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O impacto da expansão do Império Neoassírio na região Palestina durante o século VIII a.C.

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

O IMPACTO DA EXPANSÃO DO IMPÉRIO NEOASSÍRIO NA REGIÃO PALESTINA DURANTE O SÉCULO VIII a.C.

RUAN KLEBERSON PEREIRA DA SILVA

NATAL – RN 2017

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RUAN KLEBERSON PEREIRA DA SILVA

O IMPACTO DA EXPANSÃO DO IMPÉRIO NEOASSÍRIO NA REGIÃO PALESTINA DURANTE O SÉCULO VIII a.C.

Monografia apresentada como requisito obrigatório para obtenção do grau de bacharel no Curso de História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Profª. Drª. Marcia Severina Vasques.

NATAL – RN 2017

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RUAN KLEBERSON PEREIRA DA SILVA

O IMPACTO DA EXPANSÃO DO IMPÉRIO NEOASSÍRIO NA REGIÃO PALESTINA DURANTE O SÉCULO VIII a.C.

Monografia aprovada como requisito obrigatório para obtenção do grau de bacharel no Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores:

_________________________________________ Nome do Orientador

__________________________________________ Nome do Avaliador Interno

________________________________________ Nome do Avaliador Interno

____________________________________________ Nome do Suplente

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O IMPACTO DA EXPANSÃO DO IMPÉRIO NEOASSÍRIO NA REGIÃO PALESTINA DURANTE O SÉCULO VIII a.C.

RESUMO

Este trabalho tem por finalidade analisar o impacto da expansão do Império Neoassírio na região da Palestina Antiga durante o século VIII a.C., sobretudo no governo do rei assírio Tiglath-Pileser III (745-727 a.C.). Analisaremos o contexto de definição e delineamento das identidades étnicas orientais, tal como os discursos de alteridade que são produzidos em Israel e na Assíria. Pretendemos, com isso, definir que ambos os povos possuíam ideologias político-militares e religiosas com traços semelhantes, sobretudo no que se refere à prática de guerras ordálicas.

Palavras-chave: Identidade étnica – Discursos de alteridade – Guerra Ordálica.

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No barro vermelho se inscrevem memórias de um passado saudoso No quintal da casa onde tudo começou, o sol se põe todas as tardes revestido de saudades Os anos estão passando rápido, mas a dor ainda é lenta.

a Luiz Pereira, meu avô e primeiro incentivador. In memoriam.

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SUMÁRIO

LISTA DE IMAGENS . . . 7

QUADRO CRONOLÓGICO . . . 10

INTRODUÇÃO . . . 11

CAPÍTULO 1 – GUERRA, IDENTIDADE E ETNICIDADE: QUESTÕES CONCEITUAIS PARA O ESTUDO DE ASSÍRIA E ISRAEL . . . . 13 1.1. Estudos de Antiguidade Oriental no Brasil: Assiriologia e História Militar . . . 13

1.2. Cultura de guerra na Assíria e Tradição deuteronomística: objetos historiográficos . 14 1.3. Identidade, alteridade e etnicidade no Antigo Oriente: horizontes conceituais . . . . 16

CAPÍTULO 2 – PARA O OESTE AS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO AVANÇAM: O IMPACTO DA DOMINAÇÃO NEOASSÍRIA NA REGIÃO DA PALESTINA . 23 2.1. Processo de reafirmação territorial e a formação do Império Neoassírio . . . 23

2.2. Guerras Ordálicas como empreendimentos políticos, econômicos e religiosos . . . 27

2.3. A relação do Império Neoassírio com os povos dominados . . . 30

CAPÍTULO 3 – A DOMINAÇÃO ASSÍRIA DE ISRAEL E JUDÁ: A GUERRA ORDÁLICA E OS DISCURSOS DE ALTERIDADE EM TEXTOS “PROFÉTICOS” . . . . 41

3.1. Breves páginas acerca da história de Israel e Judá . . . 41

3.2. O inimigo vem do norte: a Palestina sob dominação assírio . . . 44

3.3. Tradição historiográfica e textos “proféticos”: os discursos de alteridade . . . . 45

(IN)CONCLUSÕES – ASSÍRIA, ISRAEL E AS GUERRAS ORDÁLICAS . . . . . 52

REFERÊNCIAS . . . 54

ANEXOS . . . . . 61

(7)

LISTA DE IMAGENS

Imagem 01: Império e reinos do Antigo Oriente Próximo (séc. VIII-VII a.C.) . . . . . 8

Imagem 02: Palestina . . . . 9

Imagem 03: Graus de autonomia em relação ao Império Neoassírio . . . . 28

Imagem 04: Estrangeiros enviados à presença do rei assírio trazem espólios e tributos de Estados da região da Síria . . . . 32 Imagem 05: Detalhe do Broken Obelisk de Assur-bel-kala (1074-1056 a.C.), Nínive . . 33

Imagem 06: Detalhe do Black Obelisk de Shalmaneser III (c. 825 a.C.), Calá . . . . 33

Imagem 07: Relevo do Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá . . . . 34

Imagem 08: Detalhe do Relevo do Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá . . . 35

Imagem 09: Relevo 7b do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá . . . . 37

Imagem 10: Relevo 6b do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá . . . . 37

Imagem 11: Relevo 5b do Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá . . . . 37

Imagem 12: Mapa do reassentamento da população deportada da Samaria à Assíria

durante o reinado de Tiglath-Pileser III . . . .

39

(8)

Ima g em 0 1 : Im p ér io e rei n o s d o An tig o O rien te Pró x im o ( séc . VI II -VI I a. C .) Fo n te: B OAR DM AN; E D W A R DS; HA MM OND; SOLL B E R G; W AL KE R , 1 9 9 1 , p . 1 0 4 ( ad ap tad o ).

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Imagem 02: Palestina

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QUADRO CRONOLÓGICO1

ASSÍRIA JUDÁ ISRAEL

1000-960 Davi

950

PERÍODO NEOASSÍRIO (c. 934-609)

960-920 Salomão

934-912 Assur-Dan II 922-915 Roboão 922-901 Jeroboão I

915-913 Abiya

900 912-891 Adad-nirari II 913-873 Asa 901-900 Nadab

891-884 Tukulti-Ninurta II 900-877 Baasa

884-859 Assurnasirpal II 873-849 Josafá 876 Zimri

876-873 Tibni

876-869 Omri

850 859-824 Shalmaneser III 869-850 Ajab

850-849 Ocozías

849-842 Joram 848-842 Joram

842 Ocozías 842-815 Jehu

824-811 Shamshi-Adad V 842-837 Atalía

800 837-800 Joás 815-801 Joachaz

811-783 Adad-nirari III 800-783 Amasias 801-786 Joás

783-773 Shalmaneser IV 783-742 Osías 786-746 Jeroboão II

773-755 Assur-Dan III 750 755-745 Assur-nirari V

745-727 Tiglath-pileser III 740-736 Jotham 743-738 Menahem

727-722 Shalmaneser V 735-715 Acaz 732-724 Oséias

715-686 Ezequías 722-705 Sargão II 722 Tomada de Samaría 700 705-681 Senaqueribe 681-669 Esarhaddon 686-642 Manasés 650 669-631 Assurbanipal 631-627 Assur-etil-ilani 642-640 Amón 627 Sin-shumu-lishir 640-609 Josías 627-612 Sin-shar-iskhun 612-609 Assur-uballit II 609 Joacaz 600 609 Invasão Medo-Babilônica 609-597 Joaqim 597 Joaquin 597-587 Sedecías 587 Tomada de Jerusalém

(11)

INTRODUÇÃO

A trajetória desta pesquisa em Assiriologia se confunde muito grandemente com o próprio transcurso formativo de graduação (em dupla modalidade) e pós-graduação.

Em idos de 2009, um projeto de Iniciação à docência (monitoria) sob orientação da professora Marcia Vasques abriu as portas para os estudos em Antiguidade Oriental. Ao longo da graduação e de outros projetos de Iniciação à docência, extensão e iniciação científica discussões foram gestadas, construindo a base que sustentaria a realização do trabalho Guerra, Soberania, Ordem e Equilíbrio Cósmico: Representações Sociais em Relevos Neoassírios (884-727 a.C.), apresentado e defendido no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH/UFRN, Mestrado) no ano de 2016.

No entanto, alguns questionamentos oriundos das experiências vivenciadas com a Iniciação à docência e, por outro lado, o desejo de aprofundar discussões que não obtiveram profundidade temática suficiente no Guerra, Soberania, Ordem e Equilíbrio Cósmico serviram de ponto de partida para a presente análise.

Neste trabalho, algumas discussões anteriormente são revisitadas, outras são aprofundadas e, busca-se lançar luz sobre a relação ainda presente entre os povos que ocuparam a Palestina Antiga – principalmente Israel e Judá – e a Assíria durante o século VIII a.C. Nesse interím, pretendemos analisar relevos parietais neoassírios, bem como textos bíblicos do profeta Isaías.

No Capítulo 1, discutimos brevemente os conceitos de Identidade e Etnicidade, tendo a Alteridade e a Guerra como contrapontos para pensarmos o estudo da Assíria e Israel.

Já no Capítulo 2 trata do processo de formação e consolidação do Império Neoasírio, bem como de seu impulso expansionista do século VIII a.C., e das relações geopolíticas que serão articuladas na região sírio-palestina a partir daí. Para tanto, serão discutidos alguns registros escultóricos de relevos neoassírios, reunidos no Catalogo Documental.

O Capítulo 3 aborda brevemente algumas páginas acerca da história de Israel e Judá e, por meio desse contexto histórico, tenta pensar a historicidade dos textos proféticos

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selecionados de Isaías – reunidos no Catalogo Documental –, relacionando-o à influência exercida pela Assíria.

Por fim, oferecemos nossas breves (In)Conclusões acerca da Assíria, Israel e a relação que ambos estabelecem com a guerra ordálica.

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CAPÍTULO 1 – GUERRA, IDENTIDADE E ETNICIDADE:

QUESTÕES CONCEITUAIS PARA O ESTUDO DE ASSÍRIA E ISRAEL

1.1. Estudos de Antiguidade Oriental no Brasil: Assiriologia e História Militar

A guerra sempre interessou aos historiadores, desde Heródoto e Tucídides. Por isso mesmo, o estudo da História Militar está na origem da própria História, seja como gênero literário antigo ou como objeto historiográfico. A literatura grega e latina, inclusive, possui diversas manifestações da interligação entre História e Guerra, pois a guerra e a vida militar fornecerem elementos nevrálgicos para a compreensão da vida em sociedade.

Com a renovação da disciplina histórica propiciada pelos Annales, a disciplina histórica acabou por receber novas abordagens e métodos para a realização dos estudos acerca da guerra que, nas últimas décadas, passaram a serem ocupadas por novos temas, ênfases e perspectivas. Em grande medida, o foco dos estudos passou a abranger os diversos aspectos que compuseram a malha multifacetada e dinâmica que envolveu os conflitos militares, tanto no passado quanto no presente.

Na esteira desta virada historiográfica, a História Militar do Mundo Antigo tem produzido uma quantidade significativa de estudos, em uma diversidade relevante de perspectivas. Inclusive, vale ressaltar que o aumento no número de pesquisas realizadas na área não é somente quantitativo, mas e principalmente é um notável aumento qualitativo nas pesquisas desenvolvidas em território nacional, as quais estão em grande medida inseridas e atualizadas no interior de um debate científico internacional e, em virtude disso, são portadoras do rigor teórico que se exige nas pesquisas antiquistas.

No caso do Brasil, a maior visibilidade e respeitabilidade à área de estudos se deve ao fato de que, como afirma Pozzer (2016b, p.19),

O Grupo de Trabalho de História Antiga, o GTHA da Associação Nacional de História (ANPUH), criado em 2001, na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, em nível nacional, desempenhou um fortalecimento da área de Antiga dentro da ANPUH e permitiu, de um lado, a conquista de reconhecimento dos pares (interna à ANPUH) e, por outro lado, a organização dos estudiosos do Mundo Antigo no Brasil, estimulando novos estudantes a se dedicarem à área e potencializando ações que já vinham sendo realizadas de maneira dispersa, em território brasileiro.

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No que tange especificamente à Assiriologia, há pouco mais de uma década que a temática acerca da guerra na Assíria passou a ser objeto da preocupação de pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte. Esses trabalhos estão possuindo ampla divulgação dentro do meio acadêmico especializado, seja em publicações em anais de evento, artigos em revistas, capítulos de livro, livros autorais, monografias e dissertações de mestrado. Um dos primeiros estudiosos a se dedicar à temática da cultura militar em vários povos – incluindo os assírios – na Antiguidade foi Rossi (2008). Tratando de questões relativas à administração e à realeza a partir da análise de arquivos documentais escritos, somaram-se os trabalhos de Rede (2009a, 2009b). Abordando uma análise iconográfica dos registros de guerra dos relevos neoassírios, são significativos os trabalhos de Pozzer (2008, 2010, 2011, 2012, 2016) e de seus orientandos, incluindo Santos (2013) e S. Silva (2011). Tratando do plano decorativo dos palácios neoassírios e os relevos que faziam parte deles, destacam-se os trabalhos de Takla (2008a, 2008b). E, mais recentemente, R. Silva (2016a, 2016b) tem trabalhado a arquitetura, a religião, a guerra e a realeza assíria a partir da análise das representações visuais dos relevos neoassírios.

Esses trabalhos são de suma importância para o desenvolvimento da própria área de pesquisa no Brasil, somando diversas publicações em português – e não somente em inglês, francês e alemão – que auxiliarão os futuros pesquisadores em seus estudos. E, certamente, as temáticas relativas à guerra não vão escapar do horizonte das futuras pesquisas.

1.2. Cultura de guerra na Assíria e Tradição deuteronomística: objetos historiográficos

A imagem da Assíria2 como uma “máquina de guerra” foi construída, difundida e popularizada nas páginas da História, sendo a associação entre o Império3 Neoassírio4 e a guerra uma das mais sólidas articulações elaborada pela historiografia.

2 A autodesignação Assíria é utilizada a partir do século XIV a.C., quando a expressão “mat Aššur” (“terra de

Assur”) fora empregada para se referir à cidade de Assur (também dita Qala’at Sherqat, localizada ao norte da moderna Tikrit), homônima ao deus-tutelar que residia no templo principal da cidade (RADNER, 2014, p. 101).

3 Os povos que constituíram o mundo antigo oriental não conheciam e tampouco utilizavam o termo “império”

para nomearem suas práticas de expansão e de dominação de outros povos. Inclusive, os antigos mesopotâmicos utilizavam o termo “países” ou “terras” para distinguir os outros povos dominados (LARSEN, 1979, p. 91 apud. POZZER, 2016a, p. 19-20).

4 Império Neoassírio é a designação moderna utilizada para descrever o reino da Assíria entre os séculos IX e

VII a.C., que constitui a fase final da longa história desse Estado que controlou o coração da região situada ao norte do Iraque moderno, governando direta ou indiretamente boa parte dos territórios conquistados no Oriente Médio (RADNER, 2014, p. 101).

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O fenômeno da guerra na Assíria é tão marcante que chega (quase) a atingir o patamar de qualificador étnico deste povo. Porém, antes de pensar que o Império Neoassírio utilizou a guerra como a primeira forma de resolução de diferenças políticas entre os Estados, é preferível considerar que a grande complexidade do imperialismo assírio relacionou e interpenetrou o aspecto religioso às dimensões e prerrogativas militares, sendo o exercício da violência e da crueldade entendido como modalidades particulares no desenvolvimento de ações guerreiras, as quais estavam integradas a estruturas complexas de decisões políticas (FALES, 2010, p. 54).

Nesse ponto, é importante frisar que entendemos a guerra como uma disputa armada que resulta de implicações culturalmente determinadas entre duas ou mais unidades políticas autônomas, em maior ou menor grau, capazes de fazer uso de força militar relativamente organizada. E, assim, a guerra pode ser levada a cabo como meio de defesa cultural de um determinado grupo, como meio de salvaguardar um sistema religioso, como instrumento de exercício “nacionalista”, dentre outros aspectos. Desse modo, a guerra pode constituir-se como uma reação cultural complexa das manifestações coletivas dos sentimentos e dos valores deste grupo. As ações violentas individuais ou organizadas coletivamente não resultam, portanto, de um estado mental determinado organicamente ou da necessidade biológica de produzir guerras, mas de imperativos puramente convencionais, tradicionais ou ideológicos. Estando submetidos a normas de conduta, à ética, às técnicas e à lei, podemos demarcar as atitudes hostis, os atos de violência e a guerra como sendo produzidos culturalmente (MALINOWSKI, 1941, p. 119-126), no interior de um conjunto social organizado para tais fins.

E diante da impossibilidade de um só Estado obter uma vitória completa, qualquer Estado é impelido a desenvolver mecanismos capazes de assegurar a autonomia do grupo sob a égide de um governo administrativo comum, subjugando outrem, de modo que a militarização da sociedade torna-se elemento fundamental à sua sobrevivência. É através de uma maquinaria militar e um sistema de guerra organizado que surgem, portanto, as guerras construtivas: exercício continuado da guerra, com as finalidades de manter a autonomia de um grupo local administrativa e culturalmente homogêneo e garantir a soberania do Estado que controla a maquinaria militar. Por conseguinte, o exercício da guerra pode levar um Estado a estender gradualmente seu controle político por intermédio da submissão de seus vizinhos, sendo o exercício da conquista compreendido como um significativo instrumento de difusão de todas as atividades culturais de uma nação beligerante que demonstra sua

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eficiência como um Estado organizado para o usufruto completo e efetivo do exercício da guerra, quando comparado a um Estado organizado assentado sobre a base da paz (MALINOWSKI, 1941, p. 139-148).

Vale ressaltar, aliás, que o fenômeno da guerra nas sociedades orientais antigas foi diverso e variável, sujeito a conjunturas geográficas particulares, com povos distintos e suas prerrogativas, métodos e finalidades específicas expressas através de códigos sociais e culturais precisos, mesmo que tenham apresentado traços em comum (NADALI, 2015, p. 41). As guerras foram – e são! – produto de conjunturas históricas próprias que não devem ser deslocadas de seu contexto. E para uma maior compreensão do fenômeno e da complexidade da guerra na sociedade que tomou forma na Assíria devemos perpetrar um estudo assentado na combinação de todos os dados à disposição, de modo que abarquem todos os aspectos que englobam a prática do combate (NADALI & VERDERAME, 2014, p. 533-566 apud. NADALI, 2015, p. 43).

Desse modo, a guerra deve ser entendida como um fenômeno total, uma expressão condensada das formas de pensar, produzir e consumir das sociedades, o espelho de um tempo e um lugar (MAGNOLI, 2006, p. 14 apud. POZZER, 2016b, p. 28). Assim, tanto imagens quanto palavras de guerra devem ser necessariamente contextualizadas no espaço e no tempo para que se possa analisar e interpretar corretamente as fontes e, consequentemente, as sociedades que as produziram (NADALI, 2015, p. 44). Nesse sentido, a análise dos códigos visuais construídos nos relevos neoassírios é de suma importância, uma vez que estes funcionavam como uma espécie de “gatilhos mentais” às ações humanas pretendidas pela agência de que foram portadores.

1.3. Identidade, alteridade e etnicidade no Antigo Oriente: horizontes conceituais

Desde as primeiras descobertas de Paul-Émile Botta e Austen Henry Layard, ao longo do século XIX, o Ocidente foi munido de artefatos e histórias provenientes das civilizações mesopotâmicas e, particularmente, da Assíria. Na reconstrução desse passado que estava sendo gradualmente escavado, emergiram dois conjuntos de fontes com significativa contribuição para a formação de uma imagem negativa da Assíria, marcada pelo estereótipo da guerra e da violência: a) os autores Clássicos, sobretudo gregos, que formularam variadas abordagens, muitas delas sob rótulos imprecisos e portadoras da interpenetração de elementos

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babilônios e assírios; e, b) a tradição historiográfica deuteronomística que esteve assentada em uma narrativa “nacional” metafórica portadora de um forte julgamento negativo acerca dos projetos políticos do inimigo vindo do norte – a Assíria – em contraposição ao Reino de Judá.

A narrativa deuteronomística indiscutivelmente reverberou no tempo. Fales (2010, p. 28) descreve que os primeiros viajantes europeus que afluíram para o norte da Mesopotâmia se depararam com províncias pobres e abandonadas (agrícola e industrialmente) no interior da dominação do Império Otomano, o que acabou sendo associado a um sinal evidente e atual das punições divinas aos males afligidos pelos reis assírios na Antiguidade. Isto resulta de uma memória coletiva acerca da Assíria como lugar, nas palavras de Bohrer (2006 apud. FALES, 2010, p. 28), da “vergonha do pecado, da violência e da transgressão”. Somados, estes elementos forjaram a Assíria como o primeiro “Outro” da História (FALES, 2010, p. 28). Os discursos de alteridade contribuíram para a produção de interpretações descontextualizadas e análises equivocadas ou mesmo tendenciosas.

Embora seja compreensível a organicidade pelas quais tais interpretações foram compostas, aqui interessa-nos mais: as tessituras do passado, como ele é construído e reinventado por cada um dos povos estudados; como esse passado serviu a uma construção política e ideológica imprescindível em um dado contexto histórico; e, por fim, quais reminiscências desse passado nos chegam.

Inicialmente, é importante demarcar que as realidades históricas e étnicas dos tempos bíblicos contribuíram para a formação das identidades históricas e religiosas de duas dentre as principais religiões do mundo atual: o judaísmo e o cristianismo. Além disso, a herança bíblica hebraica tornou-se o fundamento da identidade nacional dos judeus e israelenses modernos. Assim, a ideia do compartilhamento comum da terra e uma suposta "existência de uma consciência coletiva" teriam sido elementos-chave no processo de construção da Nação (NIESIOŁOWSKI-SPANÒ, 2016, p. 191-194). Não é nossa intenção estabelecer essa articulação. Por intermédio das fontes históricas pretendemos olhar o passado na Palestina Antiga, entender como a estrutura política e social influenciava todas as atividades humanas, incluindo a elaboração e possível reconheimento de uma consciência étnica no passado. Porém, a etnicidade é um fenômeno mutável ao longo do tempo, havendo a necessidade de tomar cuidado ao tentar estabelecer laços étnicos através da fronteira dos séculos.

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Hoje, a busca por delimitar pontes ou fronteiras tanto entre os antigos e os modernos quanto entre os antigos e eles mesmos tem trazido à tona diversos questionamentos ao campo histórico. As relações travadas pelos grupos humanos no presente – seja por meio de inter-relações humanas e sociais, seja por relações com a natureza e a tecnologia – tem tornado questões como Identidade, Alteridade e Etnicidade muito mais agudas do que antes. Essa percepção amplia os horizontes de estudo da História Antiga e aguça o olhar dos pesquisadores para questões que outrora não eram discutidas com tamanha veemência.

Pensando o fenômeno das migrações em massa do mundo contemporâneo – que encontram paralelo nas políticas de reassentamento praticadas pelos reis neoassírios junto as populações dominadas – e os problemas de integração múltipla e coletiva inerentes a elas, pensar as formações históricas de identidades particulares inscreve-se como um tema de suma importância para os historiadores. Nesse sentido, procuraremos analisar a auto-descrição étnica, a auto-identidade e as formas como são expressas pelos grupos antigos que habitaram a Palestina Antiga durante a dominação assíria na região, no século VIII a.C.

Os grupos recorrem à História para fazer reivindicações e apelo a antecedentes históricos, justificando a afirmação de identidades historicamente específicas. Isso se deve ao fato de que a reafirmação de uma verdade histórica ancorada no passado atende ao interesse de demarcar uma nova posição-de-sujeito que se pretende efetivar. Essas posições-de-sujeito construídas fazem com que os indivíduos tomem a si próprios como ponto de referência para afirmarem-se diante do mundo que ocupam. A identidade é, portanto, relacional; é fabricada por meio da marcação da diferença, e sustentada pela exclusão. Ou seja, a identidade não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio de formas de exclusão social quanto por meio de sistemas simbólicos de representação (WOODWARD, 2011, p. 8-40).

As representações atuam como um modo de descrever o mundo criticamente, servindo como uma forma de interpretá-lo e, justamente por isso, opera como registros históricos e fragmentos da memória cultural de uma determinada sociedade inserida em um determinado recorte espaço-temporal. Isto implica na necessidade de pensarmos a nossa responsabilidade frente às representações na Antiguidade, compreendendo-as como processos heterogêneos que ocorrem simultaneamente, como mecanismos no intercâmbio do poder, como engrenagens que dotam as mensagens de valoração e publicidade, fazendo-as circular.

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Em virtude de todas as interações humanas pressuporem representações – o que as fazem sociais –, elas são sempre um produto de interação e comunicação, que tomam forma e configuração específicas a qualquer momento, como consequência do equilíbrio específico desses processos de influência social. Quando criadas, as representações circulam, se encontram, se atraem, se repelem e dão oportunidades ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações morrem. Logo, a representação é criada pela coletividade de um grupo, no interior de um contexto social específico (MOSCOVICI, 2012, p. 21-41), motivo pelo qual as representações estariam diretamente relacionadas à forma como tais indivíduos organizam seu próprio mundo e, no interior dele, como estabelecem os meios de comunicação a partir dos quais acessam sem que sejam comprometidos por ambiguidades que eventualmente surgem no meio social. Ou seja, as representações funcionam como elementos partícipes da realidade social dos indivíduos e dos grupos sociais, podendo servir para nos guiar no modo de nomear e definir conjuntamente os diferentes aspectos da realidade diária, no modo de interpretar esses aspectos, tomar decisões e posicionar-se frente a elas.

As representações também servem para explicar os fenômenos observáveis diretamente, reconstruindo os fenômenos no interior do grupo social em que elas circularam e possibilitam a identificação de valores e saberes que estão dispersos no horizonte social em que os indivíduos e/ou grupos sociais estão inseridos. Além de ter por função preservar o vínculo entre os membros de um grupo e prepará-los para pensar e agir de modo uniforme (MOSCOVICI, 2001, p. 46), a representação constitui-se como um mecanismo de interpretação social acerca da história dos indivíduos e/ou grupos que as formulam, faz circular, consomem, reforçam e/ou reelaboram as representações mesmas. Pode-se inferir, com isso, que a representação traz consigo níveis de filiação étnica e identitária com os grupos que representam e que são por ela representados.

Assim, a representação nos apresenta as ideias compartilhadas por indivíduos e/ou grupos sociais, expondo os aspectos cognitivos que os levaram a simbolizarem o objeto daquela maneira, e não de outra. Isto permite identificar os invariantes que diferenciam tais representações de outras recorrentes socialmente àquela época, afinal os grupos sociais se representam a si mesmas naquilo que tem de distinto, de próprio (MOSCOVICI, 2001, p. 52), fazendo uso de seus próprios instrumentais para transformar suas representações em realidade (MOSCOVICI, 2012, p. 76).

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Para o caso do Antigo Oriente Próximo, as representações funcionavam no interior de um amplo sistema cultural que pretendia transmitir ideias e informações acerca da ordem e organização da sociedade, na medida em que os observadores faziam parte do processo de construção, interpretação e incorporação de significado às representações que eram vinculadas, sobretudo, ao sistema político e social vigente (ROSS, 2005, p. 327-345).

Depreende-se daí que a identidade está marcada por símbolos, adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais é representada. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa existência e àquilo que somos. A representação, compreendida como um processo cultural, faz presente identidades individuais e coletivas, constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. E, portanto, as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem/o que é incluído e/ou excluído dessas relações (WOODWARD, 2011, p. 8-19).

De modo geral, tais identidades são essencialmente definidas por auto-atribuição e atribuição pelos outros, um mecanismo puro de inclusão/exclusão a partir de um limite auto-estabelecido que separa o grupo de outros agrupamentos da mesma ordem (FALES, 2013, p. 47-48). Assim, grupos étnicos são identidades atribuídas culturalmente, que se baseiam na expressão de uma cultura compartilhada (língua, religião, etc.) e de uma descendência comum (históricas e/ou físicas). Porém, a etnia envolve uma consciência da diferença, que implica a reprodução e transformação de distinções básicas classificatórias entre grupos de pessoas que se percebem como sendo de algum modo culturalmente distinto (ERIKSEN, 1992, p. 3 apud. JONES, 1997, p. 84). As diferenças culturais informam os modos de interação entre pessoas de diferentes categorias étnicas e são confirmados por essa interação. Isto é, as categorias étnicas são reproduzidas e transformadas nos processos em curso da vida social (JONES, 1997, p. 84).

Etnicidade é, portanto, uma das várias formas do comportamento humano, e um fenômeno de percepção genealógica, cuja base é a crença de um grupo em um passado ancestral comum, por meio do qual esse mesmo grupo se inter-relaciona com a realidade (SPARKS, 1998 apud. MAGNERES, 2000, p. 239). Em outros termos, a etnicidade5 é definida para um grupo ou para os outros, ou auto-descrita por um grupo específico que se

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O uso recorrente do termo etnicidade remonta ao fenômeno sociocultural verificado nas últimas décadas do século XX, resultando em uma quantidade significativa de afirmações acerca da natureza dos grupos étnicos (JONES, 1997, p. 56).

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identifica com elementos ancestrais do passado, tais como mitos, religião, crenças, ou a língua. Etnicidade, assim como a identidade, está relacionado à alteridade (BAHRANI, 2006, p. 49)

Contudo, a etnicidade – enquanto categoria taxonômica construída em um tempo e lugar específicos, motivo pelo qual pode ser historicizada – não possui um significado exato e consensual em sua aplicação pela arqueologia6 nos estudos da Antiguidade. Porém, sabe-se que os povos mesopotâmicos possuíam termos ou categorias equivalentes em suas linguagens. Portanto, não se trata de uma questão de aplicação de conceitos contemporâneos para os estudos dos povos antigos, mas da implicância da necessidade de refletir acerca de como essas categorias taxonômicas eram pensadas no passado e, por extensão, quais as influências provocadas por elas (BAHRANI, 2006, p. 48).

No caso mesopotâmico, a alteridade se apresenta por meio de representações textuais e visuais, a partir das quais pode se ler os discursos de alteridade que são construídos. É possível identificar que os povos mesopotâmicos categorizavam as pessoas de acordo com fatores geográficos, classificando-as de acordo com o lugar de origem. A possibilidade de uso e fluência da linguagem, com isso, converteu-se em um fator classificatório para os mesopotâmicos. Além disso, os relatos das campanhas militares assírias descrevem a conquista em terra estrangeira caracterizando o inimigo como sendo bárbaro7 no comportamento ou mediante o não-compartilhamento das mesmas práticas religiosas e rituais. Assim, a alteridade participa das relações sociais entre os grupos na medida em que o inimigo é descrito como covarde, como malvado, como culpado de não manter juramentos, de conspirar contra a Assíria (BAHRANI, 2006, p. 49-56). Ainda assim, pode-se afirmar que houve um impulso basicamente ideológico para a adesão a uma etnicidade suprassegmentar "assíria" encorajada continuamente pela coroa (FALES, 2013, p. 73).

No entanto, é justamente a partir do momento em que o Império Neoassírio estende seus domínios até os reinos de Israel e Judá, tornando-os províncias imperiais periféricas, que a identidade étnica de Israel é forjada (SPARKS, 1998 apud. MAGNERES, 2000, p. 541-542). De um lado, os anais de Assurnasirpal II e as inscrições de Sargão II

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É certo, porém, que a cultura material pode participar no reconhecimento e na expressão da etnia, na autoconsciente significação da identidade e na justificativa e negociação das relações étnicas. Como resultado, formas distintivas e estilos de cultura material podem ser ativamente mantidos e retidos no processo de sinalizar a etnia, enquanto outras formas e estilos podem cruzar as fronteiras étnicas (JONES, 1997, p. 120).

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A denominação de bárbaro empregada pelos assírios poderia se referia às distâncias geográficas, mas também à percepção de diferenças físicas, bem como à ocupação de regiões não-urbanizadas por povos nômades (BAHRANI, 2006, p. 56)

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descrevem a região da Palestina como objeto de conquista e dominação; de outro, alguns livros proféticos – como o livro de Oséias, escrito por volta do século VII a.C. –, retratam a conexão entre a identidade étnica de Israel e seus sentimentos religiosos, demarcando uma forte antipatia pela influência do poder estrangeiro personificado pela Assíria. Tanto na Assíria quanto em Israel, a vitória ou a derrota militar refletia a participação ou a intervenção de suas respectivas divindades nesses eventos. Seja Assur, seja Yahweh: a guerra não era um movimento militar, caracterizado por componentes religiosos que, como consequência final, delineava identidades e demarcava fronteiras étnicas na Assíria e em Israel. Nós e Eles definiam-se mutuamente.

Nesse ponto, porém, é preciso relativizar a fronteira étnica. É preciso pensar que não houveram fraturas étnicas diametrais. Havia interpenetrações e relações interculturais ao longo do processo de auto-identificação. Com isso, a ideia de uma etnia funcional significaria participar da auto-identidade de um dado grupo em constante processo de negociação. Esse termo técnico seria aplicável em condições políticas, econômicas, religiosas ou culturais em que esteja em jogo a pertença funcional ao grupo étnico dominante ou em condições favoráveis, podendo resultar ou não em uma integração permanente e duradoura, bem como pode permitir a continuação de uma identidade dupla ou mesmo de múltiplas identidades. A etnicidade funcional pode, com isso, ser útil para refletir acerca das sociedades antigas, uma vez que não temos acesso à auto-identidade de grupos antigos, mas podemos demarcar que condições podem ter impelido esses grupos a modificarem a sua identidade. Vale ressaltar, inclusive, que todo processo de expansão territorial poderia ter testemunhado tal fenômeno, a ponto de que a declaração de vinculação a um grupo dominante pode ter sido razoável e útil, acarretando mudanças – temporárias ou não – na auto-identidade, ou mesmo levando a criação de uma multi-identidade (NIESIOŁOWSKI-SPANÒ, 2016, p. 201).

Em suma, não devemos tratar a etnia como sendo um aspecto imanente e imutável da sociedade, pois o sentimento de identidade étnica pode ter resultado de vários fatores, os quais estiveram inseridos e funcionavam dentro de um dado contexto social e histórico. Portanto, deve interessar mais como todos esses fatores ocorreram dentro da sociedade, que ações ocorreram em decorrência dele, quais os efeitos provocados e, por fim, qual a historicidade apresentada pela etnia que se estuda. A identidade de grupo não é dada, ocorre em ação, em um dado tempo e espaço, podendo ou não interagir com a identidade do Outro.

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CAPÍTULO 2 – PARA O OESTE AS FRONTEIRAS DO IMPÉRIO AVANÇAM: O IMPACTO DA DOMINAÇÃO NEOASSÍRIA NA REGIÃO DA PALESTINA

2.1. Processo de reafirmação territorial e a formação do Império Neoassírio

A guerra e a violência foram expressões emblemáticas de poder na Mesopotâmia, com presença exponencial em monumentos e inscrições celebrativas, comemorativas e narrativas. O registro dos eventos bélicos teria por finalidade a exaltação da supremacia e da vitória militar, o que demarca uma forte ligação entre o fenômeno da guerra e o conceito de realeza (NADALI, 2015, p. 40-41). Antes, devemos compreender a guerra como um elemento fundamental à compreensão da sociedade assíria, inserindo-a em seu contexto preciso, demarcando a primazia dessa importante articulação para a compreensão da história assíria.

Os primeiros registros da história assíria remontam ao Período Paleoassírio (c. 2000-1800 a.C.), com o relato de reis que viviam em tendas8. Depois disso, o Período Assírio Antigo (c. 1812-1363 a.C.) foi inaugurado com a dominação amorita de grande parte da Mesopotâmia Setentrional. Após o domínio amorita, a assíria foi submetida a laços de dependência estrangeira à Eshnunna, Babilônia e ao poderio hurrita9. Com o avanço do império hitita para além da Anatólia, a Assíria obteve condições favoráveis para conseguir a independência, inaugurando o Período Médio Assírio (c. 1363-934 a.C.). Durante o século XIII a.C. há o nascimento da estrutura política imperial na Assíria, que vivenciou um período de rápida extensão territorial, emergindo como uma potência na geopolítica da região, mediante a crescente força econômico-militar, a estabilidade política e a conjuntura internacional favorável. Tais fatores fundaram as bases para a ascensão assíria do século IX a.C. (PARKER, 2012, p. 127; TAKLA, 2008a, p. 60-61; ROUX, 1987, p. 205-207; KRAMER, 1980, p. 55-56).

Porém, na segunda metade do século X a.C., a Assíria havia perdido possessões a oeste do Tigre; as grandes rotas de comércio estavam sob controle de tribos aramaicas; além de sofrer a ameaça povos estrangeiros e vivenciar uma situação econômica precária. Por outro lado, a Assíria se mantinha uma nação compacta e sólida; as cidades continuavam livres; soldados treinados ao longo de anos de constantes batalhas, carros de combate, cavalos e

8 A referência à habitação em tendas indica que esses reis eram, possivelmente, chefes tribais que acamparam

nos arredores de Assur, dando a impressão de terem se apoderado da cidade durante o Período Acadiano.

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Povo que estabeleceu o Estado de Mitani. Tradicionalmente belicosos, seu poderio militar esteve assentado na utilização de carros de combate com tração de cavalos. Nisso, não se pode descartar a possibilidade de uma herança militar dos hurritas aos assírios.

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armas constituíam um forte elemento defensivo; e a linha dinástica dos soberanos mantinha-se inalterada. Nessa conjuntura, o Império Neoassírio (c. 934-609) foi fundado: de início, campanhas militares foram mantidas em regime regular; o processo de reafirmação do território garantido por conquistas territoriais; e a pressão dos povos estrangeiros foi retida. As guerras teriam assumido o caráter de libertação nacional, sob o comando dos reis assírios que pretenderam afirmar uma posição política de proeminência na geopolítica da região (TAKLA, 2008a, p. 62- 64; ROUX, 1987, p. 307-309; KRAMER, 1980, p. 57).

Nessa conjuntura, Assurnasirpal II (c. 884 – 859 a.C.) foi o primeiro grande monarca neoassírio, forjando um poderoso e imponente Império. Durante seu reinado, manteve a prática regular de campanhas militares, saqueando, destruindo e conquistando cidades e delas recebendo tributos, mantimentos, equipamentos, tropas e reféns. Porém, o soberano não aumentou o domínio do deus Assur, mas o protegeu, fundando cidades e fortalezas bem guarnecidas, reestabelecendo a soberania da realeza assíria (TAKLA, 2008a, p. 64-72; ROUX, 1987, p. 313-314).

Assim como Assurnasirpal II, Shalmaneser III (c. 859-824 a.C.) praticou campanhas militares como recurso de Estado para o reestabelecimento da soberania política e territorial. Com as vitórias adquiridas, as sucessivas campanhas renderam tributos; cidades foram conquistadas, saqueadas e destruídas; Shalmaneser III também erigiu estelas em memória de seus feitos vitoriosos. Vale ressaltar que essas campanhas teriam sido mais reflexos de ambições econômicas do que políticas (TAKLA, 2008a, p.73-78; ROUX, 1987, p. 319-320).

O fim do reinado de Shalmaneser III foi marcado por uma guerra civil liderada por Assur-dannin-apli, filho de Shalmaneser III. Coube a Shamshi-Adad, outro filho de Shalmaneser III, a missão de dominar a revolta em nome de seu pai já envelhecido, garantindo o direito de sucessão ao trono10. Diante da pacificação interna e do restabelecimento da ordem imperial, Shamshi-Adad V (c. 824-811 a.C.) assumiu o trono e teve que lidar com a instabilidade remanescente entre o governo central e as províncias,

10 O exercício da realeza na Assíria estava restrito aos principais membros da família real estabelecida,

efetivando uma linhagem dinástica que, no caso neoassírio, não sofreu grandes abalos. Assim, a linha de sucessão era legitimada pela própria linhagem patrilinear do rei: irmãos do rei, filhos primogênitos, filhos segundogênitos, e descendentes das consortes do rei consistiam-se nos potenciais sucessores ao trono. A diversidade de possíveis sucessores poderia acarretar uma luta pelo poder. No entanto, o rei ainda em vida escolhia oficialmente seu sucessor, que ainda precisava ser sancionado pelos deuses, pois deveria demonstrar habilidade e comprometimento perante o projeto político e religioso do Império. Isto, como fim último, garantiu a estabilidade da linha dinástica (RADNER, 2010, p. 26-27.).

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iniciando um período de estagnação e de fraqueza, que durou quase um século. Quando Shamshi-Adad V morreu, a Assíria foi governada pela rainha Sammuramat11, em nome de seu filho, Adad-nirâri III (c. 811-783 a.C.), que era muito jovem para assumir o trono. Quando assumiu o exercício do poder, Adad-nirâri III mostrou-se enérgico, empreendendo diversas campanhas militares, mas que não tiveram resultados duradouros. Shalmaneser IV (c. 783-773 a.C.) assumiu o trono, mas não se conservaram informações significativas sobre seu governo. O reinado de seu irmão, Assur-dân III (c. 773-755 a.C.), também possui escassas informações, mas é possível apontar a existência de epidemias de peste e a ocorrência de revoltas. Já Assur-nirâri V (c. 755-745 a.C.), se restringiu a ordenar a realização de expedições policiais, sendo que seu reinado se encerra com uma rebelião palaciana que leva Tiglath-Pileser III ao trono da Assíria (TAKLA, 2008a, p. 79; ROUX, 1987, p. 323-327).

Tiglath-pileser III (c. 745-727 a.C.) restabeleceu a paz na Assíria. A partir daí, realizou a reforma da estrutura administrativa e burocrática imperial assíria, visando fortalecer a autoridade real e reduzir os poderes dos governadores, desenvolvendo um eficiente sistema de comunicação, ligando metrópole e províncias. Tiglath-pileser III também foi responsável por organizar e incrementar consideravelmente o poder do exército, convertendo-o em instrumento de conquistas militares de seus sucessores. A existência do exército permanente12 permitia a reunião de forças necessárias para levar a cabo operações policiais e campanhas militares de longa duração. O recrutamento massivo e ocasional de soldados em caso de urgência proporcionava a vantagem de ter tropas posicionadas para intervir imediatamente para aplacar revoltas locais e defender as fronteiras do Império de ataques de inimigos estrangeiros. A cavalaria e os carros de combate converteram-se consistindo em uma inovação tecnológica de grande monta na especialização do aparato militar do exército assírio, o que garantiu posições mais vantajosas no campo de batalha, favorecendo a conquista das vitórias

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Possivelmente umas das rainhas de que fala Heródoto: a rainha Semíramis. A outra seria Nitócris (Niqî’a), a esposa de Senaqueribe e mãe de Esarhadon, que eventualmente teria exercido regência na Babilônia (ROUX, 1987, p. 325-326).

12 O exército de Tiglath-Pileser III era composto por três categorias básicas:

a) Kisir Sharrûti – Termo que pode ser traduzido como “Laço da Realeza”, que designa o exército profissional permanente composto por contingentes recrutados e aquartelados em todas as províncias periféricas, incluindo um considerável contingente de mercenários estrangeiros (arameus, medos, cimérios, árabes, elamitas), os itu. A Guarda Real era composta por unidades deste exército.

b) Sabê Sharri – Termo que pode ser traduzido como “Soldados do Rei”. Eram homens jovens, recrutados em todo o Império, que exerciam o serviço militar como forma de pagamento do ilku – imposto que deveria ser pago através de prestação de serviços ao Estado. Recebiam a alimentação diária e aguardavam em suas casas ou campos o recrutamento para a guerra.

c) Sha Kutalli – Termo que pode ser traduzido como “Soldados Reservistas”. Eram homens jovens, adquiridos por meio do recrutamento massivo das populações de várias regiões do Império em casos de extrema necessidade para cobrir as baixas sofridas (ROUX, 1987, p. 367-368).

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pretendidas pelo Império. Inclusive, a elite dos combatentes servia na cavalaria ou nos carros de combate. Diante disso, as guerras de Tiglath-Pileser III deixaram de serem campanhas destinadas a pilhagens e passaram a ser empreendimentos de conquistas duradouras (RADNER, 2014, p. 105-107; TAKLA, 2008a, p. 79-81; ROUX, 1987, p. 330-371; KRAMER, 1980, p. 60).

O reinado de Shalmaneser V (c. 727-722 a.C.) possui informações escassas. Em virtude de revolta liderada por Oseas, sabe-se que tomou a Samaria, convertendo-a em província assíria, o que provocou o desaparecimento do reino de Israel. É imprecisa as condições em que se deu a sucessão ao trono. Seu sucessor, Sargão II (c. 722-705 a.C.), teve que atuar nas zonas de influência dos maiores inimigos assírios àquela época – os elamitas, os egípcios e os urarteus –, combatendo o sentimento antiassírio que esses povos fomentavam. Com as campanhas militares realizadas, toda região sírio-palestina e dos montes Zagros estavam sob o controle assírio (TAKLA, 2008a, p. 83-86; ROUX, 1987, p. 335).

Senaqueribe (c. 705-681 a.C.) subiu ao trono tendo as fronteiras norte e leste do Império apaziguadas; além disso, realizou campanhas direcionadas contra vassalos irrequietos no norte e no oeste. Depois de uma longa luta pelo direito de sucessão, Esarhadonn (c. 681-669 a.C.) subiu ao trono. Por meio do uso de força e diplomacia, manteve uma paz precária no Império; manteve uma posição neutra e, por vezes, amigável com os árabes; e realizou campanhas contra o Egito, que àquela época estava sob o domínio kushita. Com a morte de Esarhadonn, Shamash-shuma-ukîn foi incumbido de governar a Babilônia, enquanto Assurbanipal (c. 669-631 a.C.) assumiu a coroa da Assíria. Coube a Assurbanipal reprimir sem sucesso a revolta egípcia. Diferentemente de outrora, as vitórias eram barganhadas com derrotas que não puderam disfarçar a clarividente debilidade do Império, que via as fronteiras gradualmente retrocederem e, concomitantemente, a ameaça do povo medo aumentar sem que se pudesse detê-lo. A vastidão do império, todavia, se converteu em um problema diante da impossibilidade de vigiar todas as fronteiras e debelar as rebeliões provinciais efervescentes. A instabilidade do sistema, que se viu vulnerável a ameaças externas e às revoltas internas, se tornou aparente nos últimos anos do reinado de Assurbanipal e nos reinados de Assur-etel-ilani (c. 631-627), Sin-shumu-lishir (c. 627), Sin-shara-ishkun (c. 627-612) e Assur-uballit II (c. 612-609) que o sucederam, sobre os quais pouco se sabe. O sistema de política externa defasado e a vulnerabilidade da monarquia contribuíram para impossibilitar a manutenção da unidade do Império, que se viu invadido e destruído por uma aliança medo-babilônica, em 609 a.C. (TAKLA, 2008a, p. 87-99; ROUX, 1987, p. 343-353; KRAMER, 1980, p. 62).

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O que se pode concluir acerca da História da Assíria é que as estratégias e métodos do imperialismo assírio dos séculos VIII e VII a.C. fizeram parte de um fenômeno relativamente novo na culminância de um longo processo que remontou ao início do IIº Milênio a.C., na Mesopotâmia Setentrional (PARPOLA, 2003, p. 99-100): a ideologia real que apoiava essa expansão transformou o rei assírio de um governante local em um representante terreno de Assur, deus supremo da Assíria; porém, esse mecanismo já fora utilizado por impérios precedentes (GALTER, 1998 apud. PARPOLA, 2003, p. 100) e possivelmente foi tomado de empréstimo pelos assírios.

A diferença essencial do Império Neoassírio para seus antecessores foi a introdução da estratégia sistemática de integração econômica, cultural e étnica perpetrada por Tiglath-Pileser III (c. 745 a.C.), por meio da qual o poder relativamente limitado do governo central sobre os estados vassalos foi ampliado, reduzindo territórios vassalos semi-independentes em províncias assírias diretamente controladas pelo poder central (TADMOR, 1994, p. 09). Acrescenta-se a isso as massivas deportações (ODED, 1979); a destruição dos centros urbanos vassalos e reconstrução das capitais vassalas no estilo assírio (PARPOLA, 2003, p. 100); a instalação de governadores assírios nas províncias; a construção de guarnições e fortes assírios (PARKER, 1997); a imposição de impostos e de um sistema de recrutamento (POSTGATE, 1974 apud. PARPOLA, 2003, p. 100), de normas e regras imperiais (EPH’AL & NAVEH, 1993), de cultos (SPIECKERMANN, 1982, p. 322-344 apud. PARPOLA, 2003, p. 100), e de uma língua franca, o aramaico (EPH’AL, 1979, p. 284 apud. PARPOLA, 2003, p. 100). É possível falar, assim, em um imperialismo que foi político, mas que também foi social, econômico, cultural, religioso, urbanístico e, permeando todos, militar.

2.2. Guerras Ordálicas como empreendimentos políticos, econômicos e religiosos

Se levarmos em conta o contexto histórico-geográfico e as conjunturas político-econômicas em que a Assíria esteve inserida, as ações militares, ao contrário do que se pode pensar, não são totalmente resultantes de um empreendimento amplo e planejado coordenado pelo rei assírio. As guerras levadas a cabo pelo soberano foram resultado de operações defensivas ou preventivas destinadas a proteger o território de Assur – tanto no plano político, quanto na dimensão religiosa – dos inimigos potenciais, e assegurar a manutenção da autonomia das rotas comerciais (ROUX, 1987, p. 309-310).

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As guerras assírias não eram exclusivamente destrutivas: pequenos reinos circunvizinhos eram saqueados e obrigados a pagar impostos anualmente; cidades e fortificações inimigas eram reutilizadas pelos assírios para o repovoamento de populações derrotadas. A total destruição de uma cidade capturada e criação de uma área deserta nos territórios inimigos dominados resultariam em inutilidade e imediata perda do ponto de vista econômico. A guerra na Assíria era um elemento dinâmico da economia do Império: o governo central era sustentado pelos tributos13 e impostos cobrados daqueles que se submetiam à autoridade do soberano, além de butins e tributos ter integrados parte do tesouro real (NADALI, 2015, p. 49; NADALI, 2014, p. 102; ROUX, 1987, p. 310-365).

Imagem 03: Graus de autonomia em relação ao Império Neoassírio

Fonte: PARKER, 2012, p. 138 (adaptado).

Isso possibilita tratar o Império Neoassírio a partir de uma perspectiva de governo indireto. Parker (2012) argumenta que a expansão imperial não foi um processo de conquista de territórios contíguos, mas sim um processo no qual foram instaladas “ilhas” de controle territorial em zonas periféricas, estabelecendo a hegemonia indireta da Assíria sob as regiões fora das fronteiras imperiais. Entre essas “ilhas” e o centro do Império havia zonas neutras, que eram os pequenos reinos e/ou Estados que não se caracterizavam como inimigos hostis ao

13 Os dois mecanismos assírios mais comuns de recolhimento de tributos – que serviam como demonstrativo de

submissão – de povos subjugados eram o Tâmartu – forma de tributo paga ocasionalmente – e o Madattu – forma

de tributo pago anualmente.

Apesar da instalação de colônias militares assírias – responsáveis por assegurar o bom funcionamento dos intercâmbios comerciais –, o alargamento das fronteiras tornou cada vez mais difícil a cobrança do madattu e o controle das populações. Com a formação de uma pesada e eficaz máquina administrativa, a cobrança de tributos transferiu significativas quantidades de riquezas da periferia para o centro, provocando o constante enriquecimento do Estado em detrimento do empobrecimento das províncias e estados vassalos, o que acarretou constantes revoltas que deviam ser reprimidas continuamente.

Assim, o mesmo sistema econômico unidirecional que se constituiu como uma das grandes forças da Assíria foi, por outro lado, um dos elementos de debilidade do Império, contribuindo para sua desestabilização, enfraquecimento e derrota (ROUX, 1987, p. 311-313).

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Império. Na efetivação do domínio e da comunicação, o Império estabeleceu um sistema de corredores que interconectavam todas as porções do vasto território. Isso implica a existência de diversos níveis de autonomia em relação ao Império e, por outro lado, de continuidade do poder deste sob as regiões circundantes (ver Imagem 03).

A natureza do controle imperial variava diante da heterogeneidade territorial: a “geografia do poder” era variável e flexível conforme a aplicação dos métodos e usos do poder tanto no centro do Império, quanto nas zonas periféricas (PARKER, 2012, p. 139-140). Nisso, as guerras atuaram como mecanismos socialmente conhecidos e culturalmente organizados, não sendo agentes causadores de destruição, mas sim organismos ordenadores: nessas lutas estava em jogo a manutenção da liberdade econômica, por meio da qual foram financiadas grandes obras arquitetônicas; a conservação da autonomia política e a defesa das fronteiras territoriais; e, sobretudo, a conservação da Ordem imperial e do Equilíbrio Cósmico.

Mais do que um imperialismo político-econômico e territorial, o imperialismo religioso também revestiu e justificou as ações militares assírias. Assur assume um temperamento belicoso – contrastando com a natureza relativamente pacífica de um deus-tutelar de uma pequena cidade-Estado de outrora –, o que indica sua remodelagem e reformulação para adequação aos desenvolvimentos políticos que tomam corpo, sobretudo, a partir do século VIII e VII a.C., garantindo a justificação da divindade às ações político-militares (RADNER, 2014, p. 101; FALES, 2010, p. 72-73). Assim, as forças político-militares do Império serão identificadas como o exército mesmo do deus, que impõe conquistas largas e significativas no Oriente Próximo. O território do Império foi rapidamente designado como “País de Assur”, e todos os povos derrotados estavam sob o “jugo de Assur”.

O rei assírio, por sua vez, deixou de ser um simples chefe de uma pequena vila e passou a ser o “governante” dos domínios terrenos do deus Assur, o “administrador” das conquistas militares asseguradas pelo deus-tutelar, o “sumo-sacerdote” do culto terrestre do deus Assur. Cabia ao rei, portanto, estender o domínio de Assur – que passa gradualmente a ser identificado como o “rei dos deuses” para os assírios – sobre todos os povos, recorrendo, às vezes, ao uso da força contra os inimigos do rei, os quais eram igualmente identificados enquanto inimigos do deus, “infiéis”, “povos maus” passíveis de serem castigados (FALES, 2010, p. 75-78; RADNER, 2014, p. 25; ROUX, 1987, p. 310-311).

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Torna-se indissolúvel a associação entre o deus nacional e o rei, por meio da qual as guerras vão assumir um caráter religioso, uma vez que são manifestações da interpenetração dos projetos divinos e das ações da realeza: as campanhas militares irão ser conduzidas regularmente para o estabelecimento da ordem (“ina qibit”) ou por ordenança (“ina tukulti”) do deus Assur e/ou outras divindades assírias, pois somente os deuses possuíam autoridade para ordenar a realização das guerras, vertendo a cólera divina contra os inimigos. Nesses termos, o rei assírio é apenas um dentre tantos instrumentos dos deuses (FALES, 2010, p. 82). Desse modo, as populações eram convencidas que os deuses legitimavam e aprovavam o governo e a política dos reis assírios. As guerras levadas a cabo pelos soberanos assírios eram, portanto, guerras de justiça. Lutando contra os deuses inimigos, ele recebera a incumbência de punir com irrestrito poder aqueles que não fossem fiéis a Assur (FUCHS, 2011, p. 396).

A guerra é, portanto, instrumento da ideologia político-cultural e religiosa dos reis assírios (NADALI, 2015, p. 48-49), uma vez que o resultado das guerras é produto das decisões dos deuses, cabendo somente a eles decidirem o destino dos habitantes de seus domínios terrestres. Assim, a esfera terrena respondia aos destinos concebidos na esfera divina que, em contrapartida, aplicava seus desígnios em resposta às ações e práticas perpetradas na própria esfera terrestre, humana, mortal/destruível. Uma respondia à outra, e a guerra foi um componente importante na construção deste diálogo simbólico entre política, religião, homens e deuses. Assim, não há como dissociar a dimensão política do caráter religioso no interior da sociedade assíria. Ambos interpenetram-se.

2.3. A relação do Império Neoassírio com os povos dominados

Com Tiglath-pileser III, o território assírio foi unificado e obteve um considerável incremento de poder com a reorganização do exército, garantindo numerosas e significativas vitórias na geopolítica próximo-oriental. No plano da política externa, os estados derrotados pela Assíria eram, por vezes, privados de seus soberanos e transformados em províncias submetidas por laços de dominação direta ou indireta. Do ponto de vista assírio, os estados conquistados são todos “traidores”, pois haviam estado vinculados a Assíria mediante pactos relativamente explícitos e recentes, por meio dos quais se submetiam à fidelidade e se comprometiam com o pagamento de tributos. Sua “rebelião” e seu castigo acarretam sua transformação em províncias assírias, com isso os príncipes locais são substituídos por governadores assírios, as residências reais locais são remodeladas e transformadas em

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palácios provinciais assírios, com administração, guarnições e cultos assírios. Já as populações locais são aplicadas um sistema de deportações em grande escala e em largas distâncias, que tinham por objetivo quebrar o papel político e cultural das elites locais e, também, repovoar e manter produtivas as terras conquistadas em todo o Império. Para sobreviverem pacificamente, as províncias deviam manter-se com um comportamento submisso (LIVERANI, 1995, p. 614-616).

Em outros termos, podemos afirmar que a política expansionista assíria sob Tiglath-Pileser III deu ênfase ao controle das rotas de comércio e, no campo político, à dominação de terras e povos estrangeiros (RUSSELL, 1999, p. 88). Essa dominação aos povos estrangeiros se deu em diversos níveis (ver Imagem 03): das populações estrangeiras esperava-se respeito e submissão pacífica perante o Império; dos governantes estrangeiros, homenagens e reconhecimento da soberania assíria; e, no plano econômico, pagamentos de impostos à Assíria. Uma vez que essas expectativas fossem transgredidas, o soberano assírio e seu exército atuavam de forma energética para o reestabelecimento da Ordem Imperial e do Equilíbrio Cósmico, que eram suas máximas atribuições.

Com a confecção de baixos-relevos fixados às paredes de palácios imperiais, os reis assírios encontraram um dos meios documentais mais eficientes de efetivar “arquivos comemorativos reais para as gerações vindouras” (FUCHS, 2011, p. 381). Esses registros foram meios de expressões materiais que atendiam à premissa de serem suportes capazes de garantir a perenidade da mensagem que veiculavam por meio de uma sequência contínua de representações que, a partir do Período Médio Assírio (c. 1363-934 a.C.), constituíram uma narrativa que celebrava aspectos que permeavam a ação da realeza (FALES, 2010, p. 58-62). Portanto, o estudo das narrativas visuais contida nas paredes palacianas permite que conheçamos diretamente as mensagens formuladas acerca da própria realeza assíria e dos povos estrangeiros – e/ou assírios dissidentes que, em ambos os casos, personificavam o papel de inimigos da Assíria – que eventualmente se contrapunham a ela.

Deste modo, é recorrente o registro de estrangeiros enviados à presença do rei, trazendo tributos, como um sinal demonstrativo da autoridade exercida pela realeza. A Imagem 04 é emblemática, nesse sentido, uma vez que a composição esteve diretamente relacionada ao momento histórico vivenciado pela Assíria que, naquele momento, estava se expandindo para o Oeste, na região da Síria, de onde chegam os espólios representados. As vestimentas que os dois homens utilizam sugerem que os homens são emissários estrangeiros

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provenientes do Oeste: o turbante usado pelo homem da esquerda – que tem os punhos cerrados como um sinal de submissão – indica que seja originário do noroeste da Síria, enquanto o outro homem possivelmente era fenício. Eles trazem bens de luxo e símbolos de status, como macacos, que eram animais populares na arte da Mesopotâmia. Reis mesopotâmicos se orgulhavam de suas coleções de animais exóticos, que adquiriram como espólio ou tributo, os quais eram levados para a capital do Império, compondo o microcosmo do mundo governado pelo soberano assírio, em nome do deus Assur.

Imagem 04: Estrangeiros enviados à presença do rei assírio trazem espólios e tributos de Estados da região da

Síria. Palácio Noroeste de Assurnasirpal II, Calá. Fonte: Catálogo Documental (ANA2.06).

A submissão dos estrangeiros é, também, representada de outras formas. O Broken Obelisk (ver Imagem 05), monumento de pedra calcária – danificado e restaurado – do século XI a.C., apresenta o rei diante de símbolos de duas divindades segurando dois pares de prisioneiros ajoelhados e presos por coleiras. Já o Black Obelisk (ver Imagem 06), do século VIII a.C., glorifica as ações do rei Shalmaneser III em uma narrativa muito bem conservado: tributos de todas as regiões são oferecidos e Jehu, rei de Israel, presta homenagem/submissão ao rei assírio.

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Imagem 05: Detalhe do Broken Obelisk de Assur-bel-kala (1074-1056 a.C.), Nínive.

Fonte: British Museum (BM 118898).

Imagem 06: Detalhe do Black Obelisk de Shalmaneser III (c. 825 a.C.), Calá.

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Essas duas composições de momentos históricos diferentes e particulares apresentam uma mesma mensagem: a autoridade do soberano assírio deveria ser reconhecida não somente pelos próprios súditos assírios, como também por povos estrangeiros. E no que se refere à Imagem 06, a mensagem é ainda mais particular: o rei Jehu, de Israel é apresentado prostrado ao centro do relevo, acompanhado por diplomatas (?), prestando homenagem ao rei Shalmaneser III. A representação da submissão diplomática de Israel diante da Assíria significa domínio nominal e obrigação de pagar tributos como forma de manutenção de autonomia e, por outro lado, reforça a força e poderio do Império e do rei assírio. Por esse motivo, Shalmaneser é caracterizado mediante um ato cerimonial, no qual o soberano assírio faz gesto votivo com a mão em direção a estilização de disco solar alado – símbolo que marca a presença da divindade na cena –, agindo com soberania e retidão diante de Jehu, subjugado.

A representação do inimigo prostrado diante do rei assírio constitui uma unidade episódica14 repetida diversas vezes nos relevos parietais fixadas nas paredes dos palácios imperiais neoassírios. O Palácio Central de Tiglath-Pileser III possui registros, embora fragmentados e incompletos, que retratam unidades episódicas semelhantes (ver Imagem 07 e Imagem 08).

Imagem 07: Relevo do Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá.

Fonte: Catálogo Documental (TGP3.03)

14 Entendemos por unidades episódicas os diversos elementos que estruturam a composição das imagens;

quando combinados, possibilitam a leitura integral da cena esculpida em relevos neoassírios e, quando lidos individualmente, acabam por revelar as minúcias de um episódio particular, rapidamente identificável, e presumidamente desprovido de ambiguidades (SILVA, 2016a, p. 112).

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No caso da Imagem 07, o rei é representado recebendo homenagens. O rei, identificado por sua coroa – o barrete com topo pontiagudo, cercado por um diadema com duas tiras, possivelmente de pano, pendurados para trás e para baixo de suas costas – é representado sendo atendido por uma figura imberbe – provavelmente eunuco ou homem jovem –, enquanto uma figura masculina de chapéu pontiagudo é representada prostrando-se diante da realeza, beijando-lhe os pés. O rei, trajando uma túnica longa ricamente ornada, mantém um arco – símbolo de sua autoridade – apoiado no chão pela mão esquerda. A posição de reconhecida autoridade da realeza também pode ser identificada por meio da análise da postura corporal e impositura das mãos das figuras masculinas representadas na cena: eram gestos característicos dentre os cortesãos e os oficiais assírios diante da presença do rei.

Imagem 08: Detalhe do Relevo do Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá.

Fonte: Catálogo Documental (TGP3.04)

Na Imagem 08, a composição apresenta um inimigo capturado – provavelmente Hanunu, rei de Gaza15 – representado de joelhos diante do rei Tiglath-Pileser III, submetendo-se formalmente ao rei da Assíria. Com a submissão, Hanunu garantiu-submetendo-se como governante de Gaza sob laços de dependência à Assíria que, por sua vez, estendeu seu controle sobre áreas

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Àquela época, Gaza era a cidade mais meridional dos filisteus, desfrutando de uma posição geográfica privilegiada que a tornou um dos centros comerciais mais importantes do Mediterrâneo Oriental, sobretudo por seu destaque na Rota do Incenso em toda a Península Arábica.

Referências

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