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Autonomia da Responsabilidade Estatal por Omissão versus Exigência de

2 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO

2.3 Autonomia da Responsabilidade Estatal por Omissão versus Exigência de

Como referido, o Artigo 15º, n. 3, da Lei n. 67/2007 bem determina que o Estado é civilmente responsável pelos danos anormais contrários aos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, os quais resultem da omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais.

Todavia, o Artigo 15º, n. 5, da mesma lei esvazia o n. 3, ao estabelecer que a responsabilidade fundada na ausência de providências legislativas, para tornar exequíveis normas constitucionais, depende da prévia verificação de inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional. Ou seja: o próprio Artigo 15º da Lei n. 67/2007 dá com uma mão (n. 3), mas retira com a outra (n. 5) a indenização estatal por omissão legislativa.

Sucede que, segundo a legislação lusitana, inexistindo decisão prévia em que o Tribunal Constitucional dê por efetiva uma inconstitucionalidade por omissão, o juiz da causa deverá indeferir liminarmente qualquer pleito indenizatório por ausência do requisito legal de procedibilidade da ação indenizatória plasmado no Art. 15º, n. 5, da Lei n. 67/2007. E pior: o particular lesado em um direito fundamental por omissão legislativa sequer tem legitimidade

190 MEDEIROS, Rui (Org.) – Comentários ao Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas. Lisboa: Universidade Católica, 2013, p. 411.

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ativa para propor a ação de inconstitucionalidade por omissão, de que cuida o Art. 283º da Constituição Portuguesa. Aquele dispositivo simplesmente nega ao cidadão a possibilidade de o próprio tribunal comum verificar a inconstitucionalidade por omissão legislativa em processo de sua jurisdição. Portanto, está com as mãos atadas.

Tiago Freitas e Afonso Brás, em obra que possui como um dos organizadores o Professor Ricardo Pedro, defendem que, nos casos de inconstitucionalidade por ação, o Artigo 15º, n. 2, previu uma via de acesso ao Tribunal Constitucional, fazendo equivaler ex lege a decisão do tribunal (comum) que se pronuncie sobre a inconstitucionalidade;191 que situação diferente é prevista no Artigo 15º, n. 5; que exige prévia verificação de uma inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional, na forma do Artigo 283º da Constituição; e que, sem um aresto do TC prolatado antes da propositura da ação, faltará um pressuposto essencial para que o tribunal administrativo possa proceder ao julgamento da causa.192

Bem tece Jorge Pereira da Silva, em obra organizada por Rui Medeiros, que não se deve impedir o reconhecimento jurisdicional autônomo da omissão; que é pressuposto da responsabilidade civil do legislador; que tal aconteceu, aliás, no já referido caso Aquaparque, onde não se exigiu manifestação prévia do Tribunal Constitucional; que a responsabilidade por omissão legislativa não pode ficar dependente de um favor de uns, entre os poucos legitimados para propor a ação prevista no Artigo 283º da Constituição; que, desde 1982 até hoje, o Tribunal Constitucional apenas julgou sete processos destes, mas, somente em três, deu por verificada a existência de uma inconstitucionalidade por omissão; e que, assim, a probabilidade de um particular lesado nos seus direitos fundamentais de conseguir obter uma indenização estatal por omissão legislativa é praticamente nula.193 Segundo o Artigo 283º, Inciso I da CRP, só o Presidente da República e o Provedor de Justiça têm legitimidade irrestrita para propor tal ação perante o TC.

Verifica-se que o n. 5 do Artigo 15º é inconstitucional, na medida em que limita o direito fundamental auto executável previsto no Artigo 22º da Constituição da República Portuguesa (leia-se: direito ao ressarcimento dos danos causados por omissões legislativas).

Ademais, viola o direito de acesso aos tribunais comuns (Inciso I do Artigo 20º da CRP), pois

191 A decisão do tribunal que se pronuncie sobre a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma jurídica ou sobre a sua desconformidade com convenção internacional, para efeitos do número anterior, equivale, para os devidos efeitos, a decisão de recusa.

192 MEDEIROS, Rui (Org.) – Comentários ao Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas. Lisboa: Universidade Católica, 2013, p. 767.

193 Ibid., p. 417.

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condiciona e compromete a resolução dos litígios respeitantes à responsabilidade por omissões legislativas.

Em sentido contrário, como já visto, Tiago Freitas e Afonso Brás defendem a constitucionalidade do dispositivo. Primeiro, porque o Tribunal Constitucional Português seria o único órgão que possui competência para, em casos de omissão, avaliar a necessidade (ou não) de prolação de um ato legislativo. Segundo, porque o n. 5 do Artigo 15º evitaria riscos do ativismo judicial e da generalização destas decisões causarem impacto nas finanças públicas.

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Em que pese tal opinião contrária, mais ajustada é a posição de Miguel Bettencourt da Câmara, ao defender que a responsabilidade civil pública possui a natureza de princípio fundamental, por consagração constitucional; que emerge como princípio estruturante das ordens jurídicas contemporâneas, como vetor de proteção e de garantia dos cidadãos, face à máquina estatal; que os conceitos da responsabilidade civil de Direito privado não se mostram bastantes (ou adequados) para a compreensão da responsabilidade civil estatal em toda a sua sofisticação atual; que o Artigo 22º da CRP encerra um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias; que consagra o princípio geral de responsabilidade civil pública;

que o mesmo Artigo 22º deve ser interpretado à luz do Direito da União Europeia, sempre que em causa a violação das normas do DUE; que a ação de responsabilidade estatal por omissão legislativa não se confunde com o mecanismo do controle de constitucionalidade por omissão;

que dele independe; que, assim, existe uma possível inconstitucionalidade da norma do Artigo 15º, n. 5, do RRCEEP; e que a progressiva responsabilização do Estado foi determinada pelo aumento da sua intervenção econômica, social e cultural e pela pressão europeia a favor da responsabilização dos poderes públicos. 195

Concordamos, portanto, com o Professor, quando diz ser uma entorse jurídica fazer depender a responsabilização civil por omissão legislativa do controle prévio de inconstitucionalidade. Bem ainda aduz que, se for mantida em vigor a atual redação do Artigo 15º, n. 5, do RRCEEP, haverá o branqueamento das situações de responsabilidade civil do legislador; que é ilusória a ideia de que, não existindo uma prévia declaração de inconstitucionalidade por omissão, não haverá uma omissão do legislador passível de

194 MEDEIROS, Rui (Org.) – Comentários ao Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas. Lisboa: Universidade Católica, 2013, p. 781.

195 CAMARA, Miguel Bettencourt da – A Acção de Responsabilidade Civil por omissão legislativa e a norma do n. 5 do Art. 15º da Lei n. 67/2007: Alguns efeitos substantivos e processuais. Coimbra:

Coimbra, 2011, p. 144-146.

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indenização estatal; que o citado Artigo 15º, n. 5, apenas se traveste de amigo da responsabilidade civil pública, porém, é inimigo do instituto; que tal norma põe um ferrolho na porta de acesso à responsabilidade civil por omissão; e que isso exige medidas legislativas; e que a ausência de acesso do particular ao mecanismo de controle da inconstitucionalidade por omissão (CRP, Artigo 283º) é um argumento adicional em reforço da tese da autonomia da ação de responsabilidade civil.196

O Artigo 15º, n. 5, da Lei n. 67/2007 cria um tipo de pressuposto processual, que obstaculiza a indenização estatal por omissão legislativa, razão pela qual, efetivamente, viola o princípio da tutela jurisdicional efetiva estampado nos Artigos 20º e 268º da Constituição.

Antes de 2007, mesmo inexistindo decisão do Tribunal Constitucional sobre a inconstitucionalidade por uma omissão legislativa, o particular lesado tinha condições de propor ação civil, com esteio direto no Artigo 22º da CRP. Portanto, o Artigo 15º, n. 5, representa um retrocesso do sistema jurídico português, pois – antes da edição da Lei n. 67/2007 – não havia tal nefasto pré-requisito no ordenamento lusitano.

Sobre isso, o Estado concede-se uma espécie de isenção de responsabilidade, vez que o Artigo 15º, n. 5, do RRCEEP – ao exigir a aludida prévia manifestação do TC – cria um elemento de exclusão legal da responsabilidade civil estatal por omissão legislativa. Tudo em detrimento do Artigo 22º da CRP, enquanto instituto que alberga o direito fundamental que se traduz no princípio geral da responsabilidade civil do Estado.

Entendemos que, em Portugal, o juiz da ação de indenização por danos estatais decorrentes da omissão legislativa deve diretamente receber, processar e julgar a demanda – independentemente de cumprimento do pré-requisito da manifestação prévia do Tribunal Constitucional. Basta afastar a exigência da regra, reputando-a inconstitucional incidenter tantum, mesmo que de ofício, ou seja, sem o requerimento expresso das partes, na medida em que se trata de questão de ordem pública. Logo, ajuizada a ação, a existência da responsabilidade civil por omissão legislativa deve ser objeto de fiscalização imediata e concreta do juiz titular do processo.

Portanto, na espécie, a ação indenizatória tem natureza autônoma, até porque a responsabilidade civil por omissão legislativa difere da inconstitucionalidade por omissão, na

196 CAMARA, Miguel Bettencourt da – A Acção de Responsabilidade Civil por omissão legislativa e a norma do n. 5 do Art. 15º da Lei n. 67/2007: Alguns efeitos substantivos e processuais. Coimbra:

Coimbra, 2011, p. 144.

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medita em que possuem objetivos/efeitos díspares, respectivamente, declaratórios e ressarcitórios.