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CAPÍTULO III A MÍMESE E OS PROCESSOS DE

1. A RELAÇÃO MÍMESE-MUTHOS

À primeira vista, o conceito de muthos36 apresenta-se como a disposição de fatos

em sistema. Sistema aqui tem o sentido por os fatos em uma disposição. Essa organização dos fatos, segundo Ricoeur, assemelha-se ao que a Poética apresenta em sua composição conceitual, como arte de “compor” as intrigas. Neste caso, ele se lembra do uso do termo muthos na Poética, quando aparece como complemento de um verbo que também quer dizer “compor”. Já mímese, aparece é descrita inicialmente como atividade de imitar ou representar. No entanto, numa observação de Tempo e Narrativa, ele chama a atenção para que se entenda a mímese a partir do seu sentido dinâmico, o de produzir a representação e transformá-la em obra representativa. Esta última dimensão da mímese, de transformação em obra representativa, assemelha-se ao que Ricoeur destaca em muthos - a relação que o seu conceito tem com o verbo “compor”. É a partir dessa aproximação com a composição que há relação entre mímese e muthos. Essa semelhança ele entende como “célula melódica” (Cf. RICOEUR, 1994, p. 57-58).

A parte da mímese que interessa é a que indica a representação da ação que se dá no seio da linguagem acompanhada de ritmos – como tragédia e canto. A representação da ação, que se reflete bem na célula melódica, é vista de maneira significativa por causa do papel importante que a ação tem na composição poética. A ação supera a maneira com que se valoriza o caractere. No caso da célula melódica (a composição), a ação é mais importante que o caractere porque se parte dela em direção ao personagem. Na Ética de Nicômaco, o personagem precede à ação, ou seja, o personagem é quem dá sentido à ação. Mas, na Poética, a composição da ação é quem rege a ética. Neste caso, a ética resulta do sentido que a ação representa e é secundária em relação à ação. Dessa forma, o próprio Ricoeur se ocupa de descrever o que essa relação mímese-muthos representa enquanto célula melódica. Ela é percebida na prioridade da ação em relação aos caracteres e aos personagens na composição. Assim que a ação recebe a primazia na composição ela assume o papel de objeto fundamental da representação ou imitação.

A subordinação do caráter à ação [...] sela a equivalência entre as duas expressões: “representação de ação” e “disposição dos fatos”. Se a ênfase deve ser colocada na disposição, então a imitação ou a representação deve ser de ação, mais que de homens (RICOEUR, 1994, p. 65).

O muthos parece ser o caminho encontrado por Ricoeur (Cf. 1994, p. 66) para entender melhor o problema da extensão do tempo na distentio animi agostiniana – tratado no tópico que aborda a temporalidade. Pontualmente, o muthos caracteriza- se por aquela disposição e sucessão de fatos e, neste mesmo sentido, ele se dá num caráter lógico dessa disposição, que pode ser chamada de “concordância”, caracterizada pela ideia de totalidade ou “todo”. A disposição ou sucessão de fatos exige exatamente ser antecipada por uma condição do todo, tendo em vista que a organização dos eventos pretende os momentos que iniciam, desenvolvem-se e depois chegam ao final, ou seja, têm começo, meio e o fim.

No caso do poema, as ações não são extraídas da experiência, mas dos efeitos dessa ordenação lógica, porque as experiências do poema não podem ser anteriores à ordem que as dará causa. Mas, na intriga, as ações têm uma extensão. Assim, o que se exige para que na tragédia a felicidade se torne infelicidade, ou o contrário disso, é exatamente a extensão, ou seja, o tempo. Porém, um tempo da obra, não do mundo, conforme Ricoeur (Cf. 1994, p. 67). Isso se percebe nas narrações da intriga, quando um personagem se ausenta durante o desencadeamento dos fatos. Assim que ele é solicitado na composição, ele se apresenta e não se quer saber o que ele fazia ou onde estava nos intervalos não contados da narração. Isso caracteriza que o tempo da obra é determinado nas sucessões.

Outra coisa que chama a atenção na narrativa da intriga poética é a possibilidade de ela ser ajustada à maneira de compreender a história, no modelo de história de Heródoto. Para Ricoeur (Cf. 1994, p. 69), da poesia expressa em versos e da história em prosa, diferenciando-se que a história conta o que ocorreu e o poema o que poderia ter ocorrido, o que importa é a disposição; ou seja, a narrativa da intriga. Não seria possível a inteligibilidade de uma obra, seja ela poema ou crônica, na ausência dessa organização de uma lógica própria.

Para dar mais consistência à aplicação da temporalidade, considera-se Agostinho na ideia de extensão do tempo na distentio animi, se levado em consideração que

aquela sucessão de eventos na “concordância” poderá ser confrontada com a “discordância” na tragédia, exceto na prática que se percebe cronologicamente; porque na tragédia, os eventos são ajustados para que essa discordância pareça ser concordante. É com o tempo da obra, necessário para a articulação dos eventos, que, por exemplo, acontece a inversão da fortuna ao infortúnio. Mas, no mundo prático: “o discordante arruína a concordância, não na arte trágica” (RICOEUR, 1994, p. 72).

Um entendimento interessante surge depois de ver essa análise sobre Aristóteles por parte de Ricoeur. Essa intemporalidade cronológica dos eventos deixada de lado em função de uma temporalidade da obra, mais adiante, auxiliará entender o tempo e os mundos suscitados por uma obra literária, tempo e mundo que ela põe diante do leitor que a acessa e que também leva um mundo consigo. Ao tratar neste trabalho das questões a respeito da referência, bem como o papel do leitor no processo interpretativo, será possível ver de forma mais prática essa maneira com que o tempo é compreendido.

Mímese e muthos assemelham-se pela proximidade que ambos têm com o verbo

“compor”. E isso acaba por conduzir a análise em direção ao que antecede à narrativa. Ricoeur (Cf. 1994, p. 77) pretende chegar à relação daquilo que ele entende fazer parte do “todo” – unificação do princípio, meio e fim – com aquilo que antecede à composição narrativa, ou seja, mímese I. Diante disso, importa descrever os ciclos miméticos para poder traçar uma compreensão da dinâmica da mímese.

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