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A Responsabilidade Estatal por omissão legislativa e a tragédia no parque

2 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO

2.2 A Responsabilidade Estatal por omissão legislativa e a tragédia no parque

De tudo o que foi dito até aqui, percebe-se que, no campo doutrinário, é quase unânime a existência de responsabilidade civil do Estado por atos legislativos. Cita-se, por exemplo, Diogo Freitas do Amaral, Rui Medeiros, Maria da Glória Dias Garcia e Yussef Said Cahali.184

Por todos, Cretella Júnior, referindo-se à hipótese de danos causados diretamente pela legislação, leciona que, quando promulgada a lei, percebe-se que ela fere especialmente o direito de certa pessoa, há direito indenizatório. Diz que cabe indenização, se o sacrifício imposto pela medida legislativa recair sobre interesses particulares, com finalidade de favorecer ou proteger outros interesses particulares; e que inexiste indenização a não ser que o prejuízo, por sua especificidade e gravidade, ultrapasse o normal dos sacrifícios impostos pela legislação.185

Como visto, pesam de forma divergente a portuguesa Maria Lúcia Amaral,186 bem assim o brasileiro Hely Lopes Meirelles.187 Eles veem com extrema reserva a responsabilidade estatal por omissão de leis. A professora lusitana, inclusive, defende que a responsabilidade civil por omissão legislativa não possui previsão constitucional.

Foi considerado também que o Estado pode causar danos, em decorrência de sua ineficiência. E, se tal decorre de uma omissão, a aplicação da teoria da responsabilidade é cogitável.

Como já se pontuou alhures, em Portugal, nos casos de responsabilização estatal pela falta de edição normativa, via de regra, a Lei n. 67/2007 exige previa manifestação do Tribunal Constitucional acerca da omissão, no sentido de atestá-la. Ou seja, a prévia verificação da inconstitucionalidade por omissão, é um pressuposto necessário para o ajuizamento da ação.

184 CAHALI, Yussef Said – Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.

527/528.

185 CRETELLA JÚNIOR, José – Tratado de Direito Administrativo. Vol. 8. São Paulo: Forense, 1998, p.

151-152.

186 AMARAL, Maria Lúcia – Responsabilidade do Estado-legislador: Reflexões em torno de uma reforma.

THEMIS – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Ano 2, n. 4, (jul. 2001), p.

5-21, p. 9-11.

187 MEIRELES, Hely Lopes – Direito Administrativo Brasileiro. 14.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 556-557.

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Ou melhor, na carência de julgado do Tribunal Constitucional, torna-se ausente um pressuposto essencial para que o Judiciário possa tramitar e julgar a ação indenizatória.

Um fato que gerou grande comoção social e discussões jurídicas ocorreu em 1993, quando duas crianças foram dadas por desaparecidas após estarem no Aquaparque Restelo, em Lisboa. Após o incidente, o local ficou conhecido como Aquaparque da Morte. A primeira criança (Cristina Caldas) desapareceu no dia 27 de julho de 1993. Dois dias depois, desapareceu outra criança (Frederico Mendonça). À época, foi inicialmente levantada a hipótese de afogamento, quando se deu início ao esvaziamento da piscina Ribeirão. No entanto, na madrugada do dia 30 de julho, os corpos das duas crianças foram encontrados na tubulação. As crianças foram sugadas em lugares diferentes. Notou-se então a ausência da rede de proteção.

A gravidade da situação gerou inquérito visando apurar os responsáveis. Na época, não restava clara a situação, posto que os administradores alegavam que todas as instalações tinham sido inspecionadas. Apontavam que se tratava de caso isolado. Contudo, outras vistorias apontaram que o local tinha sido classificado como um dos piores lugares em nível de condições de segurança. Então, sob protestos e comoção geral da sociedade, passou-se a exigir do governo regulamentação para o setor dos parques aquáticos e rigidez nas fiscalizações. Buscou-se, com isso, que se evitassem novas situações de riscos, bem como outras mortes.

Após o insólito, os pais intentaram ação judicial, que culminou em decisão do STJ, o qual asseverou que o Estado é responsável civilmente, por omissão ilícita e culposa no exercício da função legislativa; que foi violado o Artigo 22º da Constituição; que há obrigação de indenizar; que foi provado o nexo de causalidade entre a referida omissão e os danos causados; que aquela norma constitucional pode ser diretamente invocada pelos particulares face à omissão do legislador; que o filho da parte autora morreu no parque aquático da cidade de Lisboa, por asfixia por submersão; que foi constatada falta de legislação específica sobre parques aquáticos; que isso não poderia ser ignorado; que os parques eram autorizados e licenciados; que funcionavam sem cobertura legal ou regulamentar; que, portanto, há responsabilidade civil do Estado por omissão ilícita; que presente culpa no exercício da função legislativa; que não procede a alegação estatal, no sentido de que a mera ausência de legislação específica sobre parques aquáticos não originou o acidente que vitimou os menores; que a mera ausência daquela legislação pode sim provocar acidentes mortais em parques aquáticos; que a omissão por inconstitucionalidade, ao contrário do que alega o Estado, pode ser apreciada pelos tribunais judiciais, e não apenas pelo Tribunal Constitucional; que Jorge Miranda ensina que a inexistência de um sistema de fiscalização difusa da inconstitucionalidade por omissão (análogo

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ao da inconstitucionalidade por ação) não impede o reconhecimento jurisdicional da omissão188; que, no caso do Aquaparque, a omissão em legislar representa uma violação clara do dever de proteção dos direitos fundamentais, a qual recai sobre o legislador; que, dentre os direitos fundamentais, destaca-se o direito à vida; que, na espécie, havia o dever de proteção das crianças, através da edição de lei.189

A ação acima resultou em responsabilidade atribuída aos administradores e aos técnicos do Aquaparque, haja vista a manifesta negligência. Após alguns recursos com recusa em aceitar a sua responsabilidade, o Estado celebrou um acordo extrajudicial com os pais. Não apenas pagou indenizações, como reconheceu a ausência de normas regulamentadoras sobre o funcionamento dos aquaparques.

O caso Aquaparque é paradigmático, no que tange à responsabilidade civil estatal por ausência de normas, mesmo porque ensejou comoção social que estimulou a tomada de medidas jurídicas para reparar os danos pretéritos e evitar futuros. Tal processo foi julgado em 1999, a saber, antes da Lei n. 67/2007. Esta – como considerado acima – cria uma série de requisitos para a responsabilidade estatal por omissão legislativa, que vem sendo adotada cegamente pelo Judiciário português. Portanto, se a ação do Aquaparque Restelo fosse julgada nos dias atuais, provavelmente, seu resultado final teria sido antagônico, à mercê da aplicabilidade ampla e irrestrita da matriz constitucional da reponsabilidade civil estatal estampada no Artigo 22º da CRP.

Os tribunais lusitanos têm hodiernamente interpretado, de forma restritiva, o Artigo 15º daquela norma, razão pela qual tal demanda seria possivelmente julgada hoje em desfavor dos autores, em uma análise dos recentes precedentes portugueses, no que tange a responsabilidade estatal por omissão normativa. Os tribunais de Portugal não aplicam com a adequada amplitude a Lei n. 67/2007. Talvez não se ativeram ao espírito do legislador, bem assim a sua ontologia constitucional. A Lei n. 67/2007 é boa, porém, há problema em sua efetividade, porque o próprio Estado tem adotado mecanismos alternativos, pontualíssimos, que tangenciam a sua aplicação. Há, portanto, um abismo entre o direito efetivo e o direito do livro, low book.

Conforme acertadamente registra Jorge Pereira da Silva, desde 1993, o precedente Aquaparque trouxe preocupações ao poder público. Temia que a jurisprudência se consolidasse

188 MIRANDA, Jorge – Manual de Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra, 2012. Tomo IV: Direitos fundamentais, p. 298, em nota.

189 AC STJ DE 1994/02/24 IN BMJ p. 396. AC STJ DE 1999/09/23 IN BMJ N460 p. 753. CJ 1999 ANO7 T3.

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e gerasse efeito multiplicador. Portanto, não surpreende o fato de o legislador ter procurado atar as mãos dos tribunais comuns, ao exigir prévia manifestação do Tribunal Constitucional para enfrentamento da responsabilidade civil por omissão legislativa.190

Determina o Artigo 15º, n. 5, da Lei n. 67/2007, que a constituição de responsabilidade fundada em omissão legislativa depende de prévia verificação de inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional. No caso Aquaparque, não se exigiu aludida manifestação pretérita, por não haver a exigência legislativa parida em 2007. Em nosso sentir, tal dispositivo padece de inconstitucionalidade, porque é limitador do direito fundamental auto executável previsto no citado Artigo 22º da Constituição da República Portuguesa.

Tendo em vista o caso concreto, não se pode afastar a responsabilidade civil do Estado pela omissão de um ato legislativo, ou seja, o não cumprimento do dever de legislar, o que se potencializa em um país, como Portugal, que está sujeito à organização interna e aos preceitos externos do Tribunal da União Europeia.

2.3 Autonomia da Responsabilidade Estatal por Omissão versus Exigência de Prévia