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Cápitulo 4 – Brincadeira: uma questão de princípios

4.2 A Repetição

O primeiro princípio a ser discutido é o da Repetição, que está presente em todas as etapas dos folguedos citados e que, de alguma maneira, já foi mencionado no item 1.5 do primeiro capítulo. Essa repetição pode ser identificada pelo menos em três sentidos diferentes: repetir para o aprendizado; repetir como um caminho de recriação, que é o que acontece a cada apresentação da brincadeira ou de um espetáculo; repetir para criar ciclos de superação dos limites do corpo. Esses três sentidos da repetição se misturam no cotidiano da brincadeira, por isso serão apresentados aqui de forma conectada, sem a preocupação de nomear especificamente cada um deles. Certamente vale a pena aprofundar tal estudo posteriormente.

Nas toadas e cantigas, por exemplo, há sempre um refrão que se repete (cantado pelo coro), que dá suporte para o improviso ou para o solo não improvisado dos cantadores. Além disso, na maior parte dos casos, não há arranjos diferenciados das músicas, sendo estas parecidas entre si (embora diferentes) e cada uma delas sem muita variação ao longo de sua execução.69 Os passos dançados e os personagens das encenações, em sua grande maioria, são os mesmos há anos, sendo repetidos por mestres e imitados por aprendizes, até que se chegue ao domínio total de cada um. No entanto, essa repetição/imitação não elimina a individualidade de cada sujeito brincante.

Nesse sentido, paradoxalmente, a codificação pode deixar de ser um elemento que limita a criação e o novo para ser um trampolim que possibilita que a transformação, a originalidade e a composição aconteçam. O domínio da regra surge então como elemento fundamental para que se estabeleça o jogo. Tal jogo se estabelece não somente com os brincantes de um mesmo tempo, mas também entre gerações distintas de brincantes, que vão inovando e repetindo, repetindo e inovando o fazer de seus ancestrais. Pode-se perceber o processo de reflexão a respeito do equilíbrio e negociação entre esses dois opostos, na fala de Seu Raimundo, brincante da personagem Catirina no Boi de Seu Apolônio Melônio, já mencionado anteriormente. Questionado sobre um boneco que sua Catirina carrega nos braços e que não é tão comum ver com outras Catirinas, Seu Raimundo falou:

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No caso do Tambor de Crioula, por exemplo, o toque dos tambores é o mesmo para todas as toadas.

Isso aqui já ta sendo uma idéia minha. Inclusive, a Nadir disse que isso aí num tem nada a ver na história. A Nadir, a mulher de Apolônio. Ela disse que não tem nada a ver na história. Praticamente que não tem nada a ver na história, mas talvez, com essa história que é invenção minha, para o ano, já vai aparecê outras pessoas imitando. Vai mudando. Cada ano tem que botar outra coisa, outra invenção, mudá... Os menino lá no Convento das Mercês gostaram muito. Queriam até que deixasse o boneco com eles lá. Lá na Lagoa da Jansen, uma moça brincou com o boneco e disse: ‘Ah, me dê esse boneco pra mim’. Eu digo: ‘Num posso’. Deixa o Véi Barrero aí. O nome dele é Velho Barreiro.

Ou seja, a repetição do fazer não impede que sejam incluídos elementos nascidos da individualidade. No entanto, devido à natureza coletiva da brincadeira, esses novos elementos acabam tendo que ser debatidos e negociados na coletividade, como é o caso da conversa entre Dona Nadir e Seu Raimundo, a respeito da pertinência ou não do boneco.

O princípio da repetição é facilmente relacionado com o fazer do ator, uma vez que o teatro, em sua estrutura, já traz essa característica de se repetir sendo, todavia, sempre diferente de si mesmo. Ou seja, ainda que uma mesma performance seja apresentada noite após noite, nunca será realizada exatamente da mesma maneira, e talvez seja a própria ação de repetição que possibilite esse espaço de renovação. Além disso, os ensaios e processos criativos se dão numa negociação entre a repetição e a transformação. Um indício disso é a palavra francesa répétition, que se traduz em português como ensaio.

Outro ponto relevante em relação à repetição é o fato desta, no contexto da brincadeira, não ser feita de forma mecânica. O brincante repete o fazer e, com essa repetição, o aprende. No entanto, um Caboclo de Pena, por exemplo, não tem sessões de treinamento para o aprendizado de cada passo. Essa repetição é feita na própria situação de brincadeira ou ainda, no caso do Bumba-meu-boi, no ensaio, que é uma espécie de brincadeira sem vestimentas.

Essa situação em que é possível repetir sem ser mecânico talvez se aproxime daquilo que é buscado na metodologia do Lume, como reflete Burnier:

Se por um lado o ator necessita da técnica, sem o que não há arte, por outro, ao representar, não pode fazê-lo sem vida. Seu corpo não é um corpo mecânico, mas um corpo-em-vida, a irradiar determinada luz, vibração, presença. Ele é fundamental para a arte do ator, pois além dos sinais que passam por ele e são codificados e decodificados com recursos próprios, ele é a própria pessoa. É por meio dele que o homem sente, se emociona, ama, existe. A formulação ‘appiana’ de corpo vivo ou corpo vivente é a mais adequada, ao considerá-lo não somente como uma massa muscular com articulações ósseas, mas um corpo-pessoa, animado, habitado, vibrante, reluzente. (...) Conceitualmente, o ator, para o desenvolvimento de sua arte, faz uso de seu corpo vivente ou de seu corpo-em-vida no tempo e no espaço, ao

desenvolver ações com uma certa presença e colocar o todo em jogo (Burnier, 1994, 22).

A repetição em jogo da brincadeira, que, no entanto, se dá dentro de regras e códigos específicos, talvez contribua para a compreensão dessa técnica em vida de que fala Burnier.

Na brincadeira popular, a repetição, seja ela realizada ao longo dos anos ou durante uma noite inteira, tem muito a ver com a natureza ritual da brincadeira, como se constata no comentário de Dona Vitória a respeito do Tambor de Crioula:

Aí, o Tambor não tinha assim, assim, na rua, pra apresentar assim, não tinha. Só tinha se a gente ia pagar, assim, uma promessa. Porque o São Binidito era assim... a gente... a vez uma pessoa da família adoecia, aí fazia, assim, aquela promessa pra S. Binidito. ‘Ah, meu S. Binidito, se meu filho ou minha mãe ficar boa, eu pago pra fazer uma promessa e se bater tambor a noite toda. E tal... Aí esperava que ficava bom. Aí a gente fazia aquele tambor, a noite toda, até oito hora da manhã. Aí a gente criava aquele porco pra fazê ali a comida de manhã pra dá pro povo. O café, o bolo.

Outra característica da repetição que, embora não seja intenção deste trabalho aprofundar, vale mencionar, é a possibilidade, no caso do folguedo popular, da construção de uma espécie de consciência da dramaturgia que costura a festa- brincadeira-brinquedo. Quer dizer, de tanto participar das etapas da festa, repetindo- as na seqüência tradicional, cada brincante vai conhecendo, não somente cada etapa, mas a forma com que essas se ligam umas às outras. Dependendo da função que o brincante desempenha, ele terá maior ou menor necessidade de conhecer cada uma dessas etapas. Por exemplo, o Amo do Boi, que conduz a brincadeira por meio do canto das toadas, terá que atuar sobre a totalidade do rito. O Miolo do Boi, por sua vez, não terá essa necessidade, já que precisa se responsabilizar somente por sua parte (dançar dentro do boi). Contudo, só poderá desempenhá-la bem sabendo em que contexto ela está inserida. Uma vez que as brincadeiras em geral são bastante complexas, com vários detalhes e etapas, sua repetição é uma maneira de alcançar um aprofundamento do conhecimento do todo.

A repetição também está relacionada com a produção da exata qualidade de energia para a aquela determinada brincadeira. Juliana Pardo, do grupo MunduRodá, fala desse princípio na brincadeira do Cavalo-marinho

Eu acho que a gente percebe os trupés, por exemplo, que eles ficam... tá tocando uma toada, aí eles ficam... repete a mesma toada um tempão, um tempão, um tempão. E trupé, tratátá, tratátá. Enquanto cê não apitar, não vai passar pra outra toada. Então, enquanto o capitão não der o apito, então isso é uma repetição muito legal, porque quanto mais tempo ele... tá naquela mesma toada, parece que a coisa

vai subindo, subindo, subindo, subindo, subindo. Um exemplo claro é o caboclo. Caboclo de Arubá ou Urubá. Ele canta ‘Arreia, caboclo, pra me ajudar, caboclo da mata lá do Jurema, chuva chovia, trovão trovejava’ e fica nessa toada e a pessoa que tá de caboclo, ele fica pedindo pra que se repita, porque quanto mais se repete, aí ele vai entrando, o caboclo vai entrando em transe. E é pela repetição, fica claro nesse momento da brincadeira. Ele pede pra que se repita e que todo mundo cante. Ele pede pra todo mundo cantar. Então é muito, muito claro. E a gente percebe, por exemplo, no grupo, por exemplo, no Manjarra70, tem algumas músicas do tipo ‘Rola branca é parari, rola branca é parari’, que são músicas que a gente já repetiu muitas vezes, que é uma música que o público adora, essa toada. E a gente fica repetindo, repetindo ela no grupo. E é o momento que ele sempre sobe, exatamente quando a gente fica repetindo determinadas músicas.71

O comentário de Juliana faz lembrar também um outro princípio, o da presença, já que a repetição, nesse caso, faz alcançar uma qualidade de presença, como no exemplo do citado Caboclo de Arubá. Para o contexto do trabalho do ator, não só a repetição da brincadeira em si pode construir uma memória muscular que possibilite que elementos do brinquedo passem a ser recursos e repertório para o trabalho pré-expressivo e criativo, como esse repetir pode também contribuir para a compreensão do próprio princípio da repetição no universo teatral e na construção da presença do ator.