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Capítulo 2 – A brincadeira do Bumba-meu-boi, Catirina e sua vizinhança:

2.2 As muitas facetas de Catirina

2.2.1 Catirina: símbolo e arquétipo

O conceito de uma Mãe Terra, Deusa Mãe ou Grande Deusa está claramente presente nas culturas grega e romana. Entretanto, há indícios arqueológicos da transmissão da idéia da fecundidade feminina transbordante desde o Paleolítico Superior até o Neolítico Inferior. Há diversos ídolos e estatuetas femininas, encontradas em escavações, que levam a ciência arqueológica a tal conclusão. A mais conhecida delas é a Vênus de Villendorf, encontrada em 1908, na Áustria, e com datação estimada entre 24.000 e 22.000 AC. Tais estatuetas mostram frequentemente figuras femininas sem destaque para as feições do rosto, mas com grande destaque para o tamanho do ventre, dos seios e algumas vezes da vulva, o que levou a conclusões de sua representação do princípio feminino da fertilidade e da geração e manutenção da vida.45

É interessante notar que essas características são semelhantes àquelas já mencionadas como sendo a caracterização mais difundida de Catirina (máscara que deixa o rosto pouco definido e ventre grávido protuberante). Vale mencionar também a larga presença de artefatos pré-históricos que apresentam temas femininos, na Amazônia, especialmente na cultura Marajoara que, só a título de curiosidade, tem sua localização no estado do Pará, ao lado do Maranhão. Certamente este trabalho não tem a pretensão de falar com propriedade, em tão curto espaço, de assunto tão profundo. No entanto, uma vez que a faceta de mãe geradora da vida, de criadora, é

Michol de Carvalho, in NUNES, Izaurina de Azevedo (org). Olhar, memória e reflexões sobre a gente

do Maranhão. São Luís: Comissão Maranhense de Folclore, 2003.

45

Para maiores informações a respeito do arquétipo feminino na pré-história ver: ANTES – Histórias da Pré-história. CCBB. São Paulo, 2004; ou ainda Witcombe, Christopher. “The Venus of Willendorf”, in The Scout Report for Social Sciences. Sweet Briar College. Virginia, 2000.

bastante forte na simbologia trazida por Catirina, não poderia deixar de ser mencionada.

Da mesma forma, essa personagem é símbolo de outros aspectos relevantes envolvidos na brincadeira. Dizer que as personagens e o enredo do Auto simbolizam elementos de uma determinada ordem social não é novidade. Muitos autores, ao falarem do Boi, fazem essa afirmação (Azevedo Neto, 1983; Carvalho, 1995; Bueno, 2001; Camarotti, 2001). No entanto, Catirina, nesses casos, é uma personagem pouco citada. É comum ver Pai Francisco sendo considerado a encarnação do elemento social da colônia, do negro escravo, mas é bem mais raro ver menção à Catirina nesse sentido. Todavia, a personagem não só figura tranqüilamente nesse mesmo lugar em que seu marido é posicionado, como dá voz a esse elemento social. As manhas e quereres de Catirina talvez possam ser considerados o símbolo da detonação do movimento, da modificação da estrutura social.

Catirina é aquela que sabe que o novo não espera, exige. É aquela que sente o novo mexer e chutar sua barriga. Mais ainda, seu argumento de que o filho possa nascer com cara de língua, ou seja, desprovido da própria autonomia, caso não tenha acesso ao tão cobiçado alimento, valoriza um conhecimento que oficialmente é crendice. No entanto, é esse saber que convence Chico a ser o agente da transformação clamada por Catirina. A transformação então se dá por meio do boi. Somente depois de ser roubado, morto e ressuscitado, o boi pode dançar e celebrar com todo o povo da fazenda, ou seja, é nesse momento pós-transformação que o boi passa a ser de todos. Vale aqui lembrar as reflexões de Peter Burke (1995) e Gilberto Freyre (1977), mencionadas no primeiro capítulo, que apresentam o fato da mulher ser um elemento de ligação. Neste caso, a ligação estabelecida é entre o velho e o novo.

A fim de estabelecer uma conexão entre o que já foi dito até aqui e uma outra faceta possível de vislumbrar na presença simbólica de Catirina, faz-se necessário citar novamente Bakhtin. Ele nos diz que “no realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura cômica popular), o princípio material e corporal aparece sob a forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível” (Bakhtin, 1993, 17).

Ora, vimos acima características que aproximam Catirina daquilo que Bakhtin chama de cósmico e social. Todavia, o terceiro elemento, o corporal, também se aplica visivelmente a essa personagem. “O traço marcante do realismo grotesco é o

rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do

corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (Bakhtin, 1993,17).

Se, como dissemos anteriormente, é possível relacionar o ventre grávido de Catirina e sua fertilidade exuberante com a mãe, com a terra, com o princípio gerador, então talvez possamos concluir que ela, no Auto, é um dos fortes símbolos dessa característica de rebaixamento bakthiniano. Ousando um pouco mais, pode- se dizer que Catirina, de alguma maneira, simboliza o próprio corpo, com todas as suas contradições e surpresas:

É em atos como o coito, a gravidez, o parto, a agonia, o comer, o beber, e a satisfação de necessidades naturais, que o corpo revela sua essência como princípio em crescimento que ultrapassa seus próprios limites. É um corpo eternamente incompleto, eternamente criado e criador, um elo na cadeia da evolução da espécie ou, mais exatamente, dois elos observados no ponto onde se unem, onde entram um no outro (Bakhtin, 1993,17).

E em sua dualidade grávida, esse corpo ainda apresenta aquilo que, logo na seqüência, o mesmo autor chama de “uma das tendências fundamentais da imagem grotesca do corpo” que “consiste em exibir dois corpos em um: um que dá a vida e desaparece e outro que é concebido, produzido e lançado ao mundo”. Sendo assim, Catirina talvez simbolize um corpo-fluxo, que desaparece ao fazer surgir a nova vida e que, no entanto, segue existindo transformado, no bojo dessa nova vida. O corpo de Catirina é, então, um entremundo.

Falar da simbologia de Catirina como corpo-físico-fluxo é extremamente útil a este trabalho, pois é, entre outras coisas, o universo do corpo-fluxo dos brincantes que será explorado a seguir como caminho de contribuição para os processos de formação de atores. Indo mais longe, talvez seja possível relacionar Catirina simbolicamente com a própria figura do ator, que atua nesse espaço-entre de fluxo criador e geração de novas formas. Sobre isso, Renato Ferracini diz:

Para que eu possa dar início a um pensamento sobre o trabalho do ator, ao menos do trabalho de ator como eu o vejo, enquanto multiplicidade de linhas e fluxos, devo ter em mente que esses pólos FORMA/VIDA não são pontos extremos de uma linha que deve ser dobrada, mas de um “espaço” comum, um “ponto de convergência dimensional” no qual cada dimensão se confunde e se funde com a outra. Não são pólos distantes e contraditórios entre si, mas são centros, pontos, que podem ser trabalhados, na prática cotidiana, de maneira conjunta, mesmo que, no plano conceitual, eles sejam pólos opostos. Na verdade, na dimensão prática de trabalho, não há oposição, mas complementaridade. No corpo, “ponto” por excelência de confluências, não existe polaridade, mas uma multiplicidade dimensional (formal, vital, técnica, relacional etc) (Ferracini, 2004, 70).

Contudo, a relação do universo dos brincantes de Boi com o corpo do ator será aprofundada no quarto capítulo deste trabalho. Antes disso, no entanto, é importante citar com mais clareza as brincadeiras vizinhas ao Boi, que também serão consideradas na presente pesquisa.