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A questão da igualdade no processo civil: vulnerabilidade ou hipossuficiência?

Vulnerabilidade pode ser entendida como a condição de risco em que uma pessoa se encontra, ou ainda, um conjunto de situações mais, ou menos problemáticas, que situam a pessoa numa condição de carente, necessitada, impossibilitada de responder com seus próprios recursos a dada demanda que vive e a afeta.

Vulnerabilidade processual, na lição de Fernanda Tartuce, é a suscetibilidade do litigante que o impede de praticar atos processuais em razão de uma limitação pessoal involuntária. Essa impossibilidade de atuar pode decorrer de fatores diversos como, por

exemplo, problemas de saúde e/ou de ordem econômica, informacional, técnica ou organizacional de caráter permanente ou provisório.

Com a mudança do conceito de acesso à justiça – que deixou de ser um bem a ser desfrutado unicamente por aqueles que podiam suportar o custo de um processo, para tornar- se um bem acessível a todos77, tornou-se indispensável a construção de um sistema jurídico destinado às pessoas que participam da vida em sociedade, “seres reais existentes no mundo dos fatos e não mais sujeitos ideais, titulares abstratos de direitos equitativamente atribuídos e assegurados com base numa igualdade formal.”78

Nossa história recente nos mostra que o Brasil é um país marcado por significativas desigualdades sociais e estas repercutem no processo civil de forma intensa na medida em que tendo se ampliado o acesso à justiça é possível verificar que alguns litigantes não atuam em condições favoráveis e nem sempre conseguem se manifestar em tempo hábil de forma a se desincumbir de seus encargos processuais.

Isso se dá justamente pelos fatores mencionados por Tartuce – de ordem econômica, localização geográfica e até mesmo, por desconhecimento dos direitos básicos, colocando-os, precisamente, na situação de vulnerabilidade acima descrita.

Mauro Cappelletti leciona que “as proclamações (nacionais e supranacionais) dos direitos fundamentais cessam de ser meras declamações filosóficas no momento em que sua atuação é confiada, em concreto, aos tribunais, ou a alguns tribunais(...).”79

Daí a relevância da afirmativa de Cappelletti, já que incumbe ao Poder Judiciário o dever de assegurar os direitos fundamentais de quaisquer categorias e dentre essas, das chamadas minorias.

É certo que a partir do momento em que para assegurar a observância das prestações primárias descumpridas pelo Estado, se revela necessário o encaminhamento judicial, ganha relevo o processo civil80, uma vez que essas minorias deverão ser atendidas levando-se em conta as limitações que trazem da vida social.

77 CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. TraduçãoElen Gracie Northfleet.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1988. p.9.

78 BARBOZA, Heloisa Helena. Vulnerabilidade e cuidado: aspectos jurídicos. In: PEREIRA, Tania da; OLIVEIRA, Guilherme de (coordenadores). Cuidado e vulnerabilidade. São Paulo: Atlas, 2009. p.106. 79 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1999.

O primeiro reconhecimento normativo expresso sobre vulnerabilidade no ordenamento brasileiro foi verificado na legislação consumerista expressa no artigo 1º do Código de Defesa do Consumidor, e a partir de então vários foram os doutrinadores que se dedicaram ao estudo do tema, especialmente, do seu significado81.

Explica Fernanda Tartuce que a técnica engendrada pelo ato normativo em referência (CDC), considera todo consumidor vulnerável82 por sua debilidade em comparação com o fornecedor. O legislador, contudo, criou uma distinção com o objetivo de facilitar a inversão do ônus da prova: a demonstração de que além de frágil – vulnerável – o litigante também seria hipossuficiente, não tendo como se desincumbir da produção das provas necessárias a comprovação dos fatos afirmados.

Portanto, verifica-se que o código preocupou-se em distinguir vulnerabilidade e hipossuficiência.

A questão é polêmica. A começar pelo significado do vocábulo hipossuficiência - estado daqueles que sobrevivem com o mínimo de condições financeiras e os miseráveis – que difere da acepção dada pelo Código de Defesa do Consumidor, que significa condições técnicas inferiores ou desfavoráveis para o consumidor provar suas alegações iniciais - seus direitos do CDC - em face do fornecedor, melhor provido de meios probatórios.

A polêmica como se vê, decorre de ditames do Código de Defesa do Consumidor segundo os quais todo consumidor é vulnerável, mas não necessariamente hipossuficiente. O consumidor é vulnerável por sua debilidade – sobretudo de informações – em comparação ao fornecedor; contudo, para fazer jus ao mecanismo facilitador de inversão do ônus da prova no processo, o CDC exige a demonstração de que, além de frágil, o litigante é tecnicamente hipossuficiente a ponto de não ter condições de se desincumbir da produção probatória83.

81 TARTUCE, Fernanda. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p.181. 82Rizzatto Nunes explica que à luz do CDC o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico. A questão de ordem técnica deve-se ao fato de que os meios de produção, cujo conhecimento é monopólio do fornecedor; quanto ao aspecto econômico, é fato que via de regra o consumidor é a parte com menor poder econômico – a regra comporta exceções – e, portanto, maiores condições também de melhor se defender. (RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2008).

83 TARTUCE, Fernanda. Vulnerabilidade no processo civil. Artigo publicado na Carta Forense. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/entrevistas/vulnerabilidade-no-processo-civil/9968. Acesso em: 13 nov 2013.

Ora, conforme de percebe, processualmente, vulnerabilidade e hipossuficiência não retratam idênticos conceitos. Vulnerabilidade indica suscetibilidade em sentido amplo, sendo a hipossuficiência uma de suas espécies (sob o viés econômico).

Vários doutrinadores adotam esse critério de diferenciação entre os conceitos de forma que na prática, para aferir a hipossuficiência, o juiz deverá proceder a um exame valorativo considerando que o suporte fático, via de regra, aponta um elemento de natureza econômica84.

Ocorre que na lei 8.078 o termo hipossuficiência vem acompanhado do termo técnica, o que leva a entendimentos divergentes, no tocante à forma concebida. Alguns doutrinadores entendem que essa hipossuficiência, para fins de inversão do ônus da prova, indica desconhecimento técnico e informativo sobre elementos do produto ou do serviço85.

No âmbito da instrução probatória, isso significa dizer que na prática, havendo limitações econômicas e técnicas de produção de provas que inviabilizem o acesso à justiça do consumidor, ele merece ver reconhecida a inversão do ônus da prova.