, p. 31-32).

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Ao começar este trabalho ainda não pensava em uma publicação. A idéia só me ocorreu mais tarde, à medida em que ele avançava. A este respeito não deixarei de levar em conta as objeções que parecem se opor a uma publicação: trata-se especialmente da consideração por algumas pessoas que ainda vivem. Por outro lado, creio que poderia ser valioso para a ciência e para o conhecimento de verdades religiosas possibilitar, ainda durante a minha vida, quaisquer observações da parte de profissionais sobre meu corpo e meu destino pessoal. Diante desta ponderação, deve calar-se qualquer escrúpulo de ondem pessoal (idem, p. 25).

Já durante esta minha doença eu era, e ainda agora sou, da opinião de que mentiras piedosas [sugestão], a que o médico dos nervos [Flechsig] de fato não pode deixar de recorrer para com certos doentes mentais, (...), não ocorreram quase nunca comigo, uma vez que se devia reconhecer em mim um homem de espírito elevado, de inteligência aguda e de finos dons de observação (idem, p. 58-59).

De fato, Schreber escreveu uma obra que ser tomou de extrema importância para diversas áreas, principalmente para a psicanálise. Freud destaca isso quando fala das dificuldades da investigação analítica sobre a paranóia, que seria completamente impossível sem a descrição, pelos próprios pacientes, das peculiaridades de seu quadro. Nesse sentido, o trabalho detalhado de Schreber possibilitou a Freud elaborar uma teoria da paranóia que servisse de base à formulação de um tratamento para pacientes futuros.

O próprio Schreber divide sua história em primeira e segunda doença, sendo a segunda enfermidade a mais detalhada por Schreber em suas “Memórias”, além do acréscimo de relatórios e laudos médicos em anexo na obra. O laudo médico-legal do Dr. Weber, médico do sanatório, foi o primeiro citado por Freud. Esse laudo, extremamente detalhado, foi escrito em dezembro de 1899, e inicia fazendo referência ao seu período de internação aos cuidados de Fleshig; a seguir, narra todo o período de internação desde 29 de junho de 1894, quando Schreber foi transferido para o sanatório de Sonnenstein. Todos os laudos escritos por Weber, narram a história de

Schreber com detalhes. Importante observar que o primeiro laudo foi escrito com o objetivo de impedir a saída de Schreber do sanatório, enquanto que, no segundo, Weber se viu obrigado a retificar alguns pontos acerca da melhora do quadro até que, no terceiro, ele toma uma posição mais claramente favorável quanto a situação de curatela de Schreber e inicia este último laudo, de 05 de Abril de 1902, da seguinte forma:

Foi para mim uma missão pouco agradável quando, a 14 de janeiro último, por deliberação da Corte de Apelação de Dresden, datada de 23 de dezembro de 1901, fui solicitado uma vez mais a dar um parecer sobre o estado psíquico do Sr. Presidente da Corte de Apelação, Dr. Schreber. Há muitos anos sou médico do queixoso, há muito tempo ele é meu convidado diário à mesa, e da minha parte entendo a relação entre nós, se assim posso dizer, como uma relação de amizade e desejo ardentemente que este homem, que passou por tantos sofrimentos, ainda consiga desfrutar a vida como ele acredita poder merecer, após tantas adversidades (Weber, 1902, in Schreber, 2006, p. 400).

Com esse último laudo, Schreber busca, mais uma vez, judicialmente, a saída do hospital, após nove anos de internação. Sua defesa nunca consistiu em questionar seus delírios, mas, pelo contrário, de confirmá-los, buscando provas, principalmente, da participação de Flechsig em todo seu processo de adoecimento. A melhora do seu quadro não estava ligada a uma cura de seus delírios, mas do percurso de construção de tais delírios.