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Capítulo 1 – Entremundos

1.4 Brincadeira, brincantes, folguedo, performance, teatro: aquilo

Para continuar refletindo a respeito da relação que existe entre o teatro e os fazeres envolvidos nas culturas populares, mais especificamente em algumas de suas manifestações festivas e rituais, é indispensável definir alguns conceitos. Tal definição não surge no sentido de engessar idéias que estão sempre em transformação, mas somente com a intenção de clarear o ponto de vista que norteia esta dissertação. Assim, é indispensável estabelecer algumas fronteiras que demarquem, pelo menos em parte, os conceitos de brincadeira, folguedo, brincante, performance, teatro e jogo, bem como algumas ligações entre esses conceitos.

Os termos folguedo e brincadeira serão usados referindo-se às festas da

cultura popular, com suas encenações, coreografias, musicalidade e personagens. Desses dois termos, especialmente o segundo é muito utilizado pelos próprios integrantes das manifestações populares para se referirem ao que fazem.

Oswald Barroso ajuda a clarear a idéia de brincadeira e brincante. Para ele o fazer do ator brincante define-se da seguinte forma:

Mais do que apresentar ou que representar, o termo brincar parece mais adequado para designar o fazer do ator brincante. Na brincadeira, rigorosamente, não se apresenta, não se representa, simplesmente se brinca. Brinca-se no sentido de que os brincantes apenas se divertem, junto com o público, que também faz parte da brincadeira. E aqui se usa o termo brincar, na acepção mesma de brincadeira infantil. Mas de uma brincadeira infantil coletiva (como são mesmo a maioria das brincadeiras infantis), na qual os brincantes, a partir de um acordo sobre uma estrutura, vivem uma outra vida, uma vida de faz de conta, improvisando livremente (Barroso, 2004, 84-5).

Sendo então o brincante “aquele que se diverte junto com o público”, e uma vez que o público “também faz parte da brincadeira”, podemos dizer que esta se estabelece na relação entre o público e o brincante. Assim, a brincadeira torna-se variável, mutável, passível de transformações que se darão no encontro de cada brincante único com cada público específico. Isto posto, talvez não seja demais concluir que a mudança, a variação seja imanente à brincadeira.

Essa característica de variação e o fato da brincadeira se estabelecer na relação com a platéia localizam a idéia de brincadeira no já citado espaço-entre. Além disso, por se realizar na relação brincante-platéia e estar sempre em transformação, a noção de brincadeira aproxima-se daquela de performance, principalmente, se tomarmos performance como, entre outras coisas, a manipulação

dos eixos tempo e espaço diante de determinado público ou testemunhas (Villar, 2003, 73), algo efêmero, que acontece unicamente no próprio momento da performance, sendo passível de nova realização, mas não de repetição. Definida dessa forma, performance pode ser um conceito guarda-chuva que abriga, entre outros, as festas e ritos populares, bem como as manifestações cênicas mais diversas (Villar, 2003, 74).

No entanto, não é somente a relação entre brincantes e platéia que aproxima a brincadeira popular da performance e especialmente da performance teatral. Muitos folguedos e brincadeiras populares têm origem nos cultos e rituais praticados por determinadas comunidades. Tais cultos e rituais celebram, não raro, etapas e conquistas da vida em comunidade (colheita, casamentos, nascimentos, mortes etc) ou se estabelecem como oferendas e homenagens à divindade, como veremos no capítulo 2, no caso do Bumba-meu-boi. Essa característica de ritual, de tradição, faz com que haja uma profusão de símbolos envolvidos na brincadeira. Além disso, existe uma determinação tradicional das etapas do folguedo, bem como de seus elementos e do papel desempenhado pelos participantes, ou seja, há regras e combinados entre os envolvidos. Regras essas que não se estabelecem apenas entre brincantes que convivem numa mesma temporalidade, mas que tecem relações com a ancestralidade e com a descendência dos brincantes de determinada época.

Entretanto, a ligação com a religiosidade e o estabelecimento de códigos e regras não fazem com que tais manifestações tenham uma característica sisuda ou rígida. Pelo contrário, em grande parte delas, há espaço para o riso e para o novo. Há regras, mas também há improviso, risco e presença de elementos inesperados. Nesse sentido, a brincadeira popular traz características semelhantes às do jogo e, mais ainda, às do jogo teatral. Mikhail Bakhtin (1996) acha que, pelo elemento do jogo e pelo caráter concreto e sensível, as festas populares estão relacionadas com as formas artísticas e animadas por imagens, como aquelas do espetáculo teatral. Mistura-se nesse jogo aquilo que é sagrado com aquilo que é profano, quebram-se hierarquias no calor da brincadeira e do riso.18

Johan Huizinga define como características do jogo elementos que podem ser encontrados tanto nos folguedos populares como no teatro. Para ele, são

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características fundamentais do jogo o fato deste não ser vida “corrente”, nem vida real, mas uma esfera temporária de realidade com orientação própria; sua capacidade de transmissão e repetição; e o fato de ser isolado, limitado, circunscrito, ou seja, de possuir regras (Huizinga, 1999, 11- 13).

O mesmo autor relaciona ainda jogo e ritual, observando que ambos trazem espaço físico e tempo isolados do cotidiano; caráter de independência primeira e absoluta; festividade e alegria sem deixar de ser sérios; consciência, mesmo que latente, de que não são reais (Idem, 25). Essa característica de jogo é mais um traço comum aos universos da festa popular e do teatro.

A relação especial do folguedo com a temporalidade se sobressai, pois este se localiza num tempo extremamente diverso daquele tempo vivido no cotidiano dos integrantes da brincadeira. Para que a festa aconteça, todas as outras atividades são suspensas. Os participantes lançam-se a tarefas distintas daquelas realizadas no dia a dia. Ou mesmo quando a atividade é semelhante ao que se faz diariamente, como cozinhar, por exemplo, esta se reveste de outro significado, quase como se fosse outra atividade. A imensa variedade de feriados festivos que temos no Brasil pode ser resquício desse tempo suspenso da festa. Fernando Antonio Pinheiro Villar de Queiroz afirma que esses eventos têm um denominador comum, que á a quebra ou o contraste com essa rotina de atividades cotidianas (Villar de Queiroz, 2001, 156). Villar cita Jaume Farras para explicar que:

Cada sociedade, cada povo, cada indivíduo necessita mudar periodicamente a monotonia e esquecer sua situação social, política econômica e religiosa para mergulhar em alguma das orgias religiosas, míticas e políticas, a fim de reestruturar, ou melhor, renovar o caos resultante. Viver o caos e viver no e do caos, imaginar uma história diferente, uma ligação distinta entre os homens pode ser uma necessidade básica do próprio homem (in Villar de Queiroz, 2001, 154).19

Há ainda outro traço dessa temporalidade distinta que deve ser ressaltado. As festas são realizadas de acordo com um determinado calendário, repetindo-se de tempos em tempos. “No entanto, a festa que retorna não é uma outra nem a mera reminiscência de algo festejado na sua origem”, sendo a experiência do tempo no folguedo “a comemoração, que é um presente sui generis” (Gadamer, 1997, 204).

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“Cada societat, cada poble, cada individu necessita periòdicament trencar la monotonia, oblidar el seu estat social, polític, econòmic, religiós, i capbussar-se en alguna de les orgies religioses, polítiques i mítiques, per restructurar, més ben dit, renovar el caos ocasionat. Viure el caos i viure en i del caos, imaginar de tant en tant una història diferent, un lligam distint entre els homes, deu ser una necessitat pregona en l’home mateix”.

A palavra comemoração sugere também a idéia daquilo que pode ser memorado ou recordado em conjunto. Regularmente, determinado grupo social rememora os códigos e a totalidade da brincadeira. No entanto,

a cada vez que ocorre, a festa vai se modificando. Pois sempre algo diverso é simultâneo com ela. Mesmo assim, sob esse aspecto histórico, continuará sendo uma e a mesma festa, que vai sofrendo tais mudanças. Na sua origem, era assim e era festejada de uma maneira, depois foi diferente, mais tarde novamente diferente [...além disso...] deve-se à sua origem [...] que seja comemorada regularmente de acordo com a sua própria natureza original, que ela seja sempre diferente (ainda que seja celebrada ‘exatamente assim’) [...ou seja...] só possui seu ser no devir e o retornar” (Idem, 204-5).

Nesse sentido, é possível estabelecer clara relação entre a festividade⁄brincadeira popular e a performance teatral, que pode ser repetida e extremamente codificada e, no entanto, nunca é a mesma.

Finalmente, é importante falar a respeito do papel dos espectadores no folguedo. O folguedo tem tal estrutura em que não há essa divisão entre aqueles que fazem e aqueles que assistem. Bakhtin confirma isso quando fala do caso do carnaval: “Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo” (Bakhtin, 1996, 6).

Esse elemento é mais um ponto de ligação com o teatro. Se pensarmos no espectador a partir da colocação de Gadamer:

o ser do espectador é determinado pelo seu “tomar parte” (Dabeisen). Tomar-parte é mais que mera co-presença com alguma outra coisa que lá está concomitantemente. Tomar-parte significa participação. Quem tomou parte em alguma coisa tem conhecimento de conjunto sobre como foi realmente. Somente num sentido derivado é que tomar-parte também significa uma forma do comportamento subjetivo, ou seja, “dedicar-se à coisa”. Assistir é, pois, uma genuína forma de participação (Gadamer, 1997, 206).

Diz ainda que “os participantes de uma delegação de festa não possuem nenhuma outra qualificação e função do que estar nela presentes” (Idem), o que também pode valer para a comunhão entre espectadores e atores na situação de performance teatral. Artista e grupos teatrais contemporâneos como La Fura dels Baus, Teatro da Vertigem, De la Guarda e outros enfatizam em seu teatro essa interatividade entre quem está em cena e quem está na platéia.

Podemos encontrar outros dois elementos importantíssimos comuns aos folguedos populares e ao teatro: o ritmo e a musicalidade. Além da presença freqüente da música nos folguedos populares, o que por si produz uma experiência para os participantes, o próprio encadeamento das etapas da festa traz uma

característica de muita musicalidade. Nesse sentido, assemelha-se bastante à concepção de Meyerhold de que palavras, gestualidade e jogo do espetáculo fazem parte de uma elaborada estrutura musical na qual se harmonizam os elementos da encenação (Hormigon, 1998, 389). Esses elementos são ainda norteadores da precisão do espetáculo e da festa e serão melhor discutidos no capítulo 4.

Como é possível perceber, os espaços de interface entre folguedo, teatro e jogo não são pequenos, o que leva de volta à idéia de entremundo, de espaço de relação, convivência e troca. Talvez pensar sobre a maneira com que se dá o processo de transmissão de saberes na vivência das brincadeiras populares ajude a compreender essas relações. A aproximação das etapas de transmissão da brincadeira tem aqui também o intuito de aprofundar a reflexão a respeito do processo de formação e preparação de atores, já que este trabalho propõe o aprendizado e o fazer desses mesmos brincantes como referência para o ator.

1.5 Coisa de mestre ou de como a vivência popular é um processo de