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A Reforma da educação veiculada pela difusão do Humanismo na Universidade

2. Filosofia e educação em Portugal

2.3. A Reforma da educação veiculada pela difusão do Humanismo na Universidade

A chegada do Humanismo16 a Portugal, a partir do século XV, promoveu alterações de monta no cenário filosófico e educacional nacional, cuja repercussão se estendeu à abrangência da totalidade do contexto universitário.

Assim sendo, importa clarificar que a difusão da cultura humanista,17 no nosso país, se encontrou proximamente correlacionada com a influência do poder régio na esfera político- cultural18 e, na esteira dessa actualidade, o Humanismo português do século XV deverá ser 15 Fr. Gomes de Lisboa, em finais de Quatrocentos, produziu um texto, de elevado alcance filosófico, intitulado

Quaestio perutilis de cuiuscumque scientiae subiecto principaliter tamen naturalis philosophiae, revelador de um conhecimento profundo das obras de Aristóteles, Averróis e Escoto. (Caeiro, 1989).

16 O Humanismo, perspectivado como cultura laicizante concorrente à cultura clerical oficial (a Escolástica), deve

ser entendido como doutrinário-sapiencial vocacionado para o Ser e saber humanos, focalizado numa visão imanente/transcendente do mundo e da vida. Apesar de culturalmente se revelar essencialmente cristão, na medida em que reconhece a dimensão originária e a primazia do divino-transcendental, o Humanismo, a nível temático-problemático, visou a promoção de uma maior acentuação de interesse, objectivo e subjectivo, sobre o homem todo e sobre todos os homens (Barreto, 1990a).

17 A cultura humanista é susceptível de ser definida de acordo com um horizonte metódico da significação, sendo

a sua problemática a busca de sentido do humano e o seu campo de investigação o conjunto fenomenal dos valores, comportamentos e obras dos homens (Barreto, 1990a).

18 Durante os séculos XV e XVI foi a política cultural do aparelho central-estatal que marcou os ritmos de difusão

entendido como hegemonia institucionalmente vencida pela Escolástica, atendendo a que este nunca se conseguiu impor como cultura sistematicamente dominante nos planos da difusão/formação.

A cultura universitária é, no século XV, ainda pré-humanística mas, de 1500 a 1520, o nosso Humanismo pode já considerar-se incipiente para, de 1525 a 1535, atingir a sua plenitude através de uma adesão a novos métodos e, sobretudo, a um Humanismo cristão que em breve se identificará com o Erasmismo. As fronteiras entre a liberdade do juízo crítico e os pensadores heterodoxos eram oscilantes e ambíguas. Daí as hesitações, os subentendidos, as reticências e as confusões doutrinárias que surgiam da própria liberdade intelectual como supremo objectivo nos métodos da interpretação e da crítica. O regresso às fontes nem sempre era uma metodologia adequada para a inteligência se adaptar à autoridade dos pontífices. A aplicação dos métodos de exegese textual no domínio dos monumentos literários greco-latinos transferida para aSagrada Escritura podia pôr em causa o magistério secular da igreja. Nem sempre a Universidade se mostrou disposta a acatar, no plano heurístico, esse magistério (Pacheco, 1997).

O Humanismo renascentista revestiu o carácter dum movimento de reforma da educação, bem depressa concretizado na adopção de novos métodos de ensino. De todas as reformas da educação, a mais metódica foi o Ratio Studiorum dos Jesuítas, completada em 1586 mas só promulgada em 1599, em que a originalidade não reside na introdução de novas disciplinas mas sim na coordenação sistemática de todas elas e na forma pedagógica de as propor, em ordem à formação intelectual e moral do homem completo (Coxito e Soares, 2001: 538).

Porém, ao longo do século XVI, o Humanismo português19 revelou-se a hegemonia culturalmente triunfante, atendendo a que se assumiu como força que, a nível metódico, mais influenciou a transformação da Escolástica e que, paralelamente, estabeleceu uma implicação sistemática com os Descobrimentos, em campos diversos como: a Doutrina, a História, a Geografia, a Antropologia, a Botânica Médica, entre outros (Barreto, 1990a).

Exemplo representativo das alterações pedagógicas manifestadas desde o começo do

concorrencial de porosa correlação entre a Escolástica, o Humanismo e a dinâmica crítico-cultural dos Descobrimentos. Nesta trilogia, os dois primeiros elementos foram hegemonias culturais enquanto o terceiro se tratou de uma força subalterna com recorrentes pedidos de apoio frente às hegemonias (Barreto, 1990a).

19 O Humanismo português possuiu duas fases primordiais de afinidade: a primeira, marcada pela ascendência

italiana, foi dominante até à década e 30 e a segunda caracterizou-se pela maior identificação com o Humanismo cristão de tipo erasmiano. Contudo, o mais recorrente terá sido a combinação destas duas afinidades num todo de afirmação cívico-nacional que ponderou a condição cristã do homem todo e de todos os homens enquanto acção e valoração, pensamento e obra tão imanentes-naturais quanto transcendentais (Barreto, 1990a).

século XVI, foi aOração de Sapiência proferida na abertura solene do Estudo Geral de Lisboa, em 1504, na qual D. Pedro de Menezes, de acordo com a concepção pedagógica da época, referiu a Teologia e a Filosofia como sendo as Rainhas de todo o saber, classificando as restantes ciências como meras auxiliares daquelas que reconhecia como Ciências Primeiras (Carvalho, 2008).

Usufruidora de um estatuto epistemológico elevado, ainda que ensombrado pela Teologia, a Filosofia vislumbrou, no mundo universitário do século XVI, o privilégio de retornar ao topo do patamar hierárquico do saber que lhe havia sido destituído desde o final do período da Antiguidade Clássica. O ressurgir da cultura clássica da Antiguidade Grega e Latina promoveu a exaltação do homem, desde então, perspectivado como consciência das suas possibilidades e gerou condições de fomento ao Humanismo que, do ponto de vista filosófico, correspondeu a um movimento de retorno à Paideia grega ou à Humanitas latina que, num sentido prático, poderá ser traduzido pela afirmação aristotélica que entende o homem sábio como medida de todas as coisas.

Se o problema da finalidade da educação em correlação com uma determinada concepção antropológica se afirma, entre nós, desde os primórdios da escola, pode dizer-se que é com o humanismo renascentista que a questão ganha foros de maior sistematicidade... (Calafate, 1992a: 858).

De acordo com os Estatutos Universitários de D. Manuel de 1503, a Universidade portuguesa era composta por um elenco total de oito disciplinas, entre as quais constavam a Filosofia Natural, a Filosofia Moral e a Lógica. No entanto, de um total de treze cátedras, apenas uma foi atribuída à Filosofia Natural e outra à Lógica. A Filosofia Moral nem sequer teve cátedra atribuída e continuou sem existir nenhuma cátedra directamente relacionada com questões educacionais.

Por sua vez, a presença das disciplinas de Cânones e Leis, tal como o aumento do interesse pelos temas de Filosofia Político-Jurídica, em especial pelo tema da Guerra Justa, deverá ser perspectivado à luz dos problemas suscitados pela expansão ultramarina, “...concretamente pela necessidade de justificar actos bélicos contra os infiéis e os ameríndios” (Coxito, 1992: 305).

Quadro 1

Disciplinas da Universidade Portuguesa no Começo do Século XVI

Disciplinas Cátedras Teologia 2 Cânones 3 Filosofia Natural 1 Filosofia Moral 0 Leis 3 Medicina 2 Lógica 1 Gramática 1 TOTAL 13

Fonte: Estatutos de D. Manuel. p.30.

Na sequela do conjunto de transformações culturais ocorridas no decurso do século XVI, no directamente respeitante à difusão da cultura filosófica nacional, ocorreram três acontecimentos que importa destacar: a transferência, em definitivo, da Universidade para Coimbra em 1537, a fundação, em 1548, do Colégio das Artes na mesma cidade e, em 1561, a fundação da Universidade de Évora.

Por razões que até à data permanecem por apurar, mas que de algum modo deverão ter estado relacionadas com a difusão da cultura humanista em Portugal, no ano de 1537, o Rei D. João III estabeleceu, em definitivo, a Universidade na cidade do Mondego20 que, desde então, paulatinamente, foi desenvolvendo esforços para consolidar o seu estatuto académico no contexto universitário europeu.

Quando ocorreu essa mudança, a cultura universitária portuguesa, mercê dos avanços tipográficos e do afluxo de internacionalização da relação entre Escolas, começava a ser absorvida pelo Humanismo e pelo Erasmismo.21

Nesta consonância, revelou-se necessário aguardar cerca de uma década, após a transferência efectuada, para que o Erasmismo se tenha começado a explanar na Universidade de Coimbra. Contudo, o Humanismo verificou-se impedido, pela repressão 20 Importa referir que, aparentemente, a Universidade de Lisboa não se encontrava em crise quando o Rei, por

motivos que nunca foram suficientemente esclarecidos, deliberou transferi-la de Lisboa para Coimbra (Pacheco, 1997).

21 Quando a Universidade regressou a Coimbra, a figura mais representativa do Humanismo europeu era um

intelectual, chamado Desidério Erasmo, nascido na cidade de Roterdão em 1469, cuja vertente cosmopolita fez com que fosse mais considerado como europeu do que como holandês (Ramalho, 1997).

inquisitorial, de alcançar o seu máximo esplendor (Pacheco, 1997).

Neste processo de entrave à cultura humanista o ano de 1542 foi um marco determinante pois, nessa data, a Companhia de Jesus chegou a Coimbra, tendo os Jesuítas, desde esse mesmo ano, começado a frequentar a Universidade e fundado o Colégio de Jesus nessa cidade. Cinco anos volvidos, o movimento humanista deparou-se com um outro obstáculo ao seu magistério e propagação: a Inquisição.22

Na esteira da renovação da cultura pátria, em 1548, D. João III fundou o Colégio das Artes em Coimbra23 que, apesar de se tratar de uma Instituição de ensino pré-universitário, alcançou um prestígio que, até à luz da concepção actual de empresa académica, só pode ser classificado como exemplar e até mesmo invejável.24 A faceta tipicamente moderna do trabalho desenvolvido pelos conimbricenses concretizou-se pela tradução e impressão de importantes tratados filosóficos e pela publicação de manuais escolares de Filosofia.

No contexto do mundo universitário nacional do século XVI, destacou-se o esforço de teorização da educação levado a cabo por Pedro da Fonseca que, “procurou renovar (e salvar) o magistério lógico de Pedro Hispano” (Patrício, 2000: 78), principalmente pela via de publicação de obras de alto gabarito para o campo educacional, nomeadamente a Isagode Filosófica e as Instituições Dialécticas.

A aposta nos estudos é sustentada por um curioso passo, normalmente despercebido, em que Pedro da Fonseca ilustra a temática da predicação necessária, recorrendo a um exemplo assaz significativo para aquilo que nos interessa: «O homem é capaz de educação». E continua: «Com efeito, se alguém negar que o homem é capaz de educação (hominem esse disciplinae capacem), é lógico que negue que ele é homem». Ora, sabendo nós que uma predicação necessária é aquela que, se for negada, implica a destruição do 22 Interessa destacar o pioneirismo nacional face ao alvorecer da primeira vaga de revolução científica, ocorrida

nos séculos XV e XVI, graças ao contributo de alguns portugueses, dos quais foi exemplo cimeiro o trabalho inovador de Pedro Nunes (Fiolhais, 2003). Este matemático e filósofo foi um dos maiores vultos científicos do século XVI, tendo marcado a transição de um período em que a Ciência era, manifestamente, de índole teórica (a principal tarefa dos cientistas era a de comentar os trabalhos dos autores precedentes), para um tempo em que a mesma passou a dedicar-se à provisão de dados experimentais, metodologicamente orientados, no sentido de confirmar teorias. No cenário da Ciência Moderna, Pedro Nunes destacou-se, principalmente, pela resolução de problemas matemáticos relacionados com a cartografia e pela invenção de vários aparelhos de medição incluindo o nónio.

23Como o Colégio das Artes absorveu as disciplinas que se ensinavam na anterior Faculdade de Artes, esta deve

ter desaparecido (Ramalho: 1997).

24 Segundo Mário Santiago de Carvalho, caso o Colégio das Artes conimbricense fosse, efectivamente,

considerado de acordo com os três critérios decisivos para uma avaliação do rigor científico universitário, ou seja, trabalho sistemático em equipa de investigação, publicação de âmbito europeu (a língua académica universal era o latim) e reconhecimento internacional pelos pares, a sua classificação seria, necessariamente, a mais elevada (2010).

próprio sujeito, então a capacidade para se ser educado é alguma coisa que pertence à própria essência do ser humano ou emerge do fundo da sua própria essência (Carvalho, 2010: 14).

A dedicação ao estudo de Aristóteles no Colégio das Artes atingiu o ponto culminante durante a segunda metade do século XVI, mais precisamente a partir de 1555, data a partir da qual o Colégio foi confiado aos Jesuítas. O intuito dos Professores jesuítas de Filosofia era assegurar a fidelidade à doutrina de Aristóteles e aos seus mais qualificados comentadores. O recurso a uma terminologia precisa, consagrada por uma arreigada especulação filosófica, foi conciliada com uma expressão latina eloquente cujo resultado se traduziu pela adopção de uma terminologia clássica mais castiça que permaneceu fiel ao rigor técnico dos conceitos filosóficos.

Após chegados a Coimbra (1542) e tomando posse, primeiro do Colégio de Jesus ou Colégio de Cima e depois do Colégio das Artes da cidade (1555) os Jesuítas começaram a contribuir para o espírito pedagógico e a expandi-lo de forma pioneira (Carvalho, 2010: 41).

Quadro 2

Plano de Estudos do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus – 1552 a 1565

Ano Trimestre Disciplina

1º De terminorum introductione; Dialectica; Porphyrius; Isagoge 2º In Aristotelis Praedicamenta; Perihermeneias; Topica (início) 3º Topica (até VII); I-IV Ethicorum

1º Analytica Priora; Topicorum; Analytica Posteriora (início) 2º Analytica Posteriora (continuação e conclusão); V-VI Ethicorum 3º VII-X Ethicorum; De sophisticis elenchis; I-II Physicorum 3º

1º II-VIII Physicorum

2º De coelo et mundo; De generatione et corruptione; Metaphysica (início) 3º I-IV Meteororum; I-II De Anima; Metaphysica (continuação)

4º - III De Anima; Parva naturalia; Metaphysica (conclusão)

Fonte: Carvalho e Camps, 2010: 35.

No propósito de assegurar a qualidade do ensino, no espaço temporal compreendido entre 1592 e 1606, saíram dos prelos de madeira de Coimbra e Lisboa cinco volumes correspondentes aos oito tomos do Curso de Filosofia do Colégio da Companhia de Jesus em Coimbra, intituladosComentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus. Graças à extensão institucional, colegial ou geopolítica dos Jesuítas, e também em razão do valor

intrínseco do seu labor filosófico-pedagógico, rapidamente o texto impresso dos conimbricenses alcançou repercussão internacional (Carvalho: 2010).

O desejo de fidelidade a Aristóteles, no pensamento filosófico da época, encontra-se expresso nos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1559 que explana a imposição do estudo exaustivo das obras aristotélicas25 no Curso de Artes. Porém, apesar da historicidade da dedicação nacional ao estudo de Aristóteles, o estatuto epistemológico atribuído à Filosofia pelo filósofo nunca foi alcançado no contexto da nossa Universidade, atendendo a que este, ao dividir a ciência em ciências teoréticas (metafísica e física), práticas (ética e economia) e poiéticas (arquitectura), reservou para a Filosofia a elevação à condição de ciência suprema.

Neste seguimento, interessa esclarecer que, para os conimbricenses, a significação dos termosphilosophia e scientiaera bem diferente da actual. A philosophia era, acima de tudo, entendida como sendo o conhecimento das coisas como elas são, isto é, pelas suas causas, tendo por finalidade ensinar o modo de viver honestamente e conduzir o homem à felicidade deste mundo. Determinando como fim último daphilosophia o acto de ensinar, os Conimbricenses revelam que, de certa forma, já se encontravam cientes do alcance pedagógico da Filosofia.

Por sua vez, na concepção de scientia dos conimbricensesesta visava conhecer o objecto e a sua causa e, além disso, saber que essa causa é a razão de ser do objecto, pela qual existe com a sua necessidade própria.

Sob esta perspectiva, poderá reconhecer-se alguma identificação entre os dois conceitos, uma vez que, também a philosophia era entendida como sendo o conhecimento das coisas pelas suas causas. Esta identificação é, aliás, característica do pensamento antigo, medieval e renascentista, no qual ainda não se havia imposto, de modo premente, a necessidade de reconhecer a autonomia de ambos os domínios (Coxito, 2001).

No contexto das determinações pedagógicas da Companhia de Jesus, atinente ao ensino da Filosofia, destacou-se a relevância dada a Aristóteles, não só em Coimbra, uma vez que o recurso ao pensamento aristotélico foi, igualmente, constante noutras escolas dos jesuítas e 25 As obras de Aristóteles, invocadas nosEstatutos da Universidade de Coimbra de 1559, como suporte

bibliográfico para o Curso de Artes eram as seguintes:Categoriae, De Interpretatione, Analytica Priora, Analytica Posteriora, Topica, Elenchi, Ethica, Physica, De Coelo, De Generatione, Meteora, De Anima e Metaphysica (Caeiro, 1989).

na recém-fundada Universidade de Évora (Caeiro, 1989).