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2 PSICOSE E FEMINILIDADE NO CASO SCHREBER

2.3 O PERCURSO DA DOENÇA

Entre os meses de junho e outubro de 1893, após a indicação, mas antes de assumir o cargo de presidente da Corte de Apelação de Dresden, Schreber sonhou duas ou três vezes que o antigo distúrbio nervoso havia voltado e, certa vez, quando estava perto de acordar pela manhã, imaginou

que “deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito” (Schreber, 2006, p. 60).

Em outubro, após assumir o cargo, Schreber começou a sofrer de insônia e, depois de várias noites em claro, começou a escutar um barulho, um estalo, vindo da parede. Na época não soube identificar o significado desses barulhos, que reconheceria mais tarde como milagres divinos que objetivavam mantê-lo acordado. Em poucas semanas, seu quadro piorou e ele teve de procurar Flechsig, médico e professor em Leipzig, que o tratou em 1884, quando teve sua segunda crise hipocondríaca, acompanhada por seis meses de internação.

O professor Flechsig, propôs a internação de Schreber e tentou administrar inúmeros soníferos, contudo, nenhum teve efeito. Durante os primeiros dias, Schreber conta que sua mente estava completamente ocupada com a idéia da morte e, por algumas vezes, tentou, sem sucesso, suicidar-se. “Dominava-me inteiramente a idéia de que para um homem que não consegue dormir, mesmo com todos os meios da arte médica, nada mais resta a não ser dar fim à sua própria vida” (Schreber, 2006, p. 64).

Após três meses de internação, sua esposa, que até então o visitava diariamente, viajou e permaneceu quatro dias em Berlim. Este episódio provocou um impacto em seu estado mental, o que foi agravado após uma noite em que Schreber teve “uma insólita quantidade de poluções (cerca de meia dúzia)” (Schreber, 2006, p.67). A partir de então, Schreber diz ter experimentado os primeiros sinais de uma relação com forças sobrenaturais, em particular uma conexão nervosa com o professor Flechsig, a quem acusou

de haver exercido influência sobre o seu sistema nervoso; Schreber passou a afirmar também que Flechsig tinha as mesmas visões que ele (Schreber).

A descrição dessas experiências de Schreber refere-se, principalmente, às vozes interiores ou língua dos nervos e à Ordem do Mundo. A língua dos nervos é a movimentação incessante, a partir do exterior, dos nervos de Schreber pelos raios divinos, ou por hipnose realizada por Flechsig, coagindo os seus sonhos e os seus pensamentos. A Ordem do Mundo, por sua vez, consiste na possibilidade de renovação do gênero humano, que seria aniquilado e depois recriado a partir de um único homem, o qual seria emasculado (transformado em mulher) durante o sono e copulado por raios divinos:

Deste modo foi preparada uma conspiração dirigida contra mim, que tinha como objetivo, uma vez reconhecido o suposto caráter incurável da minha doença nervosa, confiar-me a um homem de tal modo que minha alma lhe fosse entregue, ao passo que meu corpo - numa compreensão equivocada da citada tendência inerente à Ordem do Mundo - devia ser transformado em um corpo feminino e como tal entregue ao homem [Flechsig] em questão para fins de abuso sexuais, devendo finalmente ser “deixado largado”, e portanto abandonado à putrefação (Schreber, 2006, p. 76 - 77).

A importância que Schreber atribuía a si quanto à Ordem do Mundo, relacionava-se com o fato de ele se considerar o único homem verdadeiro que ainda restava, enquanto as outras figuras humanas eram consideradas meros homens feitos às pressas. Para poder servir à Ordem do Mundo, essa sua forma, embora superior a dos outros homens, ainda não era suficiente, ele precisaria, ainda, passar por uma outra transformação, sofrendo a mutação para um corpo feminino.

Essas transformações ocorreriam graças aos efeitos dos raios divinos, sendo que, desses raios, era possível diferenciar os raios nocivos e os raios

benéficos: “os primeiros vinham carregados de veneno de cadáver ou de alguma outra matéria putrefata e também traziam para o corpo algum germe de doença ou então provocavam nele algum outro efeito destrutivo. Os raios benéficos (puros) sanavam de novo os danos que aqueles tinham provocado” (Schreber, 2006, p. 107).

Em junho de 1894, Schreber foi removido de Leipzig, onde fora tratado por Flechsig em relação a quem desenvolveu vários delírios persecutórios e a quem chamava de “assassino da Alma”. Nesta data, foi levado primeiro ao Sanatório Pierson, lá acusou o médico responsável por esta instituição de conspiração juntamente com Flechsig e, logo em seguida, foi encaminhado para o Asilo Sonnenstein, onde passou a ser acompanhado por Weber, diretor do asilo.

Inicialmente, os delírios de Schreber ocorreram na forma de delírios de perseguição, e tais atos de perseguição tiveram como primeiro autor o seu médico, o professor Flechsig. A princípio, o médico foi tomado como seu único inimigo, posteriormente, esses delírios foram adquirindo um caráter cada vez mais intolerável e chegou em seu ápice quando Deus passou a ser visto, por Schreber, como cúmplice de Flechsig. O curso da doença só se modificou quando foi transferido para o Asilo Sonnestein e passou a ser acompanhado por Weber. A partir desse momento, seus delírios mudaram o curso e encaminharam para sua “reconciliação” , quando Schreber passou a acreditar que tinha a missão de redimir o mundo e restituir à humanidade o estado perdido de beatitude. Para essa tarefa, era necessário que Schreber se relacionasse diretamente com Deus,

pois os nervos, em condições de grandes excitação, assim como os seus estiveram por longo tempo, têm exatamente a

propriedade de exercer atração sobre Deus - embora isso signifique tocar em assuntos que a fala humana mal é capaz de

expressar, se é que o pode, visto jazerem inteiramente fora do raio de ação da experiência humana e, na verdade, terem sido revelados somente a ele. A parte mais essencial de sua missão redentora é ela ter de ser procedida da por sua transformação em mulher; trata-se antes de um ‘dever’ baseado na Ordem do Mundo, ao qual não há possibilidade de fugir, por mais que, pessoalmente, preferisse permanecer em sua própria honorável e masculina posição na vida (Weber, 1899, in Schreber, 2006, p. 401).

Essa transformação em corpo de mulher não se daria de uma só vez, mas de modo lento, gradativo, mediante milagres divinos que incidiriam sobre o seu corpo. Durante essa transformação, Schreber afirma que seu corpo passou por danos insuportáveis, que o fizeram ter de viver sem estômago, intestinos, quase sem pulmões, com o esôfago rasgado, sem bexiga e com as costelas despedaçadas. Afirmou, ainda, que os referidos danos eram provocados por uma parte dos raios divinos, nocivos, mas que seu corpo era restaurado por uma outra parte dos raios, estes benéficos.