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Capítulo 2 – A brincadeira do Bumba-meu-boi, Catirina e sua vizinhança:

2.3 A boa vizinhança

Como foi mencionado anteriormente, o universo do Boi pressupõe uma vizinhança de brincadeiras. Da mesma maneira que, dentro de um grupo de Boi, um brincante pode desempenhar diversos papéis diferentes (tocador, palhaceiro, dançarino etc), muitos brincantes estão envolvidos com outras brincadeiras. Isso ajuda a compor sua característica de brincante, seu repertório, bem como os caminhos para criar dentro do brinquedo. Mais adiante, na descrição da aplicação prática deste trabalho, essa vizinhança com outras brincadeiras pode ficar mais clara.

Neste caso, as vizinhas consideradas serão o Tambor de Crioula e as brincadeiras derivadas do carimbó das caixeiras, mais especificamente o Cacuriá e o Caroço. No entanto, é importante ressaltar que, assim como no cotidiano do Boi essas brincadeiras são vizinhas, aqui elas também não serão o centro da investigação, mas se constituirão mais especificamente como um recurso prático de suporte tanto para a aplicação da pesquisa com alunos-atores como para a relativização e reflexão sobre o contexto de formação do brincante. Digamos que, quando for necessário, as vizinhas emprestarão uma xícara de açúcar para a pesquisa. Sendo assim, tais brincadeiras serão descritas aqui muito brevemente, sem o objetivo ou pretensão de tentar exaurir ou aprofundar o assunto, mas a fim de localizar o leitor.

O Tambor de Crioula é um folguedo que envolve música e dança, provavelmente nascido entre os escravos brasileiros. Dona Vitória, brincante já citada várias vezes, postula sua versão para o nascimento desse brinquedo:

Porque Tambor já é coisa de escravo. Começo... O orijo do Tambor foi o escravo. Foi o escravo, o orijo. Os escravo, lá na quinta dele, ele tirava aquele bangu, fazia o buraco, cobria, fazia aquilo e ia batendo. O Tambor foi do escravo. Aqui ninguém sabe disso, gente, ninguém sabe. Aí eles falam alto aí, por aí. Falam besteira sem saber das coisas.

Em sua versão mais difundida, a dança acontece numa roda formada por mulheres denominadas coreiras, vestidas com saias rodadas. Uma de cada vez, as mulheres entram no meio da roda e dançam diante dos três tambores usados para tocar a música da brincadeira.46 A troca da coreira que está no meio da roda se dá no momento em que outra coreira entra na roda e chama a primeira para a ‘punga’, que é uma espécie de umbigada entre as duas brincantes. Até se concretizar a umbigada, muitas vezes, as duas coreiras dançam juntas e se desafiam a determinados movimentos da dança. Depois da umbigada, a primeira sai da roda e a segunda permanece até que outra coreira venha tirá-la. Toda a dança acontece direcionada para o tambor grande, que marca o tempo da ‘punga’. As toadas são sempre puxadas por um dos cantadores e respondidas pelo coro, formado tanto pelas mulheres como pelos homens. De acordo com a tradição, apenas mulheres dançam e somente homens tocam. Essa é a estrutura mais comum, mas há notícias de tambores dançados por homens (também conhecidos como Tambor de Pernada), bem como de mulheres que tocam o tambor. Muitas vezes, a roda de tambor é feita para pagar uma promessa realizada para o santo, podendo acontecer em qualquer época do ano. Grande parte dos grupos de Bumba-meu-boi, no Maranhão, brinca também o Tambor de Crioula. Muitos deles fazem inclusive apresentações de Tambor.

As brincadeiras derivadas do carimbó das caixeiras estão relacionadas com uma outra festa maranhense, a Festa do Divino Espírito Santo, que é uma festa religiosa, de herança portuguesa, que celebra o Pentecostes. No Maranhão, a festa tem um ritual próprio, no qual uma parte extremamente importante é a presença das caixeiras, que recebem esse nome devido ao instrumento que tocam, chamado caixa, que é um tambor de duas peles, tocado com baquetas. As caixeiras conhecem todas as etapas da festa. Com seus toques e cantos, essas mulheres conduzem o andamento desse rito. Como tradicionalmente a festa durava muitos dias, havia momentos de intervalo, ou mesmo após o encerramento da festa, em que as caixeiras se reuniam para toques mais profanos, ou seja, para cantar, dançar e brincar. Desses momentos, nasceu o carimbó das caixeiras que depois se derivou em outras brincadeiras. Uma delas é o Cacuriá.

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O Cacuriá foi criado, a partir do carimbó das caixeiras, por seu Lauro, nos anos 1970, sendo brincado inicialmente pelos mesmos brincantes do grupo de Boi de Seu Lauro.47 Ao som do mesmo tipo de instrumento utilizado pelas caixeiras na Festa do Divino, o Cacuriá é uma dança circular, que se dança em par. Algumas músicas têm inclusive coreografia específica.

O Caroço, outra brincadeira tocada com a mesma caixa do Divino, está localizado principalmente na cidade de Tutóia (MA). Também é uma dança circular, mas sem a ênfase nos pares. Em geral, o cantador costuma improvisar muitos versos. Os brincantes dançam e respondem o canto, formando um coro.

Como é possível perceber, a brincadeira do Boi, com sua história, seus personagens, suas figuras e seu contexto de vizinhança, é extremamente rico e pleno de oportunidades para a construção de um diálogo com o trabalho de formação e criação em arte. Considerando tudo isso, no capítulo seguinte, podemos nos aproximar um pouco mais do universo do ator.

Ô vaqueiro tu tange boiada E abóia teu gado primeiro Lá vai boi, lá vai boi, lá vai boi

Morena, visitar seu terreiro

(Toada de Coxinho – Boi de Pindaré)

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Alauriano Campos de Almeida, dono do Boi Mimo de São João, já mencionado acima em trecho de entrevista com Dona Vitória.