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CAPÍTULO II HERMENÊUTICA E TEMPORALIDADE

3. A REFLEXÃO SOBRE TEMPO E EXPERIÊNCIA TEMPORAL

3.3 HISTÓRIA E AÇÃO COMO EXPERIÊCIA DO TEMPO

3.3.1 Pela via da história

Na tese de Ricoeur sobre o tempo, ele leva em conta que na atividade do historiador, à medida que desenvolve seu trabalho, o faz por construções de parâmetros temporais que o método e o objeto historiográfico lhe proporcionam. A questão da temporalidade está no desencadear da narração histórica. É claro que a compreensão sobre a história não bastará para concluir essa tese da proposição do tempo. Para que a narração da história corresponda melhor aos interesses do estudo sobre a temporalidade, o entendimento dela deve somar-se ao entendimento sobre a ação envolvida numa vida em comunidade, no mesmo mundo contado pela história. Isso porque pelo entendimento amplo de “mundo da ação” entende-se o mundo que envolve o sujeito da ação, onde se dão as configurações narrativas. Na verdade, o saber histórico não deixará seu compromisso com o rigor científico, mas ele terá procedência no processo narrativo (Cf. RICOEUR, 1994, p. 134).

O estudo da história, em relação à narração e ao tempo, irá desencadear sua inserção na vida por meio da ação, de forma que a capacidade de refiguração do tempo provoque uma erupção do jogo sobre a questão da verdade em história (Cf. RICOEUR, 1994, p. 135). Se o tempo na história, segundo Ricoeur (Cf. 1994, p. 102- 103), passa pela ideia de acontecimentos reunidos, o uso do acontecimento submete-se à conexão entre ele e a narrativa por meio da intriga. O acontecimento tem sua inteligibilidade derivada dessa conexão. Então, é preciso entender como a intriga coopera com a inteligibilidade do acontecimento.

Por meio da organização narrativa, a intriga expõe determinados eventos ou incidentes. Essa organização torna um texto lógico, dando aos acontecimentos uma

totalidade organizada e inteligível. É graças a ela que as partes objeto, meio e modo tornam-se um todo coerente. O tempo não se apresenta com as descrições cronológicas, como se espera da concepção de passagem do tempo. Ricoeur o vê numa estrutura aristotélica – na organização e sistematização dos acontecimentos feitos na intriga, dispondo os eventos de forma lógica. Essa disposição lógica é que torna a história capaz de se apresentar com inteligibilidade, porque nela se encontram tanto o fazer humano, numa organização própria da narração, quanto a arte de compor (Cf. RICOEUR, 1994, p. 60).

O aspecto temporal, por meio da cronologia sequencial, considera um acontecimento após o outro. Na intriga, a sistematização dos eventos ou acontecimentos não está apenas com disposição cronológica, mas irão se apresentar como herança de causalidade – acontecimentos que se dão “um por causa do outro”, diferente do apenas “um após o outro”. Neste aspecto, as ocorrências de cada evento se dão em acontecimentos que tornam possível compreender algo que incidiu no passado e não é mais (Cf. RICOEUR, 1994, p. 127- 128). Porém, diante de um retorno a ele, é possível compreender que o que ainda não é, só será possível e previsível em função da lógica dos eventos narrados. Nessas condições, deve-se ver a intriga como elemento integrador e provocador da integração da mímese ao tempo, tanto na forma cronológica quanto na configuração da ação humana (Cf. LEAL, 2002, p. 26-27).

Já é percebido que os elementos que envolvem a ação, mediante as sucessões de eventos e acontecimentos, começam a representar uma ligação entre as ideias de tempo e narração. O ato humano, sob a forma representativa na narrativa, condiciona a experiência e dá a ela um significado humano útil, como fonte dessa própria experiência da temporalidade.

A consideração que pode falar melhor a respeito do uso da história fica a cargo de um exemplo que Ricoeur leva em conta: a prática da maneira de consentir a história. Ele vai recorrer a Fernand Braudel35 para mostrar que é possível um conhecimento

35 A obra de sua autoria usada como referência na disposição de acontecimentos por causalidade foi

O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo à Época de Felipe II, tese defendida em 1947 e publicada em três volumes. No entanto, ela variava a maneira de exposição da história levando-a a um nível global. Braudel fora um dos professores e organizadores da Universidade de São Paulo (1933-1937). Sua carreira encerrou na cidade de Cluses, quando faleceu em 27 de novembro de 1985. Cinco obras suas foram publicadas após a morte (Cf.FERNENDES, 2008, s/p).

que permitiria uma aproximação da história com os acontecimentos justapostos pela intriga – a disposição dos fatos sob a condição de causalidade (um por causa do outro) prevalecendo sobre a simples sucessão (um após o outro). O entendimento disposto pelo filósofo francês a respeito dessa aproximação é da possibilidade de “estender juntamente à noção de acontecimento histórico a reformulação que a noção de acontecimento-armado-na-intriga se dá como imposição aos conceitos de singular, contingente e desvio absoluto” (RICOEUR, 1994, p. 295).

A singularidade diz respeito aos acontecimentos que só ocorrem numa única intriga, daí sua singularidade. No entanto, há intrigas que universalizam os acontecimentos, estendendo sua singularidade. Na que universaliza, as intrigas podem ser ao mesmo tempo singulares e não singulares, dependendo da forma com que os acontecimentos são relacionados – determinados acontecimentos da história se relacionam internamente, como a economia. Mas também se deve considerar que a economia pode vincular-se a determinados acontecimentos políticos ou geográficos (Cf. RICOEUR, 1994, p. 295).

Já na contingência, como noção de acontecimento histórico, com a reformulação que a noção de acontecimento-armado-na-intriga oferece, os acontecimentos são entendidos como ocorridos de surpresa, transformando a fortuna em infortúnio. No entanto, o aspecto contingente pode ser reformulado como componente da capacidade de a história ser seguida e de chegar a um final, sua seguibilidade (Cf. RICOEUR, 1994, p. 295).

Na concepção de aproximação da história com os acontecimentos, os desvios estão relacionados à combinação da tradição com os paradigmas. O processo de tessitura da intriga combina a submissão à tradição com a resistência aos paradigmas. Neste caso, os acontecimentos seguem a lógica com que a intriga os ordena. Assim, eles seguem a regra e também a quebra, no sentido de que pode tender entre um ou outro extremo, da tradição ou do paradigma. Esses paradigmas nascem da imaginação produtora, podem oferecer regras e podem mudar por pressão de inovações, conforme é possível perceber nas análises sobre mímese (Cf. RICOEUR, 1994, p. 295).

“[...] pelo fato de serem narrados, os acontecimentos são singulares e típicos, contingentes e esperados, desviantes e tributários de paradigmas, [...]” (RICOEUR, 1994, p. 295).

A disposição da história, conforme uso analítico dos estudos de história de Fernand Braudel (Cf. RICOEUR, 1994, p. 296-311), é traduzida como arte de estruturar a história dos acontecimentos. Uma estrutura que não somente faz uma divisão periódica da história, mas que convoca os acontecimentos para serem as testemunhas dessa estrutura e conjuntura. O acontecimento, na forma com que se apresenta na narração histórica, é uma variável da intriga. Assim, pensar o tempo, na composição da narração histórica, é pensar conforme o modelo de intriga, numa organização de acontecimentos que se compreendem em um tempo próprio dessa organização.

Considerando o caráter dessa experiência temporal mediante o modelo histórico, é possível notar que a estrutura organizacional com que a história é conduzida parte dos princípios miméticos no seu primeiro nível, mímese I, e, desenvolvendo essa estrutura, ocorre mediação simbólica da ação (Cf. RICOEUR, 1994, p. 88). Sendo assim, levando em conta que os processos miméticos estão vinculados pelo processo de mediação, esse primeiro momento marca o ponto em que o tempo humano entra no seu primeiro estágio. É nesse instante que todos os elementos que envolvem a semântica da ação integram-se e se atualizam (Cf. RICOEUR, 1994, p. 91).

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