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CAPÍTULO 1 A CIDADE ILEGAL E SEU ENFRENTAMENTO

1.4 UM PARALELO ENTRE UM BREVE HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DA

1.4.1 A Regularização Fundiária surge no cenário nacional

Conforme visto, a Constituição promulgada em 1988 - que abriu um capítulo para a questão urbana em dois artigos que seriam regulamentados somente mais tarde, no Estatuto da Cidade - reconheceu o ideário dos movimentos sociais de reforma urbana e adotou os termos “função social da propriedade” e “função social da cidade”, que levam ao entendimento do dever de harmonizar a conduta individual de acordo com os interesses e necessidades do caráter coletivo.

Entre o período pré-constituinte e o processo de validação do Estatuto da Cidade, aprovado somente em 2001, deu-se a consolidação das práticas urbanas e políticas públicas voltadas à regularização. Esse fato antecipou os instrumentos que seriam introduzidos pela nova lei, através da produção de normas municipais, inspiradas no ideário da Reforma Urbana e na concepção da função social da propriedade.

As cidades de Belo Horizonte e Recife formularam os programas pioneiros de regularização de assentamentos informais no início dos anos 80, período da abertura política do Brasil. Ampararam-se na recém-aprovada Lei Federal de Parcelamento Urbano, nº 6.766

de 1979, que inovou ao tratar sobre casos de urbanização específica, conforme visto no item anterior.

Belo Horizonte aprovou a Lei de Zoneamento em 1976, antecessora da Lei Federal de Parcelamento Urbano, e ousou classificar as ocupações ilegais como áreas que deveriam receber urbanização especial. Em 1983, uma lei municipal aprovou o Pró-Favela, programa de recuperação de assentamentos ilegais que lançou mão de ações urbanísticas e sociais, de normas especiais para parcelamento do solo e criou mecanismos de gestão participativa nos processos de regularização.

Esse conjunto de ações foi utilizado em seguida por outras cidades que também aplicaram o zoneamento especial para caracterizar áreas (áreas/zonas de especial interesse social) com necessidades de urbanização diferenciada e possibilitar a regularização.

Os municípios receberam diversas críticas jurídicas e, posteriormente, decisões judiciais conservadoras, devido ao que consideraram grande ousadia de intervenção municipal no âmbito da propriedade. Defendiam a tese de que para aplicar os preceitos da Constituição sobre a política urbana, como a autonomia do município, seria necessária a regulamentação por lei federal.

Apesar das iniciativas municipais terem perseverado e provocado importantes avanços no arcabouço jurídico, como também ressaltado no item anterior, o Governo Federal manteve, por bastante tempo, o tema habitacional como um todo fora da agenda de prioridades, principalmente no período entre a redemocratização do país e a fase que antecedeu a aprovação do Estatuto da Cidade.

Desde a criação do Banco Nacional da Habitação e do Sistema Financeiro da Habitação nos anos 1960, a Política Nacional de Habitação não foi capaz de ampliar a oferta de unidades habitacionais, muito menos atender a população de baixa renda. Com a mudança no cenário nacional, através do ambiente favorável à permanência dos assentamentos ilegais e das experiências pontuais, independentes do quadro legal vigente, foi criado em 1979, a nível nacional, o PROMORAR - Programa de Erradicação dos Aglomerados de Sub-habitações. Apesar do nome, o projeto destinava-se a financiar projetos de urbanização de assentamentos ilegais.

O financiamento abrangia os componentes habitacionais e de infra-estrutura, a preparação de projetos, o pagamento de benfeitorias e indenizações, a execução de obras e serviços e a manutenção das equipes sociais, entre outros itens. Portanto, não era exigida a regularização urbanística ou da titulação das áreas. A extinção do BNH, alguns anos depois, interrompeu a continuidade dos recursos. Os resultados foram tímidos e muito menores que o

aumento em grande escala da ilegalidade da ocupação.

Parece oportuno observar aqui, que a necessidade de regularização também adquiriu notoriedade a partir dos graves problemas ambientais deflagrados nas ocupações em áreas de grandes fragilidades, a partir da década de 90. Nessa época, contando com financiamentos de bancos estrangeiros, foram aprovados projetos de vulto para despoluição de bacias hidrográficas. Tais intervenções, inevitavelmente, passaram a absorver em seus planos o problema dos assentamentos ilegais nas margens dos cursos d'água, fato que deu à questão da irregularidade da ocupação novos contornos e introduziu a necessidade de aproximação entre os discursos ambiental e urbano, dentro dos processos de regularização.

As ações pontuais e pioneiras de algumas cidades, a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988, os movimentos sociais de luta pela moradia, a incorporação das organizações comunitárias nos processos decisórios de urbanização dos assentamentos e os recursos financeiros junto a organismos internacionais, criaram um cenário propício e convergente para o aperfeiçoamento das iniciativas de regularização fundiária.

Em 2001 finalmente foi aprovada a Lei Federal que regulamentou os capítulos da Constituição sobre o desenvolvimento urbano, chamado de Estatuto da Cidade. O tema da regularização fundiária, juntamente com toda a questão urbana, passa a encontrar no Estatuto da Cidade, sua mais completa base legal, que tem como principal corrente a necessidade de fazer cumprir a função social da cidade. Dedica uma diretriz específica à matéria e, é bastante oportuno ressaltar que a mesma diretriz estabelece a necessidade também do cumprimento das normas ambientais:

XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;

A Regularização Fundiária aparece reforçada no cenário nacional após a regulamentação pela Lei Federal de um conjunto de instrumentos com vocação para tratar de maneira inovadora o assunto. Um aspecto bastante importante, que se pode depreender de todo o processo de sua validação, é a evolução conceitual do termo através dos sinais de entendimento de que a Regularização Fundiária deve ser matéria multidisciplinar que ultrapassa os condicionantes da legalização da ocupação e que deve abranger de forma plena os condicionantes sociais e diferentes atores, os condicionantes físicos e econômicos e ainda,

internalizar de maneira bastante concreta, os condicionantes ambientais.