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Seção II – Caracterizando o corpus da investigação

II.III A relação entre as obras

Como podemos observar, há uma semelhança entre as duas coleções quanto ao ordenamento dos conteúdos. A única diferença ocorre no volume 1, no qual o conteúdo relativo à “Origem da vida” encontra-se diferentemente situado em cada uma das coleções. Na Coleção 1, esse tema é um dos primeiros a serem abordados (está no segundo capítulo), enquanto que na Coleção 2 aparece nos últimos capítulos, porém continua como um assunto contido no primeiro volume de ambas as coleções. Parece haver uma padronização de ordenamento dos conteúdos biológicos nos livros didáticos de Ensino Médio que pode ser reflexo de sua constituição histórica no Brasil, com múltiplas influências. Possivelmente advindas dos primeiros livros didáticos utilizados no país, dos currículos elaborados pelas primeiras escolas de ensino médio14, dos documentos educacionais oficiais como o PCN e o PCN+, de propostas curriculares de diferentes Estados e, especialmente, do formato acadêmico de encadeamento das disciplinas biológicas nos cursos de formação docente para o ensino de Ciências Biológicas. Agrega-se a essas possibilidades, mais recentemente, a pressão exercida para atender aos interesses mercadológicos que se fundamentaram nessa tradição de sequência dos conteúdos programáticos (CASSIANO, 2013). Para além disso, podemos também questionar o papel das escolas e professores como influenciadores desse processo, uma vez que as coleções inovadoras são pouco adotadas pelos professores.

Megid Neto e Fracalanza (2003), em pesquisa sobre o livro didático de ciências, investigaram sobre as fontes de influências governamentais e sociais sobre esse tipo de obra. De acordo com eles, há quatro “instituições” que exercem esse papel, advindas de segmentos diferenciados da sociedade. Esses influenciadores dos livros didáticos de Ciências são as instituições públicas do segmento político, as editoras, as escolas (na figura tanto de professores, quanto de alunos, pais e equipe técnica) e os grupos de pesquisa (que podem ser de instituições de ensino superior ou de pesquisa propriamente dita). Apesar de haver um consenso entre os estudiosos da área sobre esses fatores, alertam para a falta de investigações que possibilitassem determinar o valor de interferência de cada um deles sobre a constituição das obras. Todavia atestam que as estruturas programática e teórico-metodológica das coleções didáticas dessa disciplina, do início do século XXI, não sofreram mudanças

67 significativas em relação às obras anteriores. As alterações estão mais relacionadas às inclusões de temáticas exigidas por documentos oficiais, e aparecem em caráter suplementar, como, por exemplo, na forma de boxes de leitura, de textos introdutórios, mas sem modificação do texto principal que versam sobre os conteúdos biológicos. Assim, ainda que o objeto dessa pesquisa não tenha abarcado o livro de Biologia em sua completude15, ou seja, as

obras didáticas que são utilizadas no ensino médio, acreditamos que essas considerações possam refletir as características dos livros desse nível de ensino.

Um dos aspectos apontados por Megid Neto e Fracalanza (2003) que demonstram a tentativa dos livros didáticos de se adequarem às orientações de documentos educacionais, como, por exemplo, o PNLD, diz respeito à presença de elementos de caráter suplementar, como os boxes de leitura. Estes, por sua vez, são recorrentes nas duas coleções analisadas em nossa pesquisa. Ambas as coleções os apresentam, embora em maior quantidade na Coleção 2. Acreditamos que os boxes podem ser uma maneira de chamar atenção para um tópico de importância acerca de um tema, uma vez que possuem um design gráfico diferente dos demais elementos textuais. Eles também possibilitam o aprofundamento de um determinado assunto, relativo ao conteúdo versado do capítulo no qual se inserem, sem que o texto principal se torne enfadonho por conter muitas informações. Mas podem também expressar essa “complementação” que os pesquisadores indicam. Nesse caso, no intuito de adequar as obras didáticas às orientações dos editais do PNLD e/ou outros documentos relativos ao ensino de Biologia. Durante nossa leitura analítica dos livros, essa maneira de expor algumas informações nos chamou atenção. Frente a isso, fizemos um levantamento da quantidade de boxes presentes nas coleções, daqueles que possuem alguma relação com a temática evolutiva (ver APÊNDICE C) e de um tipo de box específico da Coleção 2, denominado “História da Ciência” cuja proposta é apresentar textos que abarcam o contexto histórico-filosófico dos conteúdos biológicos (ver APÊNDICE D).

Como podemos verificar nos dados expostos no Apêndice C, a Coleção 1 possui 53 boxes presentes ao longo dos volumes que retratam diferentes assuntos da Biologia. Destes, nove (aproximadamente 17%) estão relacionados à evolução biológica e aparecem nos volumes 2 e 3. Na Coleção 2 há notoriamente uma diversidade maior de boxes (são 119),

15 O foco desta pesquisa está voltado para o ensino de biologia tendo o tema Evolução como componente

68 quando comparada à Coleção 1, relacionando ciência às mais diferentes áreas do saber e do cotidiano. Todavia, somente 19 (aproximadamente 16%) estão associados à temática evolutiva e, destes, alguns tem como objetivo discorrer sobre temas específicos da evolução. Esses boxes recebem o título de “Processos evolutivos”, e não aparecem de maneira homogênea ao longo da coleção, sendo nitidamente mais recorrentes no volume 1.

No que tange à relação entre os assuntos abordados nos boxes e o texto principal no qual se inserem, em ambas as coleções, há uma associação das informações contidas nessas duas formas de apresentar os conteúdos nos livros didáticos. No entanto, a maneira como são expostos os textos e/ou imagens nos boxes tende a promover o entendimento de que são informações extras, de aprofundamento do conhecimento; curiosidades que não comprometem o aprendizado dos conteúdos retratados nos textos principais dos capítulos. Isso se evidencia por praticamente inexistir elementos textuais que façam uma ligação desses dois tipos de apresentações dos conteúdos.

Podemos observar nos boxes da Coleção 1 a presença de diferenciados assuntos que, em algum momento do texto, indicam a temática evolutiva. Seja a partir de relatos sobre as causas de surtos mundiais de gripe e a problemática na saúde humana provocada por essa doença, ou da importância das bactérias para a humanidade, a comparação do sistema circulatório dos vertebrados, doenças provocadas por vermes nematódeos, a resistência à drogas e seleção natural, a evolução observada em pequena escala, os estudos moleculares de hominídeos fósseis, os problemas associados a taxa de crescimento da humanidade, ou os problemas atmosféricos em virtude da poluição são pertinentes. Porém, na maioria desses boxes a temática evolutiva é pontual, com uma breve associação de seu conteúdo ao processo evolutivo, geralmente relacionando-o à seleção natural, às causas da variabilidade genética. Entretanto não se prolongam em explicações que possibilitem compreender a evolução como um processo não diretivo, intencional, desprovida da concepção de progresso que muitos estudantes possuem. Além disso, alguns boxes apresentam informações que se estabelecem numa perspectiva cronológica, de linha do tempo para os acontecimentos, remetendo diretamente à essa concepção progressiva do processo evolutivo.

Na Coleção 2, os boxes com temas que versam sobre o processo evolutivo ocorrem nos três volumes, com menor frequência no volume dois. Enquanto que no volume 1 e 2, a maioria desses boxes faz parte do grupo de assuntos denominados “Processos Evolutivos”, o

69 que predispõe ao leitor a ciência da presença de uma temática evolutiva nesses textos, no volume 3 apenas um desses boxes se faz presente. Os demais, que de alguma forma estabelecem relação com a evolução biológica, são boxes cujo objetivo principal é inter- relacionar a Biologia a temas sociais, éticos, ambientais e a outras áreas do saber científico, como a Química. São retratados, por exemplo, temas referentes ao controle de pragas urbanas, à origem e a evolução das mitocôndrias e cloroplastos, evolução da fotossíntese, a relação da meiose com a variabilidade genética, a vantagem da variabilidade genética para os seres vivos no contexto de comparação entre reprodução sexuada e assexuada, ao processo evolutivo dos primatas com foco na evolução humana, à formação do carvão mineral destacando a história geológica da Terra e a importância dos registros fósseis, à relevância de evidências (fósseis e moleculares) para compreender a evolução dos répteis, aos elementos que possibilitam caracterizar a evolução como fato científico, ao mal uso de teorias evolucionistas no contexto sociocultural humano e aos métodos de datação fóssil.

A principal característica textual dos boxes da Coleção 2 diz respeito ao seu caráter descritivo dos assuntos desenvolvidos. A temática evolutiva geralmente não é explícita e, por vezes, se faz em uma perspectiva cronológica, o que pode promover o desenvolvimento da concepção de evolução como progresso, como uma resposta do processo adaptativo dos seres vivos. A comparação como procedimento científico é exposta em alguns textos, sendo demonstrada como uma das formas que possibilitam atestar a ocorrência da evolução nos grupos de seres vivos, e deduzir as relações de parentesco entre esses grupos. Evidências fósseis e moleculares também são expressas em alguns boxes como indícios que possibilitam compreender de que forma se deu a evolução de algumas espécies. Há, também, os que incorrem na visão da ciência como resultado de experimentos que destinam-se a testar hipóteses, o que não é regra na ciência e, por conseguinte, tampouco para o desenvolvimento dos conhecimentos concernentes à evolução biológica. Esta fundamentou-se, durante muito tempo, especialmente na inferência a partir de observações, registros (de fósseis e de organismos vivos) e comparações entre as evidências existentes16.

16 Procedimentos próprios da ciência que continuam sendo utilizados não só nos estudos inerentes à evolução

como em diversas outras áreas de pesquisa científica. A experimentação é apenas um desses procedimentos, apesar de muitas vezes ser apresentada como condição indispensável, e a única credibilizadora de uma pesquisa científica.

70 Quanto aos elementos histórico-filosóficos presentes nos boxes intitulados “História da Ciência”, específicos da Coleção 2, a relação com a temática evolutiva é praticamente inexistente, como pode ser observado no Apêndice D. Na verdade, acompanha a limitação dessa abordagem nas duas obras, independente dos temas de estudo e, em quase todos, a história apresentada ocorre na perspectiva cronológica de sequência de fatos – “linha do tempo” – a partir de uma concepção de ciência como progresso de conhecimento. A associação da ciência com a experimentação enquanto procedimento que a valida, também é verificada na maioria dos boxes. Assim, apesar da Coleção 2 colocar o conhecimento científico como um domínio do saber que está sujeito a erros e que, por esse motivo, se constrói continuamente, não propicia um entendimento real da ciência como constructo humano que se estabelece nas diferentes relações que a permeiam, com por exemplo as sociais, políticas, econômicas e filosóficas. Aliás, se o contexto histórico em sua complexidade praticamente inexiste nesses boxes, o filosófico é totalmente negligenciado e ausente – mais uma vez refletindo uma característica que se estende por todos os elementos textuais dos livros e não somente aos boxes de leitura.

A existência desses boxes novamente nos leva a questionar a relevância dessa estrutura textual para o ensino de evolução e para o entendimento da evolução como eixo integrador da biologia e de um conhecimento imerso em um contexto histórico filosófico de diferentes períodos. Todos os assuntos abordados nesses boxes poderiam desenvolver-se no texto principal, de forma articulada com conteúdo, e não somente limitado a um momento à parte no livro didático, como um apêndice de conhecimento a ser discutido. Além disso, a abordagem histórico-filosófica carece de um amplo desenvolvimento, pois nem mesmo nesse formato isolado das discussões correntes dos capítulos ela aparece com frequência. Portanto, consideramos que esses elementos textuais podem ser de extrema relevância na composição do todo do LD, desde que seja, juntamente com a totalidade de seu conteúdo, repensado para que efetivamente contribuam para o desenvolvimento do conhecimento biológico, que esteja claramente articulado ao texto principal e não se configure somente em caráter “acessório” de conhecimentos nos capítulos de estudo.

Outro aspecto estrutural do conteúdo programático que nos chamou atenção foi o fato das temáticas específicas de “Genética” e “Citologia” continuarem17 distantes uma da outra. A

71 “Genética” é um conhecimento que se articula e depende fortemente dos conhecimentos desenvolvidos durante o estudo da célula. De modo que, provavelmente, será preciso que o professor retome este conteúdo antes de iniciar o ensino de “Genética”. Colocamos o questionamento: porque essas duas áreas biológicas não aparecem no livro didático em momentos próximos? A Genética não poderia ser um conteúdo do volume 1 das coleções, logo após o estudo da célula?

Além disso, os capítulos específicos de “Evolução” estão presentes no último volume das duas obras didáticas. Nesse sentido, dois aspectos podem ser considerados. Ao escolher retratar a Evolução biológica em uma unidade específica, o livro pode incorrer na incompletude do aspecto “evolução como eixo integrador”, amparando-se na concepção de que os conhecimentos relativos a essa temática estão incluídos nesses capítulos específicos. Caso faça uma abordagem evolutiva dos conhecimentos biológicos, e mesmo assim opte por manter uma unidade específica para evolução, seja para apresentar a história da construção desse conhecimento ou pormenorizar alguns de seus aspectos, poderia incluí-los em um dos outros dois volumes. Nossa sugestão seria abrangê-lo no volume 1, logo no início do estudo da Biologia no Ensino Médio, em associação com os conteúdos relativos à origem da vida.

Se a evolução é colocada como um dos fenômenos que caracterizam os seres vivos e como unificadora das áreas de estudo da Biologia, seria coerente discutir a história da construção do pensamento evolutivo, o desenvolvimento e conflitos que abarcaram as teorias evolucionistas propostas, bem como os aspectos básicos que fundamentam a evolução biológica entre os primeiros conteúdos das coleções didáticas, mesmo que depois os autores voltassem a trabalhar esses aspectos em outros momentos de estudo, de forma mais aprofundada. Acreditamos, portanto, ser pertinente refletir sobre essas considerações, uma vez que podem influenciar o processo de ensino/aprendizagem de Biologia.

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SEÇÃO III – A EVOLUÇÃO NOS CAPÍTULOS ESPECÍFICOS DOS LIVROS

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