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CAPÍTULO 2: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 MEMÓRIA DE TRABALHO E LEITURA

2.2.3 A relação entre memória de trabalho e leitura

Um dos estudos pioneiros em descrever a relação entre MT e leitura é Daneman e Carpenter (1980). Para as autoras, as diferentes capacidades de MT que os indivíduos possuem levam a diferenças na habilidade de compreender o que é lido.

De acordo com Daneman e Carpenter (1980), a capacidade de MT tem influência importante na compreensão da leitura. Para as autoras, um bom leitor difere de um mau leitor porque consegue suprimir as interferências que surgem ao ler. Algumas das interpretações feitas durante a leitura podem ser deixadas para segundo plano se não forem relevantes para aquele momento. Enquanto que o mau leitor, além de ter menos eficiência de processamento, ainda não conseguirá suprimir as interferências que aparecerem. Somado a isto, o bom leitor terá mais capacidade para

armazenar informações intermediárias e o produto final, além de ser capaz de manter a informação na MT por mais tempo já que não precisará consumir toda a capacidade do sistema, ao contrário do mau leitor.

Daneman e Carpenter (1980) partem do mesmo princípio que guia outros pesquisadores (HEITZ & ENGLE, 2007; KANE et al., 2007; UNSWORTH & ENGLE, 2007): a MT é importante para a compreensão da leitura, mas também é importante levar em conta a natureza das diferenças individuais.Para elas, é processado e armazenado na MT o produto de processos como a leitura, por exemplo. Ao ler, o sujeito precisa armazenar informações semânticas, pragmáticas e sintáticas do que está lendo e utilizá-las para analisar e integrar informações subsequentes. Por outro lado, Daneman e Carpenter (1980) também ressaltam que a informação pode se perder da MT através da interferência ou da própria limitação do sistema. A interferência, por sua vez, pode acontecer quando outras informações competem por ativação até que a capacidade da MT seja excedida.

A troca entre processar e armazenar parece, para Daneman e Carpenter (1980), uma fonte importante para as diferenças individuais na compreensão da leitura. Para elas, o bom leitor tem processos mais eficientes e automatizados, o que permite mais capacidade para armazenar e manter a informação. Com o propósito de verificar as funções já mencionadas da MT, as pesquisadoras elaboraram um teste de reading span com as mesmas características do digit span10 e word span11, cujo objetivo era que o participante lesse uma série de frases e lembrasse da última palavra de cada frase. O número de frases era aumentado gradativamente e o resultado seria o maior número de frases que o sujeito conseguisse ler e lembrar da última palavra em cada uma delas, de maneira que seria esperado dos bons leitores um melhor desempenho ao compará-los com os maus leitores, supondo que eles utilizariam menos sua capacidade de processamento (DANEMAN e CARPENTER, 1980).As tarefas de span, segundo Daneman e Carpenter (1980), são importantes porque o que elas demandam do participante é compatível com as características da MT. Isso porque o tempo que as frases ficam na tela é muito curto, somente o suficiente para serem lidas em velocidade

10 Tarefa usada para medir a capacidade da MT em armazenar números 11 Tarefa usada para investigar a compreensão leitora

considerada regular, aproximadamente 5 segundos. Ao terminar de ler uma frase, outra aparece na tela logo em seguida, de forma que o participante não tenha tempo de repetir a última palavra lida. Assim, a capacidade da MT estaria diretamente relacionada com a quantidade de informação que o participante seria capaz de reter, pois para a acomodação destas informações seria preciso utilizar a capacidade de processar e armazenar.

Em suma, Daneman e Carpenter (1980) apresentam a relação entre memória de trabalho e leitura como um aspecto diretamente ligado à eficiência no processamento. Para elas, o que difere o desempenho entre o bom e o mau leitor é justamente a capacidade de processar o que lê, a eficiência que permite a MT ter mais fluidez para realizar as tarefas requeridas.

Seguindo este mesmo raciocínio, porém baseando-se no modelo de MT proposto por Baddeley (2012), Wang e Gathercole (2013) constataram que as crianças com dificuldade de leitura têm desempenhos ruins tanto em atividades que envolvem armazenamento fonológico, quanto em medidas de span verbal. Uma possibilidade de explicação para estes déficits é o mau funcionamento da alça fonológica da MT, que inclui déficits no armazenamento verbal e em atividades mais complexas que envolvam armazenamento e processamento. Uma segunda possibilidade para o desempenho ruim em atividades de span verbal de crianças que têm dificuldade de leitura seria déficits também no executivo central, já que devido a sua natureza de domínio geral, as dificuldades das memórias das crianças podem envolver tanto material verbal quanto não-verbal.

Para tanto, Wang e Gathercole (2013) realizaram um teste para checar a hipótese de que crianças com dificuldade de leitura teriam déficit no executivo central ao combinar dois métodos diferentes para avaliar a capacidade executiva. As pesquisadoras submeteram crianças com e sem dificuldade de leitura às atividades do AWMA (Automated Working Memory Assessment), uma bateria de testes automatizada que inclui atividades de memória verbal e visuoespacial tanto simples quanto complexas. A validade dos testes tem mostrado eficácia para grupos de crianças por distinguir os componentes da MT determinados por Baddeley e Hitch (1974) – o executivo central, a alça fonológica e o esquema visuoespacial. Além das atividades com o AWMA,

também foi proposto às crianças com dificuldade de leitura uma dupla tarefa coordenada, cuja proposta era lembrar várias sequências de números apresentadas na tela e na outra atividade seria avaliada a capacidade da criança de reagir a diferentes direções em que uma flecha poderia ser lançada na tela do computador.

O AWMA contabiliza seus resultados automaticamente e, quando o participante começa a errar as respostas, a quantidade de chances diminui até que o programa encerre a partida. Já as crianças submetidas à dupla tarefa coordenada tinham suas pontuações contadas de acordo com os acertos na posição dos números em cada sequência lembrada e nas posições corretas para o lançamento de cada flecha. A partir dos resultados, foi possível observar que em ambas as propostas, as crianças com dificuldade de leitura tiveram seus desempenhos comprometidos quando a atividade envolvia o executivo central. Os resultados que elas obtiveram no AWMA foram inferiores ao resultado das crianças que não tinham dificuldade em ler; e para a dupla tarefa coordenada o resultado foi ainda mais baixo, concluindo que a combinação de duas atividades de demanda cognitiva compromete o desempenho do executivo central tanto quanto esperado (WANG e GATHERCOLE, 2013).

Há estudos que se dedicam a usar testes para investigar a habilidade leitora de crianças em fase escolar, como Mascarello (2016), por exemplo, que se propôs a estudar as relações entre memória de trabalho e aprendizagem da leitura na infância, procurando desenvolver uma intervenção pedagógica que pudesse conduzir ao aumento da capacidade da memória de trabalho e avaliar a eficácia da intervenção.Em sua investigação, a intervenção pedagógica no incremento da capacidade de memória de trabalho proposta ao grupo experimental foi positiva, porque permitiu melhor desempenho na aprendizagem da leitura em comparação ao grupo controle.

Nesta mesma linha, Fujii (2015) buscou investigar a relação entre memória de trabalho e competência leitora em crianças do terceiro ano do ensino fundamental, procurando entender em que medidas essas variáveis estão relacionadas. Em seus resultados, Fujii (2015) não encontrou correlações significativas entre memória de trabalho visuoespacial e a competência leitora. Os resultados evidenciam que a relação existente entre memória de trabalho e leitura, pelo menos no caso dos participantes do estudo realizado em 2015, encontra-se presente mais fortemente nos processos que

envolvem a alça fonológica, quando diferenças cognitivas de ordem mais geral são controladas. Este estudo transversal realizado por Fuji (2015) serviu de baseline para a condução da presente pesquisa, de caráter longitunal, que também se propõe a investigar a relação entre memória de trabalho e competência leitora no mesmo contexto.

Nouwens, Groen e Verhoeven (2017), por sua vez, trouxeram o mesmo questionamento inicial de Daneman e Carpenter (1980). Para eles, a MT é um preditor da compreensão leitora para adultos e crianças e varia de indivíduo para indivíduo, e é importante discutir se estas diferenças são explicadas de forma mais clara pela capacidade de armazenar ou de processar da MT.

Para tanto, Nouwens et al. (2017) esclarecem que sua definição de “compreensão leitora” é o resultado de uma combinação complexa de processamentos que inclui vocabulário, sintaxe, decodificação e semântica e que a MT tem grande valor preditivo sobre a leitura. Este valor é, inclusive, maior que as medidas que somente avaliam a capacidade de armazenamento, de maneira que fica evidente a capacidade de processamento advinda das tarefas de MT como fator importante para explicar a variação que existe na compreensão leitora.

Nouwens et al. (2017), assim como Daneman e Carpenter (1980), reforçam que a MT é um construto de domínio específico. O estudo realizado por Nouwens et al. (2017) mostrou que a capacidade de processamento da MT é mais importante para explicar a variação na compreensão da leitura que a capacidade de armazenar. Mais especificamente, o estudo apontou que a capacidade de armazenamento semântico somada à capacidade de processamento pode explicar a diferença na compreensão da leitura.

Para os autores, o armazenamento semântico é um bom preditor individual de compreensão leitora e se sobressai frente ao armazenamento fonológico. Isto significa que o armazenamento semântico e os componentes de processamento da MT são os aspectos mais importantes para explicar as variações individuais na compreensão leitora de crianças.

A capacidade de armazenamento e processamento da MT como preditor de leitura é uma marca individual. Afinal, considerando que o desenvolvimento da leitura não é igual para todas as crianças, a relação desta aprendizagem com os sistemas de

memória também tende a não ser. Daí vem a motivação para este estudo, que analisaa importância da relação MT e leitura, destaca o caráter flexível e capacidade da MT ao longo da infância e considera os aspectos sociais e neurobiológicos envolvidos na leitura. Os aspectos metodológicos que conduziram esta pesquisa serão apresentados no capítulo a seguir, incluindo o contexto em que este estudo está inserido e os testes aplicados aos participantes.

CAPÍTULO 3