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1.3 O SUJEITO NA MODERNIDADE

1.3.2 Crise e descentramento do sujeito moderno

O sujeito cartesiano é a materialização da razão moderna. Porém, questionado e transformado em sujeito transcendental por Kant tem sido problematizado na filosofia, em especial, na segunda metade do século XX.

Deleuze (1990) indica que o conceito de sujeito cumpriu suas funções há muito tempo. Em primeiro lugar, desempenhou a função de universalização e o fez em um contexto de atos noéticos e lingüísticos, e não por essências objetivas. Em segundo lugar, o sujeito cumpre a função de individualização. A pessoa não pode mais ser entendida como coisa ou alma, mas sim como uma pessoa viva, que fala e com quem se fala. Então o eu universal e o eu individual tem ligação? A singularização que vem se impondo no campo do conhecimento é problemática em relação ao “sujeito”: não somente como oposição ao universal, mas como elemento que pode ser prolongado à proximidade do outro.

O agenciamento ou dispositivo que indica uma emissão e distribuição de singularidades constitui um campo transcendental sem sujeito. O que está colocado não é contrapor verdadeiro e falso, mas o singular e o regular, o notável e o comum. A complexidade das questões que são colocadas requer novos conceitos para dar conta dos novos desafios teóricos.

Diferentes “descentramentos” do sujeito são colocados por Hall (2001) de forma sintética, mas que possibilitam a compreensão do “centro” da crise teórica do sujeito. O Estruturalismo como movimento intelectual contribuiu em grande parte. Um primeiro descentramento importante do sujeito moderno aconteceu nas mudanças do pensamento marxista, no estruturalismo. Althusser (1918-1990), ao interpretar Marx, afirmou que o núcleo de seu sistema teórico não está colocado sobre uma concepção abstrata de homem, mas das relações sociais.

Não há uma “essência universal” de homem, mas atributos de cada indivíduo singular. O “Anti-humanismo” de Althusser desloca o ator individual do centro da interpretação marxista e o coloca como agente do sistema (LECHTE, 2003).

Freud (1856-1939), com a descoberta do inconsciente, destrói o conceito de sujeito do Cogito que tem unidade e identidade fixas. A impossibilidade do controle consciente da subjetividade, que se forma durante toda a vida, depõe contra uma identidade dada e estabelecida. A identidade não é plenitude, mas falta, que é preenchida pelo “espelho” do olhar do outro. A psicanálise de Freud e Lacan irá desconstruir a noção de sujeito fixo, tornando-o inviável (HALL, 2001).

Ao destacar que a linguagem não era um sistema individual, mas social, Ferdinand Saussure (1857-1913) alertou que falar não é somente expressar os nossos pensamentos, mas principalmente ativar um conjunto extremamente amplo de significados, inclusos em nossa linguagem e em nossos sistemas culturais. As conseqüências do pensamento de Saussure foram significativas, conforme Lechte (2003, p.174):

Para muitos, como o antropólogo Claude Lévi-Strauss ou o sociólogo Pierre Bourdieu, ou o psicanalista Jacques Lacan, assim como para Roland Barthes na crítica literária e na semiótica, os insigths saussurianos inicialmente pavimentaram o caminho para uma abordagem mais rigorosa e sistemática das ciências humanas – uma abordagem que verdadeiramente tentava levar a sério a primazia do domínio sócio-cultural para os seres humanos [...] A sociedade ou cultura em um determinado estado de desenvolvimento – não discretas ações humanas no passado ou no presente – tornou-se o foco do estudo.

Derrida, ao focar seu trabalho na “diferença”, afirma que a identidade nunca é fixada pelo falante, pois é portadora de outros significados. Se nossas afirmações são baseadas em proposições, premissas e significados polissêmicos de que não temos consciência, a identidade é instável. Ela é “irritada” pela diferença, que não a deixa fechar-se sobre si mesma (HALL, 2001).

Foucault, ao estudar o poder e a sua relação com a “genealogia do homem moderno”, representa outro descentramento do sujeito. O poder disciplinar que emerge da modernidade e de suas instituições – prisões, manicômios, oficinas, quartéis, escolas entre outras – estabelece forte controle e vigilância de populações inteiras, do indivíduo e de seu corpo. Esse poder disciplinar, que se situa no seio de instituições coletivas, promove o controle sobre o indivíduo. Essa individualização ocorre por um maior controle externo sobre o sujeito individual, por instituições cada

vez mais organizadas e eficientes. Paradoxalmente, em uma sociedade cada vez mais organizada, se produz o isolamento, a individualização do sujeito. Ele emerge não como consciência, e sim como produto do conjunto das estruturas, historicamente postas (HALL, 2001).

Os novos movimentos sociais que emergiram na década de sessenta (no Brasil emerge com maior vigor, ao fim do período ditatorial) não se vinculam diretamente à vida partidária, apesar das predileções de seus dirigentes. Militam sobre aspectos pontuais da sociedade ligados aos direitos civis, dos animais, à defesa do ambiente, aos movimentos culturais, entre muitos outros. São céticos em relação à burocracia e às relações de poder marcadas por compromissos partidários. Fazem a política “total”, ou seja, a abordam em todas as dimensões possíveis da vida. O que é importante destacar é que o trabalho realizado dentro dos diferentes movimentos sociais, mesmo se não transformam radicalmente a sociedade, podem proporcionar uma melhor qualidade de vida, uma maior participação da sociedade civil no seio do Estado. Esses novos movimentos sociais apelam à identidade do grupo que o sustenta. Os “sem-terras”, “gays”, “lésbicas”, “negros”, “pacifistas”, “ambientalistas”. Uma política de identidade, mas que proporciona a proliferação de diferenças.

O movimento feminista proporciona um dos descentramentos conceituais do sujeito moderno. O “impacto do feminismo”, que emerge no conjunto dos movimentos sociais, questiona deferentes aspectos, entre eles, o conceito de “humanidade” que congrega homens e mulheres como identidades iguais e o substituem pela diferença de sexos. Outro aspecto não menos importante é a indistinção do político como pertencente somente ao “público” e o privado ao pessoal. O pessoal é político na medida em que a família, a sexualidade e a criação dos filhos não são “tabus”. Justamente nesse campo é que são formadas as diferenças de identidades sexuais de gênero (HALL,2001).

As ciências sociais e humanas e seus intelectuais não poderiam deixar de ser impactados pela crise do sujeito moderno. A “fragmentação” do saber, denunciada por pensadores comprometidos com correntes de pensamento que se constituíram tendo como base o sujeito do cogito e/ou transcendental, proporcionou o resgate de elementos antes desconsiderados das análises nas ciências humanas.

A crise da razão moderna foi reapropriada pelo conjunto das ciências sociais e humanas, tendo conseqüências nas análises e no posicionamento de diferentes pensadores. Se Adorno e Horkheimer (1985) não apontaram a saída, deixam implícito que não há como voltar.