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1.3 O SUJEITO NA MODERNIDADE

1.3.1 O sujeito da psicanálise

O romantismo exprime o desespero diante das promessas da ciência e, para ele, o sujeito não se funda na epistemologia e na representação, mas sim na “auto- fundação subjetiva” que expressa uma natureza inteira e profunda. Na tradição do romantismo, se propõe uma distância desse outro sujeito: nesse contexto, nasce a psicanálise que tem por objeto não o sujeito epistêmico e racional, mas o sujeito do desejo, como denominado por Lacan (FLEIG,1999).

O sujeito moderno e racional fundamenta-se no processo de tomada de consciência de si mesmo, na reflexividade autocentrada, tema da dialética Hegeliana onde o “eu” e o “nós” se combinam para alcançar a síntese universal de uma cultura, funda-se na adição, na razão. Diversamente o sujeito da psicanálise, o sujeito desejante, estrutura-se a partir do que lhe falta. Como não reconhece o que lhe falta, o desejo aponta sempre para a falta do saber e seu abandono. “Contudo, a recusa desse saber, mesmo que insuficiente, recai no irracionalismo e no obscurantismo, situados no romantismo tardio” (p.7). Esse sujeito desejante é, para Freud, a interrogação sobre o que lhe falta.

Do ponto de vista do sujeito da psicanálise, a modernidade retira do predomínio religioso o gozo de uma vida eterna e o transfere para o decurso da vida mesma; mas o faz com conseqüências. A declaração dos direitos do homem e do cidadão, publicada em 1793, faz em seu artigo primeiro referência ao “gozo” dos direitos naturais e imprescindíveis. Complementando, no artigo 23, expressa claramente que a garantia social consiste na ação de todos para assegurar a cada um o gozo e a conservação de seus direitos.

Esse sujeito moderno, consolidado no indivíduo, sofre a perda da cultura tradicional, e, por conseguinte, da garantia da sansão simbólica, as quais o legitimavam na ocupação de posições específicas e lhe garantiam o gozo. Com a fragmentação e o esfacelamento do conjunto de sanções simbólicas, a complexificação social coloca lado a lado coexistências antes impensáveis, levando à elasticidade do

simbólico. Esse “lugar” do gozo de cada um torna-se indefinido. “O sujeito pode se colar a imagens veiculadas pelos ideais de gozo suposto e sem falhas, na forma de consumo do objeto circulante, ou se eternizar na indefinição de gozo” (p.9).

A modernidade ao prometer um gozo sem falhas reforça esse comportamento, por meio de estruturas (ou da sua ausência): seja na inexistência da tradição, na produção em série para o consumo cada vez mais massificado e na promessa de uma sociedade que resolva os impasses da distribuição. A ausência do laço

relacional, das sociedades tradicionais (considerando os diferentes contextos) é

substituída, pelo objeto. O amor, o controle impessoal e anônimo e a instrumentalização do semelhante tornam-se os novos laços sociais.

Essas características do sujeito moderno, em especial das sociedades ocidentais ou aquelas submetidas a forte controle cultural ocidental perfazem-se como um contexto de “paranóia” não somente em sociedades capitalistas, mas no conjunto da modernidade o que inclui o mundo socialista. A crescente instrumentalização pela burocratização e outros dispositivos, torna-se sintoma moderno e tem em sua base o pressuposto de que o sujeito é alguém incapaz de responder por si mesmo, e é subsumido como objeto a ser dedicado ao gozo do outro.

Inversamente proporcional é o uso da força legítima em relação à violência: quanto maior a diminuição da força legítima, maior a probabilidade da violência, conforme destaca Arendt (2001). Contudo, a autora alerta que A força legítima como instrumento político tem seus limites, pois:

A violência sendo instrumental por natureza, é racional à medida que é eficaz em alcançar o fim que deve justificá-la. E posto que quando agimos, nunca sabemos com certeza quais serão as conseqüências eventuais do que estamos fazendo, a violência só pode permanecer racional se almeja objetivos de curto prazo [...] A prática da violência, como toda ação, muda o mundo, mas a mudança mais provável é para um mundo mais violento (ARENDT, 2001, p.57-58).

A instrumentalização contínua da sociedade não é uma “opção” pelo mundo do sistema – opção esta nitidamente moderna – mas está colocada no processo de codificação que a modernidade confere à subjetividade. Se uma sociedade não pode

ser descrita sem que se definam os valores priorizados, a cultura ocidental, ao priorizar o indivíduo como valor social, sobrevive a todo o custo, passa a ser a preocupação prevalente. A objetificação ocorre, pois é impossível para o outro a satisfação de um gozo de tal característica. O que prevalece são os objetos que, graças à revolução científica, à microinformática e à biologia prometem uma intervenção no próprio ser humano. A rapidez e fluidez da modernidade ocorrem devido aos avanços da própria razão: cada vez mais é necessária a satisfação para o preenchimento dos desejos. Isso é o que destaca Fleig (1999, p.12) ao citar Melman: “A busca de um objeto que supostamente venha a realizar a promessa de um gozo sem falhas caracteriza o núcleo do sintoma social da cultura moderna”.

Uma solução para esse impasse, pela psicanálise, seria a realização do gozo buscado. Mas essa solução é um paradoxo, pois o desejo tende a se extinguir na morte. Outra saída seria a Lei e o campo do objeto proibido; suprimindo o objeto do gozo haveria a proteção contra a morte, contornando pelo campo ilimitado da linguagem: é o efeito da castração, operação da falta simbólica que possibilita a estruturação de um laço social viável.

Tal questão é colocada por Freud e atualizada por Lacan. Um retorno ao elemento central na sociedade tradicional e rearticulada na modernidade é o valor da regra, que implicaria atualmente na apropriação da interrogação sobre o desejo e não a sua promessa ou fomento.

Mas, outro ponto em relação ao sujeito da psicanálise, que cabe aqui resgatar em breves linhas, é a questão da “opacidade” do sujeito. Para Lacan, o sujeito do desejo não é reconhecido por outra consciência, pela transparência ao outro, pelo domínio de um saber ou partilha de um conhecimento racional. Para Lacan, o sujeito é opaco ao outro e todo reconhecimento passa por essa opacidade. Tendo em vista a perspectiva estruturalista de Lacan, a incompletude é o que nos marca. O sujeito é sempre um vazio que tem um lugar marcado pela estrutura.

A opacidade que problematiza o inter-humano, vinda da psicanálise, coaduna em certo sentido com a visão de Adorno, em sua crítica à teoria da comunicação. Mas essa problemática é antiga, em especial nos trabalhos de Hegel (SAFATLE, 2006).