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A relação do Império Neoassírio com os povos dominados

CAPÍTULO 2 – PARA O OESTE AS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO AVANÇAM:

2.3. A relação do Império Neoassírio com os povos dominados

Com Tiglath-pileser III, o território assírio foi unificado e obteve um considerável incremento de poder com a reorganização do exército, garantindo numerosas e significativas vitórias na geopolítica próximo-oriental. No plano da política externa, os estados derrotados pela Assíria eram, por vezes, privados de seus soberanos e transformados em províncias submetidas por laços de dominação direta ou indireta. Do ponto de vista assírio, os estados conquistados são todos “traidores”, pois haviam estado vinculados a Assíria mediante pactos relativamente explícitos e recentes, por meio dos quais se submetiam à fidelidade e se comprometiam com o pagamento de tributos. Sua “rebelião” e seu castigo acarretam sua transformação em províncias assírias, com isso os príncipes locais são substituídos por governadores assírios, as residências reais locais são remodeladas e transformadas em

palácios provinciais assírios, com administração, guarnições e cultos assírios. Já as populações locais são aplicadas um sistema de deportações em grande escala e em largas distâncias, que tinham por objetivo quebrar o papel político e cultural das elites locais e, também, repovoar e manter produtivas as terras conquistadas em todo o Império. Para sobreviverem pacificamente, as províncias deviam manter-se com um comportamento submisso (LIVERANI, 1995, p. 614-616).

Em outros termos, podemos afirmar que a política expansionista assíria sob Tiglath-Pileser III deu ênfase ao controle das rotas de comércio e, no campo político, à dominação de terras e povos estrangeiros (RUSSELL, 1999, p. 88). Essa dominação aos povos estrangeiros se deu em diversos níveis (ver Imagem 03): das populações estrangeiras esperava-se respeito e submissão pacífica perante o Império; dos governantes estrangeiros, homenagens e reconhecimento da soberania assíria; e, no plano econômico, pagamentos de impostos à Assíria. Uma vez que essas expectativas fossem transgredidas, o soberano assírio e seu exército atuavam de forma energética para o reestabelecimento da Ordem Imperial e do Equilíbrio Cósmico, que eram suas máximas atribuições.

Com a confecção de baixos-relevos fixados às paredes de palácios imperiais, os reis assírios encontraram um dos meios documentais mais eficientes de efetivar “arquivos comemorativos reais para as gerações vindouras” (FUCHS, 2011, p. 381). Esses registros foram meios de expressões materiais que atendiam à premissa de serem suportes capazes de garantir a perenidade da mensagem que veiculavam por meio de uma sequência contínua de representações que, a partir do Período Médio Assírio (c. 1363-934 a.C.), constituíram uma narrativa que celebrava aspectos que permeavam a ação da realeza (FALES, 2010, p. 58-62). Portanto, o estudo das narrativas visuais contida nas paredes palacianas permite que conheçamos diretamente as mensagens formuladas acerca da própria realeza assíria e dos povos estrangeiros – e/ou assírios dissidentes que, em ambos os casos, personificavam o papel de inimigos da Assíria – que eventualmente se contrapunham a ela.

Deste modo, é recorrente o registro de estrangeiros enviados à presença do rei, trazendo tributos, como um sinal demonstrativo da autoridade exercida pela realeza. A Imagem 04 é emblemática, nesse sentido, uma vez que a composição esteve diretamente relacionada ao momento histórico vivenciado pela Assíria que, naquele momento, estava se expandindo para o Oeste, na região da Síria, de onde chegam os espólios representados. As vestimentas que os dois homens utilizam sugerem que os homens são emissários estrangeiros

provenientes do Oeste: o turbante usado pelo homem da esquerda – que tem os punhos cerrados como um sinal de submissão – indica que seja originário do noroeste da Síria, enquanto o outro homem possivelmente era fenício. Eles trazem bens de luxo e símbolos de status, como macacos, que eram animais populares na arte da Mesopotâmia. Reis mesopotâmicos se orgulhavam de suas coleções de animais exóticos, que adquiriram como espólio ou tributo, os quais eram levados para a capital do Império, compondo o microcosmo do mundo governado pelo soberano assírio, em nome do deus Assur.

Imagem 04: Estrangeiros enviados à presença do rei assírio trazem espólios e tributos de Estados da região da

Síria. Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá. Fonte: Catálogo Documental (ANA2.06).

A submissão dos estrangeiros é, também, representada de outras formas. O Broken Obelisk (ver Imagem 05), monumento de pedra calcária – danificado e restaurado – do século XI a.C., apresenta o rei diante de símbolos de duas divindades segurando dois pares de prisioneiros ajoelhados e presos por coleiras. Já o Black Obelisk (ver Imagem 06), do século VIII a.C., glorifica as ações do rei Shalmaneser III em uma narrativa muito bem conservado: tributos de todas as regiões são oferecidos e Jehu, rei de Israel, presta homenagem/submissão ao rei assírio.

Imagem 05: Detalhe do Broken Obelisk de Assur-bel-kala (1074-1056 a.C.), Nínive.

Fonte: British Museum (BM 118898).

Imagem 06: Detalhe do Black Obelisk de Shalmaneser III (c. 825 a.C.), Calá.

Essas duas composições de momentos históricos diferentes e particulares apresentam uma mesma mensagem: a autoridade do soberano assírio deveria ser reconhecida não somente pelos próprios súditos assírios, como também por povos estrangeiros. E no que se refere à Imagem 06, a mensagem é ainda mais particular: o rei Jehu, de Israel é apresentado prostrado ao centro do relevo, acompanhado por diplomatas (?), prestando homenagem ao rei Shalmaneser III. A representação da submissão diplomática de Israel diante da Assíria significa domínio nominal e obrigação de pagar tributos como forma de manutenção de autonomia e, por outro lado, reforça a força e poderio do Império e do rei assírio. Por esse motivo, Shalmaneser é caracterizado mediante um ato cerimonial, no qual o soberano assírio faz gesto votivo com a mão em direção a estilização de disco solar alado – símbolo que marca a presença da divindade na cena –, agindo com soberania e retidão diante de Jehu, subjugado.

A representação do inimigo prostrado diante do rei assírio constitui uma unidade episódica14 repetida diversas vezes nos relevos parietais fixadas nas paredes dos palácios imperiais neoassírios. O Palácio Central de Tiglath-Pileser III possui registros, embora fragmentados e incompletos, que retratam unidades episódicas semelhantes (ver Imagem 07 e Imagem 08).

Imagem 07: Relevo do Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá.

Fonte: Catálogo Documental (TGP3.03)

14 Entendemos por unidades episódicas os diversos elementos que estruturam a composição das imagens;

quando combinados, possibilitam a leitura integral da cena esculpida em relevos neoassírios e, quando lidos individualmente, acabam por revelar as minúcias de um episódio particular, rapidamente identificável, e presumidamente desprovido de ambiguidades (SILVA, 2016a, p. 112).

No caso da Imagem 07, o rei é representado recebendo homenagens. O rei, identificado por sua coroa – o barrete com topo pontiagudo, cercado por um diadema com duas tiras, possivelmente de pano, pendurados para trás e para baixo de suas costas – é representado sendo atendido por uma figura imberbe – provavelmente eunuco ou homem jovem –, enquanto uma figura masculina de chapéu pontiagudo é representada prostrando-se diante da realeza, beijando-lhe os pés. O rei, trajando uma túnica longa ricamente ornada, mantém um arco – símbolo de sua autoridade – apoiado no chão pela mão esquerda. A posição de reconhecida autoridade da realeza também pode ser identificada por meio da análise da postura corporal e impositura das mãos das figuras masculinas representadas na cena: eram gestos característicos dentre os cortesãos e os oficiais assírios diante da presença do rei.

Imagem 08: Detalhe do Relevo do Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá.

Fonte: Catálogo Documental (TGP3.04)

Na Imagem 08, a composição apresenta um inimigo capturado – provavelmente Hanunu, rei de Gaza15 – representado de joelhos diante do rei Tiglath-Pileser III, submetendo- se formalmente ao rei da Assíria. Com a submissão, Hanunu garantiu-se como governante de Gaza sob laços de dependência à Assíria que, por sua vez, estendeu seu controle sobre áreas

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Àquela época, Gaza era a cidade mais meridional dos filisteus, desfrutando de uma posição geográfica privilegiada que a tornou um dos centros comerciais mais importantes do Mediterrâneo Oriental, sobretudo por seu destaque na Rota do Incenso em toda a Península Arábica.

economicamente vantajosas ao Império, e estabeleceu-se às fronteiras do Egito, controlando as rotas comerciais do Egito e da Arábia.

No conjunto dos relevos neoassírios, a dominação de terras e povos estrangeiros também é representada mediante cenas de assédio às regiões inimigas e aos territórios revoltosos. Nessas cenas de batalha o soberano assírio é retratado de maneira heroica, cumprindo energicamente seu papel como chefe supremo do exército assírio. As representações das vitórias demonstram a incessante eficiência da arte militar dos assírios (FRANKFORT, 2010, p. 171), na medida em que carregam consigo as prerrogativas religiosas que asseguram a continuidade da Ordem e do Equilíbrio do Império e do Cosmos.

As excursões e campanhas militares levadas a cabo pelos reis assírios foram manifestações de diversos processos de conquista. Como assinala Thomason (2005, p. 169- 190), essa atividade serviu para a formação de uma coleção de itens trazidos de regiões estrangeiras que valiam à pena colecionar, sendo obtidos por meio da atividade do saque de guerra (ver Imagem 11), ou por meio de tributo proveniente de regiões vassalas. A obtenção de plantas e animais esteve relacionada à atividade de “criação” de um mundo natural nas capitais imperiais. Por meio da integração de reunir elementos estrangeiros e nativos em um mundo botânico e zoológico ordenado, o rei: a) evidenciava a habilidade criativa dos reis assírios, favorecendo a construção da identidade real assíria; b) ratificava seu poder e destreza ao construir um microcosmo do mundo sob seu domínio; e c) demonstrava estratégia e dominação da Assíria sob o mundo estrangeiro, reforçando a autoridade e a força da realeza.

A captura de prisioneiros de guerra (ver Imagem 10 e Imagem 11) era outra forma de demonstração de poder (GELB, 1973): a massa de pessoas deportadas e capturadas simbolizava a vitória e superioridade militar do exército assírio (NADALI, 2014, p. 102). Vale ressaltar que todas as imagens assírias eram vistas como sendo reais (BAHRANI, 2003, p. 127 apud. COLLINS, 2006, p. 06), assim o resultado das batalhas representava os assírios sempre vitoriosos, enquanto os inimigos eram permanentemente derrotados. Desse modo, os relevos neoassírios serviram como manifestação da manutenção da Ordem imperial e, como afirmou Jacoby (1991, p. 113), a identificação do inimigo constituiu-se como um importante elemento por meio do qual os observadores poderiam reconhecer a magnitude da vitória assíria, da conquista brilhante, contribuindo para a fama e reputação do rei vitorioso (ver Imagem 09).

Imagem 09: Relevo 7b do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá.

Fonte: Catálogo Documental (ANA2.03)

Imagem 10: Relevo 6b do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá.

Fonte: Catálogo Documental (ANA2.02)

Imagem 11: Relevo 5b do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá.

Em função do resultado do conflito militar, os estrangeiros cativos não poderiam ser confundidos, nem o resultado das batalhas: os inimigos deveriam ser representados em suas realidades físicas correspondentes, como uma imagem “substituta” que possa encarnar a essência da pessoa para que o espírito dela estivesse presente, de modo a reconfirmar a derrota e a morte dos inimigos (COLLINS, 2006, p. 01-07).

Com o desenvolvimento político-militar do Império na segunda metade do século VIII a.C., a anexação de diversas cidades sob o governo de Tiglath-pileser III foi acompanhada da prática de deportação em massa e reassentamento das populações conquistadas16. Tiglath-pileser III foi o pioneiro em utilizar a deportação de populações de um país insubmisso como parte fundamental de uma estratégia imperial expansão político- econômica (ODED, 1979, p. 30-42), que – facilitada pela centralização de poder que realizara em seu governo e pela extensão, força e especialização técnica que caracterizava seu exército – teve uma proporção significativa: estima-se preliminarmente que cerca de 4,5 milhões de pessoas tenham sido movimentadas no interior do império durante três séculos (RADNER, 2014, p. 106; TAKLA, 2008a, p. 79-80; ROUX, 1987, p. 332-333).

A partir dos diversos casos de deportação, é possível elencar certo número de razões para o empreendimento da deportação em massa como parte da estratégia imperial: a) meio de dissuasão de possíveis rebeliões; b) enfraquecimento das regiões conquistadas, permitindo o estabelecimento de uma eficiente organização administrativa assíria nas áreas ocupadas; c) criação de assentamentos estratégicos ao longo da fronteira assíria; d) crescimento exponencial do exército assírio, sobretudo da infantaria, com o recrutamento de deportados, garantindo a capacidade militar de suprimir rebeliões e conquistar nações invasoras; e) artesãos qualificados de nações conquistadas foram ocasionalmente trazidos à capital imperial, sendo colocados ao serviço do rei; e, f) (re)povoamento de cidades e aldeias recém-fundadas, estrategicamente localizadas entre grandes cidades ou postos militares (ODED, 1979, p. 33-63). Inclusive, a construção de novas cidades, majoritariamente povoadas por deportados, abriu novas rotas de comércio, equilibrando os efeitos sufocantes da guerra sobre o comércio internacional (ODED, 1979, p. 59-63). Assim, é possível apontar que a deportação também serviu ao propósito de garantir a segurança das rotas comerciais.

16 Para registros de captura e procissão de inimigos derrotados, que foram ocasionalmente deportados, ver

Ima g em 1 2 : Ma p a d o r ea ss en tam en to d a p o p u laçã o d ep o rta d a d a Sam ar ia à Ass ír ia d u ra n te o r ein ad o d e T ig lath -Pil eser I II Fo n te: HE AL Y, 1 9 9 1 , p . 2 1 .

No que se refere à Palestina, a conquista assíria não constituiu um fenômeno político e militar novo, uma vez que a região já houvera atravessado períodos de dominação a impérios estrangeiros. As consequências demográficas e econômicas à região é que foram particulares: o pagamento de pesados tributos aos assírios pressupôs uma drástica perda de recurso – que já eram limitados – à região; a destruição de boa parte do suporte técnico e operacional da agricultura foi outro duro golpe econômico; e, por fim, o assassinato e deportação das populações (ver Imagem 12) tiveram forte impacto técnico, econômico e cultural, afetando diretamente a unidade e o espírito nacional (LIVERANI, 1995, p. 329-330).

Além disso, a descoberta do nome de Jehu, rei de Isarel, no Black Obelisk de Shalmaneser III – somada a tradução do nome da vila judaica de Lakish nos relevos de Senaqueribe – produziram um grande ressentimento público contra os vestígios documentais assírios. Com isso, as primeiras décadas dos estudos assiriológicos foram portadores de julgamentos que reforçam a característica belicosa – e de adjetivos e juízos de valor negativos – dos assírios, relegando às grandes conquistas intelectuais e artísticas um lugar secundário (FALES, 2010, p. 39-41).

Por fim, os registros visuais das cenas de deportação acrescentou uma carga negativa aos julgamentos contemporâneos que se fizeram sobre a Assíria. Inclusive, é importante fazer a ressalva que a prática de tortura e assassinato de prisioneiros – contidas também em imagens e textos assírios, e que se soma aos registros de deportação na aquisição indireta de julgamentos negativos à Assíria – esteve reservada majoritariamente para cativos que tentaram se rebelar ou fugir do jugo assírio, e por isso foram eliminados (NADALI, 2014, p. 108), não podendo ser generalizado, tampouco tratado como uma manifestação de sadismo inerente à personalidade do povo assírio. Portanto, nas palavras de Nadali (2015, p. 41), as lentes aplicadas no presente deformam o conteúdo originalmente proposto, no passado. É necessário estar atento a isso, evitar deformações, produzindo análises coerentes com a historicidade das fontes históricas estudadas.

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