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CAPÍTULO 1 A CIDADE ILEGAL E SEU ENFRENTAMENTO

1.5 REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO PROCESSO MULTIDISCIPLINAR

1.5.3 O conteúdo dos programas de regularização

Ainda que os programas de regularização tenham ganhado terreno no país é correto afirmar que os resultados ainda são bastante inexpressivos. Mesmo havendo esforços, em alguns casos, para reunir diferentes aspectos que participam dos processos de regularização fundiária, os números do problema da ocupação ilegal são muito maiores do que o número de

títulos concedidos.

Nas observações finais de sua pesquisa, Alfonsin (1997) identifica os principais obstáculos ou os nós críticos das práticas municipais que podem explicar os resultados ainda tímidos dos programas de regularização. Esses obstáculos serão melhor explorados mais à frente neste trabalho. Alguns deles são: a dificuldade do poder municipal em enfrentar simultaneamente os diferentes tipos de irregularidades; os problemas institucionais existentes na falta de integração entre os diferentes órgãos, no excesso de burocracia, morosidade e na precariedade dos registros de intervenção; a rigidez da legislação de registros e a estrutura dos cartórios de títulos de imóveis; o conservadorismo do judiciário perante o direito de propriedade; a descontinuidade dos programas devido a mudanças políticas; a falta de ousadia e de criatividade na aplicação dos instrumentos.

Os trabalhos de conteúdo analítico dos processos de regularização fundiária existentes, ao avaliarem os principais entraves, podem auxiliar na formulação de programas capazes de superar melhor alguns desses obstáculos. O novo contexto com o Estatuto da Cidade traz novas possibilidades, principalmente na remoção dos empecilhos que dizem respeito aos instrumentos. As possíveis soluções para os demais problemas estão diretamente ligadas à mobilização das políticas municipais e à montagem de programas estratégicos.

Em 2002 foi publicado o guia “Regularização da Terra e Moradia: O Que é e Como Implementar” pela Caixa Econômica Federal, resultado de trabalho coletivo de profissionais e estudiosos do tema da regularização, de várias regiões do Brasil e com atuação em diferentes setores. A publicação reúne informações, dados e experiências para o entendimento dos processos e para a elaboração de programas de regularização.

O guia aponta que o programa de regularização fundiária demanda primeiramente a identificação do tipo da irregularidade que por sua vez determina os critérios, os procedimentos e a aplicação de instrumentos. Em cada caso, além das equipes de trabalhos municipais e da comunidade, participa um determinado número de atores e órgãos que também influenciarão nas características do processo. Apreende-se do trabalho as etapas formadoras do programa. De forma sintética, são elas:

a) A identificação da irregularidade é o primeiro passo para montar um programa estratégico de regularização. É preciso que o Poder Municipal proceda com o levantamento das situações de irregularidades na cidade. Para cada ocupação ilegal, existe um conjunto de ações específicas de regularização, portanto o conhecimento da condição geral do município auxilia as tomadas de decisão, o estabelecimento da ordem de urgências e prioridades e a administração dos recursos disponíveis ou necessários.

Pode ser bastante complexo o levantamento das situações ilegais do município, principalmente porque, conforme visto, os censos oficiais nacionais, além de não cobrirem todo o território brasileiro, apresentam dados imprecisos para a ocupação informal. Em muitos casos, não é suficiente a base cadastral da administração municipal e torna-se necessário o cruzamento dos dados com outras informações, como as de cartórios de registros de imóveis, de concessionárias de serviços públicos e de levantamentos de campo.

As plantas cadastrais complementam a identificação da irregularidade e servem de base para a matrícula de unidades habitacionais e famílias envolvidas, para os projetos de urbanização e para o conhecimento da extensão da situação de irregularidade. Levantamentos planialtimétricos, aerofotogrametria e geoprocessamento são os métodos mais utilizados e dependem da disponibilidade de recursos locais. O mapeamento também é ferramenta para associar o projeto de regularização com as informações de hidrografia, geologia, dentre outras importantes para o estudo da área.

b) A formação da equipe de trabalho é necessária para conduzir os programas de regularização. Se o processo da regularização é multidisciplinar, obviamente é necessário que a equipe também seja: arquiteto, advogado, assistente social, engenheiro, topógrafo, projetistas, além de auxiliares de campo e de escritório. Em municípios menores, a dificuldade em dispor de equipe multidisciplinar se dá em função do quadro técnico reduzido, mas há a necessidade mínima de profissionais da área jurídica, área social e de obras. Outro desafio a ser transposto é a imprescindível comunicação e integração entre os órgãos municipais. Os desajustes institucionais comprometem o andamento de qualquer programa de regularização fundiária.

c) A definição dos critérios para a escolha da área ou áreas que serão objetos de regularização, se faz necessária tanto para o enfrentamento de diferentes casos em um mesmo município como para o planejamento da ação, em etapas, nos casos de grandes estruturas de ocupação. São muitas as variáveis que precisam ser avaliadas antes da escolha de ocupações prioritárias para regularização: as condições ambientais (poluição de recursos naturais, grandes impactos, ocupações de áreas de sensibilidade, riscos para o meio ambiente); as condições sociais (pobreza, densidade, criminalidade); as condições físicas (precariedade das moradias, das vias, ausências de serviços, riscos para os moradores, difícil acesso); as condições jurídicas (litígios de propriedade, áreas protegidas por leis). Além disso, é preciso considerar cada ocupação ilegal e as possibilidades reais de regularização, ou o caso de realocação, dentro do contexto geral da cidade (seus recursos naturais, suas atividades, vocações, etc.), uma vez que o objetivo do processo, não é somente tornar legais, mas integrar

as ocupações irregulares ao organismo urbano.

d) A integração entre as ações de urbanização e as ações de regularização significa a estratégia de unir a dimensão física com a dimensão jurídica, cuja importância foi explorada no entendimento do conceito amplo de regularização fundiária e da qual depende o êxito do programa. O tipo da irregularidade vai definir todo o andamento do processo a partir de então, para cada qual há um conjunto de procedimentos e há os instrumentos jurídicos específicos a serem aplicados. A pesquisa sobre a situação fundiária no terreno, o histórico da ocupação e o levantamento dos ocupantes são fundamentais para subsidiar o processo. Os planos para as intervenções físicas precedem as intervenções jurídicas, que começam após a definição sobre quem permanecerá no local.

Conjuntos habitacionais, habitações coletivas ou cortiços, loteamentos clandestinos e irregulares, assentamentos informais ou favelas, são os diferentes tipos de irregularidades que devidamente identificados devem obedecer a procedimentos (físicos e jurídicos) para a verificação da viabilidade ou não da regularização. Sendo esta possível, é necessário um conjunto de ações e a definição dos instrumentos (jurídicos e urbanísticos) a serem utilizados.

e) A participação da comunidade da área irregular é muito importante dentro dos programas de regularização devido a diversos aspectos. A população reunida formalmente através de uma associação torna-se a interlocutora do processo em todas as etapas. As intervenções físicas podem ser mais eficazes ao aproximarem das reais necessidades da comunidade. A participação ativa, através das reuniões, reivindicações e parcerias, gera o envolvimento da associação e a adesão da comunidade na continuidade do processo e na conservação e luta por melhorias. E ainda, dependendo do instrumento a ser usado, como a Usucapião, a iniciativa deve ser da própria associação constituída como pessoa jurídica.

Alguns estudos apontam também a importância do “olhar de gênero” ao se considerar a população envolvida nas ocupações, ainda bastante ausente dos processos. Os cadastros, na maioria das vezes, não levam em conta a formação dos diferentes núcleos familiares atuais. Observa-se o crescimento expressivo de lares chefiados por mulheres, mas as políticas públicas de forma geral, e inclusive as de regularização, ainda consagram injustiças e a exclusão feminina. É muito importante reforçar as práticas de inclusão e políticas de gênero também porque constata-se maior permanência e estabilidade da mulher, junto dos filhos, na comunidade e participação mais ativa nas decisões das associações.

e) As parcerias e a cooperação técnica complementam o diversificado quadro de atores e instituições envolvidos nos programas de regularização. Participam dos processos:

urbana que abrange a questão da regularização, encabeça todo o programa; desde os levantamentos, os planos e execuções, as assessorias e ações judiciais até a outorga de títulos.

A Câmara Municipal que institui a legislação urbanística municipal necessária para receber os instrumentos de regularização existentes (Plano Diretor, Política de Regularização Fundiária, Zoneamento Especial, Comissões de Política Urbana).

O Órgão Municipal Habitacional ou as Companhias Habitacionais (em parcerias com órgãos estaduais) são responsáveis por colocarem em prática os programas de regularização.

Os Órgãos Federais7 dentre outras funções, repassam os recursos do Orçamento Geral da União para a viabilização da regularização fundiária.

O Poder Judiciário (Estadual ou Federal) para a regularização jurídica das áreas. O Ministério Público que zela dos interesses coletivos, participa dos processos de regularização fundiária, uma vez que a ordem urbanística está entre os direitos coletivos e difusos.

A Defensoria Pública presta assistência jurídica gratuita aos moradores, de forma coletiva ou individual, nos processos de regularização fundiária.

O Setor Privado atua, principalmente, através dos empreendedores imobiliários que podem participar da utilização de instrumentos que envolvam negociações de áreas, ou dos empreendedores da construção civil que podem integrar o corpo técnico dos executores de projetos de regularização urbanística.

As Organizações não-governamentais que podem ser parceiras das mais diversas formas possíveis, principalmente, com programas de apoio, como os educacionais, sociais e ambientais.

Os Cartórios que registram as escrituras públicas de imóveis, são o destino final para o morador receber o título regularizado da moradia.

É importante ressaltar que o registro cartorário é um dos grandes obstáculos para a finalização dos processos. O título de posse ou propriedade devidamente registrado contribui com a demora e com os altos custos da regularização fundiária. Os resultados divulgados mostram que apenas uma minoria dentre as famílias que participam de programas de regularização recebe seus títulos registrados.

A seguir, a Figura 1 mostra a representação gráfica das etapas do programa de regularização fundiária com a intenção de sintetizar o conteúdo acima tratado e de tornar mais

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Secretaria de Desenvolvimento Urbano (SEDU), Caixa Econômica Federal; Departamento de Patrimômio da União e Defensoria Pública da União, em relação às áreas públicas federais a serem regularizadas.

clara a identificação da análise desta dissertação que será desenvolvida nos próximos capítulos.