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Quando se faz uma análise, mesmo que breve, sobre o texto “A Dialética do Esclarecimento”, de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, em tempos de crise de fundamentos, não se pode deixar de pensar em sua atualidade como perspectiva de crítica radical em um mundo cada vez mais contingente. Novos caminhos teóricos foram trilhados na reconstrução da Europa, no pós-guerra e no pós-68,

tendo o trabalho de Adorno e Horkheimer uma abertura para a crítica da modernidade e para além dela.

A importância da “Dialética do Esclarecimento” para o pensamento do século XX foi marcante, em especial pela crítica radical à razão e ao sujeito moderno. A segunda grande guerra os acontecimentos que a seguem, no âmbito da política de poder dos países centrais, irão colocar em cheque a preensão de emancipação do sujeito moderno.

Habermas (2001a), em sua análise, destaca que Adorno e Horkheimer interpretam Marx tendo em vista a perspectiva de Weber, pois, sob o signo de uma razão instrumental autonomizada, a racionalidade de dominação da natureza funde-se com a irracionalidade da dominação de uma classe sobre as outras, em que as forças produtivas operam relações de produção alienadas. A obra, por outro lado, dissipa a ambivalência que havia tratado Max Weber sobre o processo de racionalização e inverte a perspectiva positiva e emancipatória da racionalização em Marx. O esclarecimento aparece como meio de repressão social.

A reflexão da modernidade e a separação do Homem x Natureza justificam um sujeito separado, lúcido e emancipado. A natureza é evocada pelos filósofos modernos como a razão mesma da civilização, seja na política para a justificativa do contratualismo, seja no âmbito privado ou, como destacado por Kant, no domínio da razão sobre os instintos e sentimentos. O sujeito pode tudo, tendo como norteador

os limites de sua razão, emancipada, livre e suprema.

Porém, há o paradoxo destacado por Horkheimer e Adorno (1985), que irá solapar definitivamente essa pretensão de supremacia da modernidade burguesa ocidental: se o irracional é o domínio de uns sobre os outros, o esclarecimento se torna cada vez mais negativamente idêntico ao seu contrário. Como pode ser possível a emancipação social, se a estratégia para alcançá-la e suas justificativas levam a situações de dominação impensáveis?

Como destacam Horkheimer e Adorno (1985, p.19), ao iniciar a explicação sobre o conceito de esclarecimento (Iluminismo ou Aufklärung):

No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber.

O ponto central da crítica na “dialética” é o formalismo da razão tal como escrito por Kant, em especial na indiferença da razão diante de qualquer objeto determinado, ou seja, a submissão da substância à forma. Se o objeto identificado em substância, com a natureza exterior e principalmente interior, for algo a dominar, o sujeito prende-se aos imperativos de sua segunda natureza, a dominação. A razão formalista mostra-se como princípio de dominação: o contrário da emancipação.

O lado obscuro dessa razão que aspira a emancipação está precisamente no esforço que ela mesma executa para se libertar. “O pensamento, no sentido do esclarecimento, é a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, não importa se são interpretados como axiomas arbitrariamente escolhidos, idéias inatas ou abstrações supremas” (p.81). A razão formal funciona da mesma forma, seja para as maravilhosas descobertas em laboratórios farmacêuticos para a cura de doenças fatais ou para os bombardeios de armas bacteriológicas que matam milhares de pessoas.

Diferentemente dos filósofos que o precederam, Kant focou a autonomia em uma psicologia metafísica que vai além de Rousseau e David Hume. O pressuposto dessa autonomia é que somos agentes racionais, cuja liberdade transcendental nos tira do domínio das “causas” naturais. Pertence, portanto, a todos os indivíduos e a partir dela – a exemplo de uma bússola – pode-se dizer o que é consistente ou não com o dever. “Nossas habilidades morais tornam-se conhecidas de cada um de nós devido ao fato da razão, da nossa consciência de uma obrigação categórica que podemos respeitar em contraposição ao atrativo do desejo” (SCHNEEWIND, 2001, p.560).

Justamente o completo domínio da natureza pela razão, precisamente a natureza interna, os sentimentos, as inclinações e os desejos, que possibilitam a “Lei Moral”. Independentemente da qualidade, ódio, amor, exaltação ou gozo, a natureza interna

deveria ser subjugada pela razão para dar lugar à lei moral: “Age de tal maneira que a máxima a que obedece a tua vontade possa valer sempre e em qualquer momento como princípio de uma legislação universal” (KANT, 2003 p. 28).1

[...] o desespero de Adorno provém precisamente de quando se pensa com suficiente radicalidade esse ‘processo básico da vida consciente’ em suas próprias categorias, isto é, nas categorias que A respeito da teoria moral de Kant, Horkheimer e Adorno (1985, p.84-85 destacam a tentativa do esclarecimento para substituir a religião enfraquecida por outro motivo intelectual:

Como autênticos burgueses, os filósofos pactuam na prática com as potências que sua teoria condena. As teorias são duras e coerentes, as doutrinas morais propagandísticas e sentimentais, mesmo quando parecem rigoristas, ou então são golpes de força consecutivos à consciência da impossibilidade de derivar a moral , como o recurso kantiano às forças éticas como um fato. [...] O burguês que deixasse escapar um lucro pelo motivo Kantiano do respeito à mera forma da lei não seria esclarecido, mas supersticioso – um tolo.

Ao abordarem Kant, os autores supracitados destacam que Nietzsche, ao criticar a moralidade burguesa, enfatiza os elementos que lhe são caros, em especial as conseqüências da racionalização da vida social e dos valores que se formam em uma sociedade moderna, justamente no momento de consolidação do capitalismo europeu. A crítica de Nietzsche mostra a dialética de um pensamento que se sustenta na recusa sistemática a um modelo de razão que passa a constituir os alicerces da sociedade burguesa moderna, dissipando tudo que não seja sistematizado, racionalizado, iluminado pela razão senhora e dominadora: “Até mesmo a injustiça, o ódio e a destruição tornam-se uma atividade maquinal depois que, devido à formalização da razão, todos os objetivos perderam, como uma miragem, o caráter da necessidade e objetividade“ (p.100).

O elemento importante que a dialética do esclarecimento traz é precisamente destacado por Habermas (2002): consiste justamente na utilização das mesmas fundamentações críticas para estabelecer a dialética negativa:

1 Cf. o texto: “Obra de tal modo que la máxima de tu voluntad pueda valer siempre al mismo tiempo como principio de una

nos oferece a filosofia da consciência, acabamos ficando em mãos da mesma razão instrumental (p.505).

Nesse ponto Habermas, herdeiro da tradição “crítica” da escola de Frankfurt, busca justificações para a imersão na filosofia da linguagem.

Contudo, especificamente, em quais pontos a “dialética do esclarecimento” é prisioneira de sua própria crítica?

Ao não operar com conceitos históricos específicos e se apoiar na premissa de Max Weber com o “desencanto do mundo”, baseia-se na história universal da sociedade burguesa ocidental. O projeto da “Dialética do Esclarecimento” (DE) parte de um

regime específico de narrativa que entende as “divisões” da história derivadas de

uma concepção teleológica: desde a separação do Homem x Natureza, estava o homem destinado a um progresso específico em sua racionalidade que chegaria ao auge com o esclarecimento e o seu paradoxo.

A crítica da idéia de progresso é prisioneira, pois ela rejeita a libertação – positividade – e reproduz negativamente a História a que está subordinada. A interpretação teleológica é uma projeção burguesa, podendo ser usada de forma positiva ou negativa, dependendo da narrativa: o que está presente na DE é uma história da humanidade que se encaminha para um determinado objetivo, arrebatada por forças internas, sem possibilidade de oposição – ditada pela competição e pela expansão capitalista. Aspira à universalidade, ao domínio de um tipo de racionalidade: a da moderna sociedade capitalista burguesa.

A DE entende a forma moderna de compreensão do relacionamento Homem x Natureza como um prolongamento evolutivo e contínuo desde que o homem deixou as árvores, dos primeiros hominídeos até a modernidade e o esclarecimento. Essa relação entre o Homem x Natureza, assumida como continuidade, traz conseqüências para o conjunto dos pensadores modernos, conforme destaque do

excurso II: a razão é para ele o agente químico que absorve a própria substância

das coisas e volatiliza na pura autonomia da própria razão. Para escapar ao medo supersticioso da natureza, ela pôs a nu todas as figuras e entidades objetivas, sem exceção, como disfarces de um material caótico, amaldiçoando sua influência sobre

a humanidade como escravidão, até que o sujeito se convertesse – em conformidade com sua idéia – na única autoridade irrestrita e vazia. Toda a força da natureza reduziu-se a uma simples e indiferenciada resistência ao poder abstrato do sujeito.

A civilização sempre corre o risco de transformar-se em barbárie; ela não é diretamente a primeira natureza, mas funda-se, tal como a razão, na errada separação dela. Como introduzem em seu trabalho, a teoria Freudiana da cultura, Horkheimer e Adorno (1985) entendem esse processo como dialético. Mas, por mais coerente que possa estar, permanece prisioneira da modernidade, do iluminismo. Como conseqüência, ao suprimir o otimismo presente no ideal de progresso, conservando a construção histórica negativa, resulta em pessimismo.

Apesar de tudo, reabilitam o esclarecimento, a razão moderna pela defesa do pensamento reflexivo no prefácio da DE ao afirmarem:

a questão é que o esclarecimento tem que tomar consciência de si mesmo, se os homens não devem ser completamente traídos. Não é da conservação do passado, mas de resgatar a esperança passada que se trata. Se a cultura respeitável constituiu até o século dezenove um privilégio, cujo preço era o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espaço higiênico da fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos da cultura num cadinho gigantesco. Talvez isso não fosse um preço tão alto, como acreditam aqueles defensores da cultura, se a venda em liquidação da cultura não contribuísse para a conversão das conquistas econômicas em seu contrário (p.15) [grifo nosso].

A dialética do esclarecimento fala de traição. O “iluminismo” figura como luz que, ao ser lançada sobre as trevas, transforma esse território em novos campos da razão. A escuridão, o desconhecido, o mundo natural não se manifestam como uma outra possibilidade, como complexidade ou mesmo tradição digna de respeito mas como algo a ser dominado: “a essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram que escolher entre submeter-se à natureza ou submeter-se à natureza do eu” (p.43).

mundo desencantado não poupou seus grandes herdeiros – Marx incluso, de pertencerem a um “regime de verdade” que, sendo “racional”, não pode ser subsumido como religião, mas como interpretação teórica do mundo, como esforço teórico.

É precisamente na análise, mesmo que contraditória, desse grande e único conjunto de interpretação teórica do mundo que o trabalho de Horkheimer e Adorno (1985) deve ser situado, e o grande mérito é precisamente resgatar a noção da unicidade

da razão, presente no pensamento iluminista. Essa razão necessita de um sujeito,

de uma entidade que a corporifique. Também essa é uma invenção moderna.