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CAPÍTULO 2: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 MEMÓRIA DE TRABALHO E LEITURA

2.2.1 Conceito e modelos de memória de trabalho

A habilidade única que os seres humanos possuem de desenvolver amplamente o conhecimento sobre sua língua nativa foi atribuída a capacidades inatas especializadas em processamento e aprendizagem de linguagem (CHOMSKY, 1957, apud GATHERCOLE e BADDELEY, 1993). Todavia, o uso deste conhecimento linguístico em atividades diversas que realizamos ao longo da vida é mediado, também, por fatores não-linguísticos como a memória de trabalho (MT), por exemplo, cuja influência na compreensão da linguagem e da leitura é o foco deste capítulo.

O uso ativo da memória e o percurso das informações dentro dela tem sido motivo de investigações há bastante tempo. Com o desenvolvimento da psicologia cognitiva, a hipótese de que a memória era um sistema único foi sendo enfraquecida e as atenções passaram a se voltar para a ideia de que este sistema seria de fato mais complexo (BADDELEY et al., 2009). Dois, três ou mais componentes poderiam estar envolvidos, e uma visão mais ampla que a de um sistema singular foi aceita na década de 60, como ilustra a Figura3, apresentando uma abordagem de memória baseada no processamento da informação (BADDELEY et al., 2009).

Embora a abordagem da memória baseada no processamento da informação tenha sido aceita na década de 60, é hoje bastante questionada. Isso porque a abordagem presumia que a informação entraria na memória a partir do ambiente e seria recepcionada pela memória sensorial. Em seguida, a informação ficaria temporariamente armazenada na memória de curto prazo até que fosse transferida para a memória de longo prazo.

Alguns dos questionamentos feitos à abordagem representada na Figura 3diziam respeito ao aspecto “estático” que a palavra “armazenamento” atribui a um fenômeno tão cheio de processos. Tais questionamentos referiam-se à quantidade de memórias apresentada neste modelo para processos tão simples, além de também questionarem o fato de a informação seguir um fluxo tão simplório e linear para chegar à memória de longa duração.

Na mesma década, ainda concebendo o recebimento da informação pelo ambiente e sendo primeiramente recebida pela memória sensorial, Atkinson e Shiffrin (1968) apresentaram o modelo modal de memória, propondo que a memória de curta duração funcionaria como uma memória de trabalho.Mesmo apresentando um modelo novo, ainda havia muitos pontos em comum com a abordagem de memória baseada no processamento da informação, conforme ilustra a Figura 4.

O modelo modal apresenta a informação sendo fornecida pelo ambiente e processada por um grupo de registros que compõem a memória sensorial, que podem ser a visão, audição, olfato, tato ou paladar. A informação seguiria para um armazenamento de curto período e este seria a parte importante do sistema. Seria neste ponto que aconteceria a atuação da memória de trabalho, fazendo a seleção das informações que seriam retidas ou não, um estágio responsável pela operação global do sistema, incluindo as repetições conscientes e tomadas de decisões, por exemplo, e também se comunicando com o lado exterior (output) e com a memória de longo prazo.

Certamente o modelo modal também enfrentou críticas. Uma das fragilidades que apresentava era o fato de o armazenamento de curta duração ter a maior importância no processo com as funções que foram atribuídas a ele, como transferir informações para dentro e fora da memória de longo prazo e ser um componente que controla o trabalho geral. Isso não explicaria o fato de pacientes que apresentavam limitações graves na memória de curto prazo, por exemplo, poderem desempenhar atividades profissionais com bons resultados, de acordo com Vallar e Shallice (1990 apud BADDELEY et al., 2009).

A partir de então, conceituar a memória de curto prazo pareceu uma atividade mais complexa. Foi em 1974 que Baddeley e Hitch passaram a questionar a função que teria o(s) sistema(s) que sustenta(m) a memória de curta duração, supondo que havia

pelo menos um. Para Baddeley e Hitch (1974), bloquear este possível sistema deveria causar uma interferência direta no aprendizado de longo prazo e em atividades de raciocínio e compreensão. A partir deste ponto, eles concluíram que seria necessário manter a memória de curta duração ocupada durante os testes que incluíam raciocinar, compreender e aprender ao mesmo tempo.

Baddeley e Hitch (1974), então, propuseram tarefas que incluíam sequências de dígitos (elas poderiam variar em extensão)e que pudessem ocupar o sistema de armazenamento por algum tempo. Simultânea a esta atividade, eles inseriram uma atividade de raciocínio por presumirem que realizá-la envolveria também este sistema de capacidade limitada. O experimento consistiu em pedir aos participantes que repetissem continuamente uma sequência de até 8 dígitos ao mesmo tempo em que resolviam uma atividade de raciocínio lógico.

O resultado do experimento surpreendeu Baddeley e Hitch (1974). À medida que os participantes recebiam uma sequência maior de dígitos, o tempo de resposta para a atividade concomitante aumentava, mas mesmo com mais tempo, a taxa de erros permaneceu constante, cerca de 5%. Com essa taxa de erros, os pesquisadores concluíram que o desempenho dos participantes poderia continuar com sucesso, enquanto que o tempo para processar as informações parecia estar comprometido de alguma forma.

A partir de resultados de testes como o que foi descrito, Baddeley e Hitch (1974) elaboraram um modelo complexo no qual propuseram a memória de trabalho (MT) como um componente para descrever o sistema de curto prazo que é envolvido no processamento e armazenamento temporários de informação, além de mencionarem o papel relevante da MT no suporte a uma gama de atividades cognitivas complexas que incluem compreensão de línguas, aprendizado de longo prazo e atividades aritméticas mentais, por exemplo. Para eles, a MT é um espaço de trabalho cujas funções são armazenar e controlar o processamento do que armazena em um sistema contínuo, de capacidade limitada e fluxo constante de informações.

Baddeley e Hitch (1974) apresentaram três subcomponentes da memória de trabalho, que estão em contato constante para que o fluxo de informações seja permanente, como ilustra a Figura5.

No modelo de memória de trabalho proposto na Figura 5, cada componente identificado por Baddeley e Hitch possui uma função determinante: (1) o controle executivo - o mais importante, segundo os autores - é responsável por regular o fluxo de informação na memória de trabalho, recuperar as informações de outros sistemas de memória (como a de longo prazo, por exemplo), processá-las e armazená-las, além de transmiti-las para outras partes do sistema cognitivo. Este componente da memória de trabalho também é responsável por alocar as informações recebidas pela alça fonológica e pelo esquema visuoespacial e recuperar o conteúdo da memória de longo prazo. Sabe- se, contudo, que os recursos usados pelo controle executivo em suas várias funções têm capacidade limitada.

Os outros dois componentes do modelo suplementam o controle executivo e são considerados sistemas escravos ou subsistemas, eles são especializados em processar e manter temporariamente as informações. A (2) alça fonológica, cuja função é armazenar material verbal e acústico e reter a informação fonológica, funciona como uma memória auditiva, ela é um subsistema especializado no armazenamento de material verbal, como a repetição mental de uma informação falada, por exemplo. Todavia, o material guardado por ela desaparece com o tempo, e atividades de reativação da memória funcionam para trazer de volta as representações que haviam desaparecido. Essas atividades de reativação também são úteis para informações não- fonológicas, como palavras impressas ou gravuras, de forma que elas também possam ser armazenadas. O processamento de palavras impressas e gravuras é, nesse sentido, contrário do discurso falado, em que há acesso direto ao armazenamento sem a necessidade de atividades de reativação, por exemplo. Por fim, o terceiro

subcomponente da memória de trabalho é o (3) esquema visuoespacial, responsável por processar e manter a informação de natureza espacial e/ou visual. Este componente é o subsistema especializado em processar e armazenar informações espaciais e visuais, e as informações verbais que são decodificadas em forma de imagens, como palavras impressas ou sequências de imagens, por exemplo. Pesquisas mostram que este componente está envolvido tanto em reter informações visuais, quanto em gerar e manter imagens, já que sua natureza é primordialmente espacial (GATHERCOLE e BADDELEY, 1993).

Apesar da inegável importância do modelo proposto por Baddeley e Hitch em 1974, o conceito de MT continuou a ser modificado ao longo dos anos de modo a torná- lo menos restrito e até mesmo na tentativa de buscar explicações para o que ainda parecia inexplicado. As críticas aos modelos mais reduzidos ou que representavam o funcionamento da MT de uma forma mais limitada permitiram apresentar definições novas para a MT.

Ericsson e Kintsch (1995) propuseram, então, a expressão MTLP8 (memória de

trabalho de longo prazo) porque, para eles, a MT precisava incluir um mecanismo que fosse baseado na habilidade de armazenar na memória de longo prazo. Além, claro, do armazenamento temporário de informação, conhecido como MTCP9 (memória de trabalho de curto prazo). Para eles, a MTLP se distinguiria da MTCP pela duração do armazenamento e pela necessidade de ter acesso à informação armazenada na memória de longo prazo.

Até então, Ericsson e Kintsch (1995) pareciam ver o funcionamento da MT como um sistema mais distinto que os descritos anteriormente. Para eles, a distinção entre memórias de curto e longo prazos feita por Atkinson e Shiffrin (1968) passaria a ser um aspecto central maior, como se fosse o centro maior de processamento de informação. Com essa distinção, Ericsson e Kintsch (1995) esperavam explicar que a memória recente permitiria que o sujeito usasse a memória de longo prazo como uma extensão eficiente da MTCP, desde que houvesse treino suficiente. A compreensão

8 Memória de trabalho de longo prazo é a tradução direta de LT-WM (Long-term working memory). 9 Memória de trabalho de curto prazo é a tradução direta de ST-WM (Short-term working memory)

deles para MT iria além de um simples armazenamento temporário na memória de curto prazo.

Ericsson e Kintsch (1995) defenderam que, para resolver tarefas de alta demanda cognitiva, o sujeito precisaria ter acesso a muitas informações. Por exemplo, ler uma frase de um texto requer acesso às informações necessárias para não ter problemas com referências a pronomes, bem como também requer conhecer o contexto para integrar coerentemente informações apresentadas ao que foi lido anteriormente. De acordo com a proposta de Ericsson e Kintsch (1995), seria preciso haver algum fenômeno a mais, além do armazenamento temporário na memória de curto prazo. Para eles, o armazenamento na memória de longo prazo é bastante limitado, e na memória de curto prazo não é confiável. Daí a necessidade de procurar fenômenos que justificassem haver mais “espaço” na memória do que os citados nos modelos que eles trabalharam para modificar.

Em se tratando de procurar mais “espaço" para armazenamento e processamento da memória, Baddeley (2000) sentiu-se desafiado a expandir seu próprio modelo da MT de três componentes. Para ele, havia a necessidade de explicar a interação da MT com a memória de longo prazo porque já era sabido que o tempo de armazenamento na memória de trabalho era muito curto e era necessário mais um componente no modelo para explicar conflitos do tipo “como é possível lembrar de sete ou mais dígitos ou até mesmo lembrar do mercadinho próximo à sua casa que marcou sua infância?” (BADDELEY, 2000).

Assim, na tentativa de justificar a vividez das nossas lembranças e a interação da MT com a memória de longo prazo, Baddeley (2000) propõe um novo elemento para a MT: o buffer episódico, um componente capaz de conectar os subsistemas já descritos da MT, sendo ativo e controlado pelo executivo central. Baddeley, portanto, revisa seu próprio modelo e propõe um melhoramento do que foi exposto em 1974, conforme está representado na Figura 6.

Nesta nova representação, Baddeley (2012) propõe uma ligação entre a MT e a memória de longo prazo, de maneira que a informação pode tanto ir da MLP para a alça fonológica ou esquema visuoespacial, quanto o contrário. Ele representa a MT como uma série de sistemas fluidos, e a MLP com sistemas cristalizados. Além disso, o buffer episódico atua neste modelo como um quarto componente, integrando informações dos componentes visual, verbal e da MLP.

Engle (2004), por sua vez, questionando o modelo proposto por Baddeley e Hitch (1974), foca na função da MT, ao invés de analisar sua estrutura. Contudo, ele inicia sua discussão assumindo que quaisquer definições dadas à MT serão advindas do modelo de Baddeley e Hitch (1974).

Para Engle (2004), a MT é um construto de domínio geral e importante para as funções cognitivas complexas. Em sua definição, a MT não possui sistemas escravos, o executivo central é o responsável por todas as atividades, como o controle e o foco de atenção, por exemplo. Ele enfatiza que atividades como decodificação e manutenção da informação podem ser desenvolvidas a partir de traços da memória de longo prazo, mas não são separadas e mantidas em estruturas de domínios específicos.

A discussão conduzida por Engle (2004) apresenta a MT sucintamente definida como: (a) um sistema de armazenamento de prazos curtos que podem ter vestígios da

memória de longo prazo; (b) processos de reverberação e ativação e manutenção da ativação; e (c) atenção. Ele dirige seu foco quase que exclusivamente para a MT e a memória de curto prazo por acreditar que há um armazenamento único na memória composto por elementos que possuem vários níveis de ativação. Para Engle (2004), a memória de curto prazo é um tipo de memória utilizada para reter informação por um tempo curto e possui um elemento da MT, uma espécie de “espaço de trabalho” usado para manipular a informação.

Engle (2004) entende a MT como uma interação entre a memória de curto prazo e o executivo central, negligenciando a existência da alça fonológica e do esquema visuoespacial, como definido por Baddeley e Hitch (1974).A MT seria um construto único, de domínio geral e responsável por direcionar a atenção, e o executivo central seria o responsável por todos os processos envolvidos na memória.

Em seguida, Cowan (2008) vem contribuir com os modelos já apresentados, mas antes esclarece seus conceitos para as memórias de curto e longo prazos. Para ele, a memória de longo prazo é um grande estoque de conhecimento e o local onde ficam gravados os eventos que já aconteceram; e a memória de curto prazo está, para ele, relacionada à memória primária que, por sua vez, é um termo utilizado também por Atkinson e Shiffrin (1968), para referirem-se à capacidade que a mente tem de manter uma quantidade limitada de informação de maneira acessível e temporária.

Cowan (2008) define MT como um sistema não separado totalmente da memória de curto prazo. Para ele, MT é um termo utilizado para explicar como planejar e conduzir comportamentos. Cowan (2008) esclarece que sua definição para MT inclui o uso da memória de curto prazo, e o que difere sua definição das demais feitas por outros pesquisadores é o fato de que ele não limita o termo memória de trabalho somente ao uso de atenção dirigida à memória de curto prazo.

A partir da definição proposta por Cowan (2008) para MT, como ele mesmo observou, o trabalho em definir MT não deveria girar em torno das diferenças de uso dos termos que compõem o sistema, mas sim do funcionamento do construto. Uns modelos com mais componentes, outros com menos, mas concordando que a MT se correlaciona com aptidão intelectual e, principalmente, inteligência fluida, mais do que as medidas de memória de curto prazo. Cowan (2008) sustenta que a diferença

terminológica entre MT e memória de curto prazo pode parecer confusa porque há muitos pesquisadores usando definições distintas.

Para Cowan (2008) é preciso, assim como para Baddeley e Hitch (1974), aceitar a definição de que a MT é um sistema com mais de um componente, mas sua categorização desses componentes seria: (1) armazenamento na memória de curto prazo, incluindo sua ativação e o foco de atenção e; (2) os processos do executivo central que manipulariam as informações armazenadas. Cowan (2008) entende que tanto a alça fonológica quanto o esquema visuoespacial definidos por Baddeley e Hitch (1974) seriam dois dos vários aspectos da memória ativada, e o buffer episódico (BADDELEY, 2003) seria o que Cowan (2008) define como foco de atenção. Sua definição neste aspecto, portanto, se aproxima da definição dada por Engle (2004), porque valoriza o controle da atenção utilizado tanto para armazenar quanto para processar as informações.

Em 2012, Baddeley vem reforçar a ideia de que a memória de trabalho é um construto de multicomponentes, capacidade limitada e responsável por armazenar as informações temporariamente e processá-las. Apesar de um modelo mais moderno, Baddeley ainda mantém-se firme em alguns conceitos. Para ele o executivo central continua sendo o componente mais complexo da MT, sendo responsável pelo armazenamento, tomada de decisões e controle de atenção. Além, claro, de não abandonar a teoria do homúnculo, uma abordagem baseada na existência de um pequeno homem que seria responsável por realizar todas as atividades que não fossem da competência dos sistemas escravos. Baddeley (2012) explica que a teoria do homúnculo foi criticada, mas ele a mantém porque acredita que ela pode ser útil se for usada da forma devida. Segundo o autor, o homúnculo não foi pensado como um componente que daria todas as respostas às dúvidas acerca do funcionamento da MT. Pelo contrário, ele foi pensado como um marco de que há muitas questões que ainda requerem explicações.

Por fim, Baddeley (2012) acredita que os modelos de MT apresentados até agora são consistentes quando focam no controle executivo e aceitam a contribuição de sistemas adjacentes, como os responsáveis pelo processamento das informações fonológicas e visuoespaciais. Ele sustenta que sua percepção acerca da MT mudou

pouco desde que desenvolveu seu primeiro modelo, acrescentando apenas o buffer episódico, mas isso não significa que não exista mais margem para especulação. É possível, segundo ele, que ainda surjam dúvidas difíceis de serem resolvidas, justamente porque investigar a MT é um campo vasto e que potencialmente oferece espaço para muitas perguntas.

Para fins desta pesquisa, é no modelo desenvolvido por Baddeley (2012) que nos apoiamos. Justificamos a escolha com base em três aspectos importantes: (1) é o modelo mais influente, pois foi a partir dele que a discussão sobre MT teve início e todos os demais modelos ganharam força; (2) Baddeley considera o componente fonológico entre seus subsistemas (executivo central, esquema visuoespacial, alça fonológica e buffer episódico) e esta interface será um aspecto importante para a discussão de nossos dados em relação ao processamento da leitura e, (3) a maioria das tarefas aplicadas aos participantes de pesquisas são desenvolvidas a partir da noção deste modelo de processamento e armazenamento simultâneo de informações.