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A rede comercial e as transformações urbanas

São Joaquim: resquício, combinação ou “síntese insular” do Recôncavo da Bahia?

3.1 De rede comercial a o quê? Construção e reconstrução da paisagem urbana

3.1.2 A rede comercial e as transformações urbanas

“Ao lado [da Praça Cairu] encontrava-se o antigo Mercado Modelo e o pequeno Porto dos Saveiros, nesta época lugares privilegiados da Bahia que, lamentavelmente, foram vítimas da onda invasora dos carros e da necessidade de lhes criar grandes avenidas e espaçosos estacionamentos. Um incêndio ‘oportuno’ fez desaparecer o mercado e em conseqüência os saveiros foram descarregar em outra parte os produtos trazidos dos diversos pontos do Recôncavo.” (VERGER, 2002, p. 27)

“Aí eu vejo, vamos dizer assim, toda a história que tá empurrando a Feira para o local que ela está hoje e de tentar empurrá-la na direção do subúrbio, quem sabe aonde ela pararia. Mas, o abandono do poder público foi gritante nesse período todo.” (José, 68 anos, feirante há 45 anos)

Nas décadas de (19)40 e 50, a população de Salvador se abastecia em armazéns, pastelarias, quitandas e vendas. Além disso, desenvolveu-se todo um sistema de feiras e mercados na cidade, dispersando os gêneros alimentícios chegados do Recôncavo, principalmente perecíveis como frutas e verduras. Os mercados de São Miguel, de Santa Bárbara e das Sete Portas68 funcionavam na Baixa dos Sapateiros; os mercados do Ouro69, Modelo e a feira de Água de Meninos (também chamada de Mercado Popular de Água de Meninos) funcionavam na área do Comércio. Este último ao pé da Ladeira da Água Brusca.

68 “[...] Mercado das Sete Portas, aberto dia e noite. Nas noites de sábado, a animação deste mercado era

grande até o amanhecer. Falava-se dos resultados prováveis da partida de futebol do dia seguinte, o domingo, quando, à noite, todo mundo se encontrava para celebrar a vitória ou afogar, na cerveja ou na cachaça, a tristeza da amarga derrota do time favorito.” (VERGER, 2002.p. 29)

69 “De bastante interesse, o Mercado do Ouro, na Cidade Baixa. Nas suas tendas, a farinha e o açúcar, o

fumo de rolo e a carne de sertão misturam-se aos cânticos das filhas-de-santo que cozinham o peixe, o camarão, o polvo para os pequenos restaurantes de tempo divino” (AMADO, 1991, p. 395)

Figuras 6 e 7: Fotos de Pierre Verger do cais Cairu. Detalhe para o prédio de Mercado Modelo e do volume dos saveiros ancorados.

Além desses mercados e da “Grande Feira”, havia também algumas feiras-livres para o abastecimento dos bairros com frutas e verduras, como as da Barra e na Rua do Cabeça. Segundo Antônio Barros (apud ARAÚJO, 1999, p. 103), “esse tipo de centro de abastecimento destinado às camadas mais pobres da população é uma novidade nesse período, a partir dos anos (19)30, como a Feira do Sete, localizada em um areal onde se construiu depois o prédio do Instituto do Cacau, no Comércio, atrás do 7º armazém das Docas, daí o seu nome. Surgiu depois a Feira do Curtume perto da Calçada e, principalmente, a Grande Feira de Água de Meninos, que foi, no seu tempo, a grande vitrine de uma Salvador nova que emergia pobre e superpovoada”.

A entrevista de Antônio Barros a Ubiratan Araújo (idem.) descreve a chamada Feira do Sete, situada num areal70 no orla do atual bairro do Comércio (das Nações), área ainda não aterrada por volta dos anos 20-30 do século XX, estendendo-se até a Avenida Jequitaia71.

De acordo com Paim (2005, p. 26):

Nas proximidades da Praia do Sete [situada nos dias atuais entre a Rua Israel e o Moinho Salvador], homens e mulheres construíram abrigos e casebres cobertos com folhas de flandres, telhas de zinco enferrujadas adquiridas nos rescaldos dos incêndios ou demolições das antigas casas ou casarões.

70 Márcia Paim (2005), em significativo trabalho em dissertação, reconstrói a partir de notícias de jornais

(A Tarde e Jornal da Bahia) a história das feiras do Sete, Água de Meninos e São Joaquim até meados da década de 1970. A autora encontra numa manchete no Jornal A Tarde de 09.04.1934 anúncio sobre o fogo que acometera a Feira do Sete. Citado de Paim (idem, p. 25): “Depois de larga existência da iniciativa de uma preta que arranjou quatro varas e cobri-as com pannos podres improvisando uma barraca dentro da qual vendia mingau – o acampamento cresceu vertigiosamente como grama de burro, lançou raízes profundas, dando muita dor de cabeça a quantos por sentimentos de caridade não previa a terríveis conseqüências quando aquilo se transformasse num perigoso bairro, onde todas a contravenções às leis e costumes à moral, seriam praticados à luz meridiana. E assim foi a feira do sete, passou ao noticiário dos jornaes, dando o que fazer à polícia.”

Sugerimos para um mais acurado detalhamento sobre os acontecimentos que acometeram as Feiras de Água de Meninos e São Joaquim – controle, ordenamento, legislação, incêndio, relocamento etc. – o trabalho desta historiadora, principalmente, por conta da baliza histórica elegida à problemática trabalhada por ela: 1964 a 1973. Apesar da nossa preocupação histórica, como procuramos sinalizar na introdução desta dissertação, não nos detemos em uma gama de detalhes desse marco temporal nem dos tempos doravante. Procuramos sinalizar, em algumas situações endossar mais fartamente, sobretudo em perseguição à nossa empreitada de pesquisa.

71 “Em 1911 foi aprovada a planta de remodelação do Comércio e toda a área foi declarada de utilidade

pública. Entre 1912 e 1916, durante o governo de J. J. SEABRA, o Comércio também foi reformado. Em 1922 as áreas aterradas foram alienadas por uma empresa imobiliária (AZEVEDO, 1985). Em 1930 estavam aterrados e urbanizados 80 hectares, de área conquistada da baía de todos os Santos (p. 34), permitindo uma ampliação da oferta de terrenos, num padrão em quadrícula, num dos trechos mais valorizados de Salvador, do ponto de vista comercial” (VASCONCELOS, 2002, p. 288-289).

A Feira do Sete era móvel e os produtos comercializados vinham principalmente do Recôncavo, em saveiros trazidos pelo rio Paraguaçu à capital, dos mais variados lugares da região.

Santos (1959, p. 73), referindo-se às funções comerciais do porto de Salvador, ressalta que na década de 50, por ele saíam os produtos da economia regional e chegavam os produtos alimentares e manufaturados, necessários à vida cotidiana. “O Recôncavo, ainda hoje, é o grande fornecedor desses produtos, para uma cidade praticamente sem periferia rural imediata”.

O comércio varejista na capital era regulado pelo trânsito desses saveiros ou de outras embarcações de carga pela baía, expressando relações estreitas com o Recôncavo. Como uma “floresta”, como metaforicamente descreve Odorico Tavares a visão dos saveiros, punham-se atracados na orla da cidade entre o Cais do Mercado e a enseada de Água de Meninos.

Vendo-se chegar e sair às dezenas, pouco pensarão no rendimento que trazem para a economia da cidade do Salvador. Porque o abastecimento da capital é feito, na sua maioria, pelas suas embarcações. O Recôncavo, onde, com tantos resultados, se estabeleceu a ‘civilização mais sedentária que o português fundou nos trópicos’, como acentua o sociólogo Gilberto Freyre – este Recôncavo de velhas cidades, de vilas e lugarejos, de ilhas paradisíacas, é todo comunicado pelos saveiros que correm seus mares, noite e dia. [grifos nossos] (TAVARES, s.d, p. 49)

Milton Santos, ainda em estudo sobre o centro comercial da cidade, endossa o relevante papel dos saveiros, “os barcos a vela”, com capacidade “entre 12 e 15 toneladas”. Segundo ele, era em torno de 5.500 e não só ligavam “a capital do Estado ao Recôncavo como os outros portos do litoral atlântico do Estado”.

Exportando e importando esses tipos de gêneros, desenhava-se na paisagem portuária uma dupla organização desse espaço: o cais e as rampas.

São duas: a “Rampa do Mercado”, logo ao lado da Praça Cairu e a da Água de Meninos, no final da Av. Frederico Pontes, ambas, muito pitorescas e ricas de cor local. Recebem uma multiplicidade de produtos agrícolas: farinha, frutas, legumes. Assim como o “grande porto” acarretou a instalação do grande comércio nas proximidades, o outro provocou o aparecimento de feiras ao ar livre, espécie de “feira grossista”, onde vêm se abastecer os comerciais de outras feiras, os proprietários de armazéns, vendas e barracas, os restaurantes e hotéis, vendedores ambulantes e donas de casa previdentes. (SANTOS, 1959, p. 73)

O grande porto, o do entreposto das mercadorias nativas ou importadas, chegadas ou exportadas em grandes embarcações – o porto dos navios, dos armazéns e depósitos, e dos edifícios de escritórios; e, o pequeno porto, o das feiras e mercados, dos saveiros.

Foi este que provocou “o aparecimento de mercados; mas como eles se tornaram, desde há muito, insuficientes, observa-se o surgimento de barracas de madeira, visivelmente provisórias, e que constituem verdadeiras ruas”.

Dependendo das mercadorias vindas pelas águas, os tempos e dias das compras dependiam da chegada dessas embarcações, que supriam as feiras-livres, garantindo o aprovisionamento da população soteropolitana de víveres não produzidos na cidade. Chegavam carregados e voltavam igualmente carregados, de pessoas e mercadorias, consolidando, pelo recurso do frete, as trocas.

É toda a produção da fértil região da Bahia, que vem se expor todos os dias na Rampa do Mercado ou na feira de Água de Meninos, para deleite dos visitantes, já que os daqui olham-na com a indiferença das coisas cotidianas. E, à tarde, regressam, levando para seus pequenos portos de origem, entrando pelos rios adentro, conduzindo os produtos importados, a farinha de trigo, o querosene, os gêneros alimentícios que vêm do sul e do norte. [grifos nossos] (idem, ibidem)

Eis o sistema de trocas, conforme Pinto (1998, p. 112-113), anteriormente citado, Salvador-hinterlândia, desenhando na paisagem ou “anfiteatro”, no singrar dos saveiros e na dispersão interna pelos carregadores e trapicheiros de ganho dos cantos e nas pranchas nos bondes, puxados a cavalo ou burros e depois elétricos, pela cidade, uma teia ou rede comercial contínua. Nessas idas e vindas, na regularidade das trocas e comércio efetuados nos cais, surgiram feiras, ou outras eram “alimentadas” pelos produtos chegados.

Naquela época, a Prefeitura de Salvador procurou controlar a fixação de pontos de venda, a fim de manter a mobilidade da Feira do Sete. Mas, isto foi inevitável. A proibição da fixação de ponto foi regra que não deu certo.

No início da década de 30, um incêndio acomete parte das barracas de madeira instaladas na Feira, causando a transferência dos feirantes para a enseada de Água de Meninos.

O fogo purificador – a famosa feira do “Sete”reduzida a cinzas! Eis a manchete de A Tarde ao noticiar o incêndio ocorrido na Feira do Sete, em abril de 1934, que causou sua transferência para a enseada de Água de Meninos, na primeira metade do século XX. A notícia informa que: [...] “A companhia Cessionária e a Fiscalização Federal empenhados no saneamento do local tomaram a cerca de um anno a iniciativa de entregar à Prefeitura da capital, o controle da alludida Feira que fora mudada das proximidades do Armazém 7 para o novo aterro fronteiro às Docas do Wilson.” (PAIM, 2005, p. 25)

Nas memórias do Seu Antônio Barros, como reproduzimos acima, e nos esforços de investigação e reconstituição da supracitada autora, anterior à Grande Feira de Água de Meninos, percebemos a existência da Feira do Sete, a princípio de ocupação rarefeita e improvisada no areal em vias de sofrer aterramento com as obras de expansão do Porto de Salvador. Mário Augusto dos Santos (1982 apud PAIM, 2005, p. 30), em estudo sobre o processo de urbanização da cidade nas primeiras décadas do século XX, registra as obras no Porto de Salvador nos anos de 1906 até 1913, sinalizando também para que “naquele mesmo ano [1910] começaram as obras de melhoramentos no Bairro Comercial, ligadas não só às necessidades do serviço do novo cais do porto, como também ao saneamento da zona”.

Paim (idem) também recupera os impactos no ordenamento do comércio varejista das ruas e das feiras com o Código de Posturas de 1920. Como formalização do poder disciplinador, o código estabelecia regras e obrigações para os comerciantes desses locais. “Tais medidas pretendiam sanear as principais artérias da Capital que proibiam ou dificultavam o ir e vir dos ambulantess, e criava interdições e prescrições específicas, para o trato do pequeno comércio de ruas [...]” (p. 31).72

Há outras feiras, há outros centros de abastecimentos, mas quantas centenas de pessoas não descem a Ladeira da Água Brusca, não vêm do lado da Calçada, para procurar produtos que necessitam para a sua subsistência. (TAVARES, s.d, p. 88)

Era na área que veio a ser ocupada pela Feira que se faziam “as aguadas para todas as embarcações da marinha, tanto real, como mercantil ou do comércio”, e tinha começo a “calçada chamada de Água de Meninos, menos elevada, mas comprida, e por esta podem livremente subir seges: vai esta sair ao caminho”, escreve Simas Filho (1980, p. 46), comentando o texto em que Luís Vilhena (1969) se referia às comunicações entre as cidades alta e baixa. Na sua apropriação de Vilhena, o autor continua: “[...] do Pilar até Água de Meninos, [...] ‘depois de comprida distância acompanhada toda de casas e cortumes, desagradáveis pelo fétido’, alcançava-se um largo ‘alegre e desafogado’, Água de Meninos”. O largo alegre e desafogado nos oitocentos se converteu no

72 INTENDENCIA MUNICIPAL DO ESTADO DA BAHIA. Código de Posturas Municipais: Cidade

tumultuado, engarrafado e inchado com a expansão e ocupação da Feira de Água de Meninos. Como escreveu Gilberto Gil na canção Água de Meninos73 situando-a:

“Por cima da feira, as nuvens Atrás da feira, a cidade Na frente da feira o mar Atrás do mar, a marinha Atrás da marinha, o moinho Atrás do moinho o governo Que quis a feira acabar”

A localização da Feira de Água de Meninos, próximo ao cais, explica o seu crescimento e expansão, – numa mistura de pescaria, bares, boates, ancoradouro e restaurantes – já que era por via marítima que grande parte do mercado soteropolitano era abastecido de mercadorias e produtos regionais. “Uma das marcas desse período era a afluência de turistas, atraídos pelas ‘especiarias’ locais” (LOBO, 1992, p. 27). Com o anos e fluxos de consumidores e mercadorias, a Feira foi se tornando permanente. Nesse período, segundo Paim (2005, p. 45), a diversidade de produtos e formas de comercialização não eram, em certa medida, monitorados e fiscalizados, como “estratégias para disciplinar a lida diária na Feira, especificamente na década de 40, quando a cidade passava por momentos de crise no abastecimento”74.

73 “Água de Meninos”, do disco Louvação (1993), composição de Gilberto Gil e Capinam. Gravada pela

Universal Music Brasil.

74 Paim (2005, p. 47-48) refere-se à Lei n. 29 de 07 de dezembro de 1948 que dispõe sobre a criação de

feiras móveis distritais na cidade do Salvador, sancionada pelo chefe do executivo Municipal, Wanderley de Araújo Pinho (1947-1951). “Os demais artigos da Lei de 1948 determinavam as cores dos uniformes dos feirantes; a maneira de expor, embrulhar e/ou acondicionar as mercadorias; firmavam proibições Figuras 8 e 9: Fotos de Pierre Verger da Feira de Água de Meninos. Detalhe para a enseada e os saveiros.

Mas, por que Água de Meninos? Segundo Tavares, Água de Meninos deve seu nome a enseada em que se localizava.

É a pergunta que ouvimos muitas vezes do visitante, ante a enseada da feira dos mil produtos. Por que Água de Meninos? Perguntamos todos nós que gostaríamos de explicação em que se ressaltasse o sabor lírico das denominações do povo. Sabemos que, no século XVII, já o local se chamava Santiago de Água de Meninos. Pode ser que o erudito traga ao leitor a definição exata, seca, histórica. Mas nós desejamos sempre ignorar, para que a imaginação resolva por si só, pois jamais o local de uma feira teve nome tão belo e tão sugestivo. E a feira de Água de Meninos é o ponto ideal para um contato demorado e saboroso com o que há de mais entranhado na alma do povo baiano. [grifos nossos] (TAVARES, s.d., p. 88)

Contudo, Verger (2002) tem uma outra versão, mais poética, da origem do nome da Feira que o impressionou na década de 40 quando aqui esteve.

Uma das principais feiras nos anos 40 era a de Água de Meninos, assim chamada porque a água da baía, onde estava situada, era tão rasa que as crianças podiam banhar-se e brincar à vontade, sem perigo. A feira era particularmente animada aos sábados, quando as pessoas vinham se abastecer para a semana seguinte. Aí se vendia de tudo: louça de barri, cerâmica em geral, farinha de mandioca, todos os legumes e temperos desejáveis. [grifos nossos] (VERGER, 2002, p. 35.)

como a venda de frutas cortadas ou descascadas [...]”. Os artigos estabeleciam também punições às infrações cometidas pelos comerciantes.

Em Água de Meninos75, encontravam-se “coisas” de todos os tipos e gostos, de regiões distintas e com variados tratos. Assim, era a cerâmica de todas as cores, tamanhos e formas do Recôncavo, cana-de-açúcar e rapaduras, artesanatos em palha, produtos de candomblé e umbanda e frutas tropicais em abundância.

Trazem os mais variados produtos da terra baiana; bananas em cachos semiverdes, laranjas, cerâmica, aipim, os quiabos para os mais coloridos carurus, a pimenta malagueta de fascinantes efeitos: cana-de-açúcar de Santo Amaro; abóboras, tomates e pimentões; montes de verduras junto aos garrafões de dendê de todas as comidas; até gaiolas de pássaros que não sabemos se cantam, até o louro imponente e malicioso no seu alto poleiro. Até o sagüim ali exposto pelo menino que vende, quem sabe, com lágrimas nos olhos, pela necessidade do dia difícil que passa. Depois as barracas das mais variadas comidas. Brilham sobre a toalha branca do botequim ao ar livre, as jóias do caruru, do vatapá, do efó, do acarajé, da galinha de xinxim ou do abará. E numa imensidade de modelos e de formas a cerâmica de panelas, tigelas, pratos, bilhas e copos. (PINTO, 1998, p. 88-89)

E de tudo ali se encontra, gêneros de todas as necessidades são mercadejados, a maioria trazida nos bojos de barcos a vela – os grandes e exóticos saveiros que fazem o comércio da Baía de Todos os Santos, ligando a capital às cidades, vilas e arraiais do Recôncavo, pontilhando o horizonte azul com seus panos enfunados, levantando em cada enseada, bosques de mastros nus. Encalhados na areia de Água de Meninos, pintados de cores cruas e vivas, tem nomes de ingênua poesia, numa mostra pura do sentimentalismo dos homens do mar. [grifos nossos] (MAIA, 1951, p. 8)

É como se fosse a enxurrada das ladeiras do Canto da Cruz, do Quebrabunda, da Lapinha e da Água Brusca. Fica lá embaixo, junto ao mar, num amontoado inverossímil de barracas, divididas por becos, ruelas e passadiços, formigando de gente, de saveiros, de jegues, frutas, legumes, jabá, cestas e tamancos, camarão seco e raladores de coco, fifós,cana e farinha de guerra. [...] Cerâmica de todo o recôncavo. De todos os feitios e para todos os usos. Como os depósitos de inflamáveis invadiram o território da feira, um areal alvo onde se comia à noite, sarapatel e mocotó, onde de amava, se dormia ou se ouviam histórias do mar ao pé dos saveiros. [...] como os depósitos de inflamáveis invadiram seu território, a feira invadiu

75 Luiz Eduardo Dorea (2006, p. 79-80) faz referência ao Senhor Cristovão de Aguiar Daltro que teria

doado parte de seu patrimônio ao Colégio dos Jesuítas. Nesta doação estaria um engenho de açúcar movido à roda d’água, localizado no sítio conhecido como Água de Meninos. “A Água que descia [com violência] de Santo Antônio [era] a água brusca, que movia a roda do engenho localizado lá na beira do mar.” Daí o nome da ladeira, a ladeira da Água Brusca, sob a qual cresceu a Grande Feira. E mais uma possível versão sobre a origem do nome da Feira: a remissão ao estabelecimento sobre a tutela dos jesuítas: Engenho d’Água dos Meninos dos Padres da Companhia de Jesus.

a rua. Começa do lado de fora entre as palmeiras reais. Mercam-se ali panelas de alumínio, bacias, canecos e bules. Banha de jibóia para reumatismo, canela de ema para a asma e folhas, casca e paus para curar de tudo. [grifos nossos] (CARYBÉ, 1987, p. 103-104)

A feira despertava os sentidos, fascinava, açanhava a criatividade e recheava os relatos dos viajantes, cronistas e escritores de sua época. As metáforas e descrições emocionadas nos levam a uma imagem de pujança, de grandiloquente, fervinhante. De qualquer forma, mais ou menos apaixonadamente descrita, a feira aglutinava gente de todos os lugares da cidade que lá iam comprar, se abastecer. Pessoas que procuravam comprar, atraídas pelos preços baixos e sortimento.

Para esta feira dos mil produtos, vem toda uma população pobre da cidade para em grande parte se abastecer. Há outras feiras, há outros centros de abastecimentos, mas quantas centenas de pessoas não descem a Ladeira de Água Brusca, não vêm do lado da Calçada, para procurar os produtos que necessitam para a sua subsistência. (TAVARES, s.d, p. 89)