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CAPÍTULO I DA FILOSOFIA DA VONTADE AO ENXERTO DA

2. HERMENÊUTICA ENXERTADA NA FENOMENOLOGIA

2.3 O CAMINHO PELA EXISTÊNCIA

O caminho da existência para entender um ser que na medida em que interpreta também compreende a si mesmo é entendida por Ricoeur como a via longa. Nesta via, ela não tem a pretensão de unificar a maneira com que as várias linhas de interpretação (como a exegese, a psicanálise, a hermenêutica da religião e a

hermenêutica filosófica) apresentam a existência. No entanto, a análise a partir da existência, apesar de não unificar os diversos métodos de interpretação, pretende demonstrar que no desenvolvimento de cada interpretação há uma maneira de ver o ser. Essa visão sobre o ser que cada uma delas apresenta é uma ontologia, separada uma das outras, mas ontologia. É por isso que, na medida em que se emprega uma compreensão da diversidade de sentidos, no caminho da semântica, há uma relação com experiência da existência humana levada à linguagem. Já a reflexão se torna cega caso não seja mediatizada pelo que Dilthey considera como “expressão nas quais a vida se objetiva” (Cf. RICOEUR, 1988, p. 19), percebida na coerência da história narrada. Nessa perspectiva, o cogito pode ser apenas reaprendido, pelo esforço para existir e pelo desejo de ser.

Na via da existência, à maneia heideggeriana, é necessário entender a leitura de Ricoeur da existência no desejo de ser. Antes, é necessário compreender o desejo de existir como ponto básico da passagem pela via psicanalítica freudiana. A interpretação dos sonhos e dos símbolos, presentes na psicanálise de Freud, pretende colocar a consciência como origem dos sentidos. Mas o inconsciente parece se manifestar como o lugar onde as significações mais antigas – arcaicas - se organizam (Cf. RICOEUR, 1988, p. 22). Nesse sentido, quando a psicanálise pretende levar o paciente à cura, ela o leva a retornar ao início do sentido do problema, ao inconsciente. Neste estágio, o paciente passa pela vontade de dizer sobre a origem dos problemas. Assim, ele extrai do inconsciente a simbologia que representa os problemas, mas uma simbologia que se manifesta na linguagem, no momento da fala do paciente. Para Ricoeur, a vontade de dizer é uma maneira de apresentar o desejo de ser (FRANCO, 1995, p. 44). A interpretação, depois dessa manifestação pela fala do paciente, entra no campo do símbolo e seu significado. Freud põe em debate a questão da significação e do desejo. Mas a pergunta que move esse debate é de como a significação é incluída na ordem da vida? De certa forma, isso indica que essa passagem da significação ao desejo caminha da reflexão à existência. Essa mudança da reflexão à existência pode ser notada quando entendemos que, assim que compreendemos as coisas, compreendemos a nós mesmos. Observa-se que, ao acessar um mundo, projetado pela linguagem, o sujeito é despertado à reavaliação de seu agir – parece ser o que a psicanálise faz ao trazer do inconsciente os símbolos da origem dos problemas psíquicos. Ricoeur

acredita que é nessa condição de levar os problemas psíquicos à linguagem que está o desejo de ser e o esforço para existir – o esforço implica uma energia e um dinamismo e o desejo, uma falta e privação (Cf. RICOEUR, 1988, p. 23).

Para entender a inclusão da significação à vida, a partir da reflexão à psicanálise, é preciso considerar que a passagem da reflexão (compreender os significados dos símbolos a partir do mundo da vida), para a questão da existência (ser a partir da compreensão desses símbolos), ocorre na interpretação do desejo. Pois assim que nos apropriamos do sentido de nossos desejos, compreendemos a nós mesmos. “Não posso hipostasiar esse desejo fora do processo de interpretação; ele permanece sempre ser-interpretado” (Cf. RICOEUR, 1988, p. 23).

A ideia fundamental que envolve o desejo, suscitado pela psicanálise, está no seu caráter antecedente ao cogito cartesiano, o que Ricoeur vê como uma “arqueologia do sujeito”. É nela que a existência, como desejo de ser, se revela, num regresso ao arcaico (Cf. RICOEUR, 1988, p. 23). Esse regresso ocorre quando o sujeito, submetido ao método psicanalítico, volta às origens mais antigas dos seus problemas. Ao regressar, ele encontra os sentidos de seu problema, na organização dos símbolos primários do problema. Lá, ele encontra a si mesmo logo que compreende a origem do problema.

Duas fontes hermenêuticas são analisadas ainda, a oferecida por Hegel e a que a fenomenologia da religião dispõe. Analisando a fenomenologia de Hegel, Ricoeur entende que o caminho para a existência é feito num oposto ao de Freud. Na psicanálise há um retorno ao arcaico, às origens dos problemas nos sujeito, como possibilidade de encontrar o ser pela compreensão. Porém, Hegel trabalha sua filosofia a partir de um movimento sucessivo de figuras da consciência. Esse movimento passa por um progresso que resulta em uma síntese. No entanto, essa síntese ocorre quando a consciência busca fora dela, em figuras objetivas do mundo onde vive o sujeito, sentido para as anteriores. No movimento, as figuras da consciência encontram seus sentidos numa etapa posterior, nas figuras seguintes – as do mundo exterior ao sujeito – Todavia, na síntese, essas etapas anteriores do movimento são abolidas diante da síntese (Cf. RICOEUR, 1988, p. 23-24).

de coisas objetivadas das instituições, dos monumentos e das obras de arte o movimento e a verdade. Dessa forma, é possível entender que a consciência busca, fora dela, os sentidos das coisas (Cf. FRANCO, 1995, p. 202). Quando a consciência realiza essa busca dos sentidos das figuras por outras figuras, indica que ocorre interpretação.

Para Ricoeur a interpretação “é a própria dialética das figuras por meio do que o sujeito é puxado para fora [...]” (RICOEUR, 1988, p. 24), na qual monumentos culturais e instituições, por meio dessa interpretação, produzirão uma síntese. Assim, a consciência é levada para adiante de si, em direção a um sentido. Com isso, a dialética (o movimento das figuras de forma sucessiva até ocorrer uma síntese) seria uma maneira dessa projeção, em direção a um sentido, seguir eliminando etapas e se consolidando na seguinte. É nesse sentido, das significações vindas do mundo, inicialmente fora da consciência e onde a vida está objetivada, que se pode constatar a existência pela interpretação. Nesse caso os sentidos já estão lá, no mundo, de forma oculta, só necessitando ser interpretado. Observa-se que o sujeito, passa a ter uma consciência de si pelas coisas fora de si, encontradas à frente. Esse é um movimento contrário ao de Freud, que faz um retorno às origens

(Cf. FRANCO, 1995, p. 203).

A contribuição da fenomenologia da religião parte da reflexão sobre o sagrado, como foi apresentado por Mircea Eliade. Rito, mito e crença são formas de comportamento, linguagem e sentimentos nos quais se visa um sagrado. Bem diferente do que a reflexão encontrou na psicanálise e em Hegel. Na fenomenologia da religião, o sagrado se encontra em um nível simbólico superior aos demais. Porque no sagrado está o princípio e as coisas futuras, representadas pelo alfa e

omega. Neste sentido, o sagrado é o símbolo da existência. Quando o ser humano

busca, pelos ritos de uma crença, o sentido da vida, ele o busca fora de si, em algo que representa passado e futuro numa única coisa. Essa busca pelo sentido da vida se direciona àquele que tem em seu poder a existência. O sagrado é algo que antecede a tudo que existe e está além daquilo que a consciência é capaz de projetar, como se faz aos objetos (Cf. RICOEUR, 1988, p. 24).

A compreensão nos e pelos símbolos do sagrado leva o homem a desapossar-se de si. Por esse desapossamento entende-se que o sagrada, por ser impossível ser

alcançado ou ser conhecido completamente pelo homem, é “totalmente outro” (Cf. FELTES, 2001, p. 122). Nesse outro não há nada de mim, apenas é possível haver uma esperança de se conhecer. Então, quando nos ritos e nos textos sagrados o homem é interrogado sobre a sua existência, ao tentar responder, ele se esforça para existir por um totalmente outro. Observa-se que a linguagem ainda é o meio pelo qual ocorre a interpretação. Neste caso, os ritos e os textos sagrados é que se apresentam como linguagem (Cf. RICOEUR, 1988, p. 25).

Ricoeur acredita ter sido a tentativa de Heidegger, na segunda parte de Ser e tempo, unificar as hermenêuticas que surgem: da perspectiva da psicanálise, na dependência da arqueologia do sujeito; da fenomenologia do espírito na finalidade última das figuras; da fenomenologia da religião, pelos signos do sagrado (Cf. RICOEUR, 1988, p. 25). De início, a questão parece não demonstrar resolução satisfatória, se considerada uma unificação dessas hermenêuticas numa única forma de interpretação, mesmo pelo caminho da existência. No entanto, há um caminho pelo qual todas elas entram e que poderia ser ele o ponto de partida para a resolução da questão. É que entre essas formas hermenêuticas se encontra um espaço comum de manifestação. Esse espaço é o plano linguístico. Neste caso, a hermenêutica não poderia ser mais que uma hermenêutica dos símbolos porque “são finalmente os símbolos mais ricos que asseguram a unidade dessas múltiplas interpretações; só eles possuem todos os vetores, regressivos e prospectivos, que as diversas hermenêuticas dissociam” (RICOEUR, 1988, p. 25).

A discussão acerca de uma hermenêutica enxertada numa fenomenologia foi capaz de trazer à luz um aspecto fundamental, a base para se entender que há uma hermenêutica do símbolo e que ela foi enriquecida com outros enxertos, os da ação e os da temporalidade. No entanto o que podemos considerar até agora é que os símbolos mantêm em sua estrutura coisas primárias que designam outras secundárias. É nessa condição de acréscimo de sentidos que entra toda a possibilidade de interpretação, na qual o sentido é múltiplo.

Até esse momento, apresentou-se a transição do problema da fenomenologia para o hermenêutico, considerando a compreensão do sujeito e sua existência. É importante perceber que Ricoeur acessa a ideia da compreensão pela via da linguagem, porque sua consideração em relação à linguagem é de que ela está no

plano em que a compreensão é exercida (Cf. RICOEUR, 1988, p. 11). Isso torna viável prosseguir com a sequência de análise da linguagem e de como ela chega ao debate, estendendo essa reflexão até que seja possível envolve-la com mais clareza na influência da mímese sobre a hermenêutica ricoeuriana.

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