• Nenhum resultado encontrado

São Joaquim: resquício, combinação ou “síntese insular” do Recôncavo da Bahia?

3.1 De rede comercial a o quê? Construção e reconstrução da paisagem urbana

3.1.1 Espaço urbano, paisagens e sedimentação

Referindo-se ao espaço, Santos (2004) compreende-o como a acumulação desigual de tempos. São os tempos e os diferentes usos que se sedimentam (acumulam) e conformam os espaços. E recupera a noção de paisagem, efetuando uma distinção epistemológica, como necessária ao tratamento conceitual do espaço (SANTOS, 1999).

Resgatamos a noção de espaço, precisamente, de espaço urbano e de paisagens no esforço de compreender a problemática inscrita às relações entre a Feira e a cidade. Relações estas que configuram feições à Feira e que parecem refletir sobre as formas de organização social e/ou à teia de relações desenhada entre a Feira de São Joaquim e os pontos de comércio em Salvador e sua hinterlândia.

Santos chama ainda atenção para a distinção entre os conceitos de espaço e paisagem e, inclusive, para as relações entre estes. Assim, “a paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima” (ibidem, p. 83).

Assim, as paisagens existem, pelas formas, como produtos de momentos históricos diferentes, coexistentes no momento atual. No espaço, “as formas de que compõem a paisagem preenchem, no momento atual, uma junção atual, como resposta às necessidades atuais da sociedade” (idem, ibidem).

Na verdade, paisagem e espaço são sempre uma espécie de palimpsesto onde, mediante acumulações e substituições, a ação das diferentes gerações se superpõe. O espaço constitui a matriz sobre a qual as novas ações substituem as ações passadas. É ele portanto, presente, porque passado e futuro. (idem, ibidem)

Landim (2004) e Corrêa (2005), discutindo o conceito de espaço urbano, corroboram com essa acepção e o entendem nas sociedades capitalistas como um

produto, um reflexo da sociedade, resultado das ações acumuladas, das deposições, através do tempo e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço65.

É o tempo que sobrepõe e desenha o físico, o material, configurando as formas urbanas e definindo os elementos que compõem as paisagens. Assim, se tomarmos a paisagem urbana, por exemplo, em um ponto determinado no tempo, esta representa diferentes momentos do desenvolvimento de uma sociedade (SANTOS, 2004).

Harvey (1998) recupera a relatividade da experiência do espaço e do tempo, mostrando que o tempo social e o espaço social podem variar geográfica e historicamente, conforme as práticas materiais de reprodução social perpetradas. Portanto, um modo de produção ou uma formação social (HARVEY, 1998, p. 189) “incorpora um agregado particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço”.

Dessa forma, se no capitalismo as práticas e processos materiais de reprodução, em constante mudanças, assumem concomitantemente significados de tempo e espaço, as mudanças nas representações de tempo e espaço (pelo avanço do conhecimento) podem imputar mudanças na organização da vida diária. Assim, as mudanças nos espaços das cidades, configurando novas formas, estruturas e funções (LEFEBVRE, 2001), implicam ajustes às práticas diárias dos usuários citadinos. E não se trata de uma determinação às práticas pelas formas construídas, já que os ajustes também são extensivos às formalizações e geram adaptações.

[...] as práticas [...] têm o estranho hábito de escapar de sua circunscrição a todo esquema fixo de representação. Podem ser encontrados novos sentidos para materializações mais antigas do espaço e do tempo. Apropriamo-nos dos espaços antigos de maneiras bem modernas, tratando o tempo e a história como algo a ser criado, em vez de aceitar. (HARVEY, 1998, p. 190)

Santos (2004, p. 60) vai retomar esse tema insistindo na importância da noção de tempo. Assim, a Feira de São Joaquim, a natureza do seu espaço, físico e humano, pode ser pensada como produto “material acumulado das ações humanas através do tempo, [...] assinada pelas ações atuais que hoje lhe atribuem um dinamismo e uma funcionalidade” (idem, 1999, p. 85). Ora, o sítio geográfico na enseada de São Joaquim constitui a paisagem e o evento comercial, o espaço da Feira. Complementa esses construtos a citação de Santos (idem, ibidem, p. 85): “Os movimentos da sociedade,

65 Landim (2004, p. 31): “As sociedades mudam ou evoluem ao longo da história, assim como as

condições físicas na superfície do planeta. Essa injunção de história-sociedade e meio físico gera uma diversidade.”

atribuindo novas funções às formas geográficas, transformam a organização do espaço, criam novas situações de equilíbrio e ao mesmo tempo novos pontos de partida para um novo movimento”.

Como memória viva de um passado morto (BLOCH, 1974, apud SANTOS, 1999, p. 86), a paisagem é um precioso instrumento de trabalho, pois “essa imagem imobilizada de uma vez por todas” (idem, ibidem) permite rever/constituir as etapas do passado numa perspectiva do conjunto66.

Perceber os diferentes tempos, as marcas e variados usos, e mais, os grupos definidores dessas marcas e desses usos, é perceber as paisagens urbanas. As paisagem é portanto, resultante dos elementos econômicos, sociais e culturais que a produziram num determinado período e contexto (LANDIM, 2004). A paisagem é o produto dessas intervenções, das modificações e presenças/ausências de determinados agentes no tecido urbano (LEFEBVRE, 2001). Alguns autores supracitados (SANTOS, 1999; LANDIM, 2004) e outros (ZUKIN, 1995; BRESCIANNI, 1998; ARRANTES, 2000) apontam para a importância da cidade como uma experiência estética, para o urbano como experiência sinestésica, principalmente visual. E retomam a noção de paisagem como decisiva ao reconhecimento da cidade67.

Na medida em que se mostra ou é percebida, a paisagem urbana não é somente constituída por elementos, como edificações, espaços livres, arranjos, volumes e formas num suporte físico, mas é também “[...] uma imagem, uma criação mental e social; está na mente das pessoas, nas relações de uso que se estabelecem entre os cidadãos, e entre esses e os elementos” (LANDIM, 2004, p. 29). Ora, “a paisagem não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores e sons” (idem, ibidem). Os sentidos definem a paisagem.

As paisagens são produzidas, construídas ou destruídas (LEITE, 1994) conforme as técnicas, os modos de produção e circulação e de acordo com as relações sociais e culturais vigentes em cada período. São, de certo, “retratos”, ainda que embaçados, de

66

Esse aspecto retrospectivo, da percepção do espaço como sobreposições de épocas, sedimentado, acumulação de tempos, pode ser encontrado nos trabalhos de Fernand Braudel (1987)e Giovanni Arrigui em “O longo Século XX” (1999).

67

Outros autores, como Silva (1997, p. 205), procuram situar na percepção das paisagens “a noção de conjunto, sistêmica, marcada por padrões passíveis de comparação”. Assim, “a paisagem, longe de se constituir em um dado da geografia, aparece – tal como na abordagem antropológica – como uma resultante de variados fatores, todos fundamentais na organização do espaço”: dados da geografia física, do direito, da tecnologia disponível, da demografia e da sociologia.

momentos anteriores. Assim, as atividades de uma população num determinado espaço geram padrões espaciais, requerendo formas arquitetónicas que, por sua vez, vêm a influenciar essas mesmas atividades. A morfologia das cidades e como elas estão organizadas estão refletidas nas paisagens. Perceber esse reflexo é vital para entender como a cidade, e seus espaços, funciona. (idem, ibidem; LANDIM, 2004). Portanto, são o espaço, as contruções, as idéias das pessoas que organizam as atividades desenvolvidas num determinado lugar.

As formas da cidade, espelham as etapas da construção do espaço urbano. As paisagens conformadas por isso são constituídas pela similaridade, dando-lhe homogeneidade, tornando os lugares rotuláveis; ou constituídas pela especificidade, dando-lhe particularidade em alguns períodos: “[...] quanto de cada período, resultado de um processo histórico/cultural, sobrevive em cada nova paisagem” (LANDIM, 2004, p. 42). São as estruturas remanescentes, os sedimentos, as marcas presentes nas novas paisagens que vêm a conferir a particularidade a um espaço.

A composição das paisagens, as atividades e os tempos que as sucedem imprimem marcas, sedimentos que se decompõem e se sobrepõem ilustrando e desenhando no imaginário as épocas. Se o urbanismo barroco, com sua estética rebuscada e curvilínea, sua inebriante miríade de pontos de atenção, imprimiu na Salvador as marcas do poder da Igreja, do Estado e da nobreza – escritores de concretudes – as igrejas e os palácios; os mercadores e comerciantes também expressaram materialmente no espaço urbano seus poderes. Goulart Reis (apud RISÉRIO, 2004, p. 241):

Se os palácios de portadas barrocas da Cidade Alta, construídos em fins do século XVII e início do XVIII, foram uma afirmação do poder dos grandes proprietários rurais da Bahia, o conjunto urbano da Cidade Baixa foi uma afirmação do poder de seus rivais, os comerciantes da segunda metade do século XVIII e do início do século XIX. Os primeiros se afirmavam por obras monumentais isoladas, e praças com edifícios oficiais. Os últimos por obras simples, integradas em conjuntos monumentais e praças com edifícios destinados a fins comerciais: mercado, praça do Comércio e Alfândega.

E os pobres como se inscreviam na cidade? Certamente, as feiras eram um dos espaços de sua expressão.