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5. A NÃO-CONSOLIDAÇÃO COMO EXPRESSÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE:

5.1 A restrição de abrangência ideológica da democracia como resultado da hegemonia

Conforme Buci-Glucksmann (1990, p.69-70), o conceito de hegemonia de Gramsci irá sofrer uma importante mutação a partir de 1926. Até essa data, conforme a autora,

hegemonia designava principalmente uma estratégia alternativa do proletariado (hegemonia do proletariado). Ora, o caderno 1 efetua uma mudança de campo: a hegemonia, especificada pelo novo conceito de aparelho de hegemonia, refere-se sobretudo às práticas da classe dominante. Mais ainda, enquanto nos cadernos posteriores (7 e 8) a hegemonia englobará progressivamente as estruturas do Estado, aqui os conceitos de hegemonia e de aparelho de hegemonia não são diretamente vinculados à problemática do Estado, e sim à da constituição de classe, em um processo de transformação revolucionária.

Hegemonia, segundo Buci-Glucksmann (1990), possui três significações na obra de Gramsci. Embora as três estejam relacionadas entre si, a segunda e a terceira acepções estão diretamente interligadas e são fundamentais na definição da restrição de abrangência ideológica da democracia. A primeira acepção dada por Gramsci ao termo se refere à força necessária para a revolução proletária. Gramsci se dedica a refletir sobre a formação de uma ideologia proletária e sobre as condições de sua transformação em hegemonia. A segunda é um diagnóstico, baseado na primeira formulação, que exprime a existência de uma hegemonia que antecede as lutas proletárias e influencia sua ocorrência e desenvolvimento. A terceira, por sua vez, envolve a análise da relação entre estado e sociedade civil e o papel dos aparelhos de hegemonia no estabelecimento de uma ideologia burguesa.

Os aparelhos de hegemonia existem por meio da mediação de infindáveis subsistemas como, por exemplo, o aparelho escolar e o aparelho cultural. As instituições educacionais e culturais, que vão da escola à universidade, dos museus às bibliotecas, entre outras, são meios objetivos de difundir e incutir valores sociais. Os aparelhos também se expressam na organização urbana, da informação e, ainda, por meio dos subsistemas herdados de outros modos de produção e adaptados ao modo capitalista, como, por exemplo, a Igreja (BUCI-GLUCKSMANN, 1990). Gramsci (1978) destaca ainda, a importância dos intelectuais como agentes da ideologia hegemônica. São os aparelhos, seus subsistemas e agentes que disseminam, reforçam e estabilizam a ideologia dominante, tornando-a e mantendo-a hegemônica.

Gramsci, em sua terceira fase, analisa a hegemonia por meio da relação concreta entre estado e sociedade civil. A hegemonia não é somente um conjunto de valores falsos (na medida em que não são originais, mas resultado da dominação de classe) arraigados na cultura de forma a direcionar os valores e constituir uma ideologia dominante. A hegemonia se expressa na relação entre estado e sociedade civil. A sociedade civil se apresenta como continuidade do estado quando os

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indivíduos passam a concordar com a ideologia dominante. Assim, os indivíduos agem conforme os valores hegemônicos de determinada classe no poder. Não há, portanto, diferenças entre o interesse do estado e o da sociedade civil, sendo esta representante daquele e não o contrário.

Para o autor italiano, portanto, a hegemonia se expressa em uma sociedade civil forte, o que significa uma sociedade civil em sintonia com o estado. Como o estado representa os interesses das classes dominantes, a hegemonia garante a manutenção de valores que sustentam a posição dominante de determinada classe no poder (GRAMSCI, 1978). O complexo sistema de estruturação da dominação envolve todas as esferas da existência social e, portanto, também se relaciona com as regras políticas e, nesse sentido, com o método democrático. Assim, uma vez que os valores das classes dominantes são universalizados, a oposição à sua condição de classe dominante e às contradições inerentes a essa realidade é fracionada, diluída e, de certa forma, diminui sua força no cenário político institucional.

Na democracia, o processo de diluição da oposição aos valores dominantes resultante da hegemonia é o que aqui se denomina restrição de abrangência de conteúdos ideológicos da democracia. Esta restrição de abrangência da democracia se reflete, por conseguinte, na diminuição da participação de conteúdos ideológicos contrários aos conteúdos hegemônicos, na dificuldade ou incapacidade de implementação de propostas contrárias ao livre mercado ou no deslocamento ideológico, isto é, na necessidade de descartar propostas contrárias ao modelo econômico capitalista para atingir a vitória eleitoral.

Gramsci, contudo, não nega a possibilidade de emergência de ideologias originárias de outras classes que possam subverter a dominação. Por isso, não se pode afirmar, dentro deste quadro teórico, que uma ideologia contrária ao modelo econômico dominante perde o seu sentido com o desenvolvimento deste sistema. Tampouco é razoável explicar o deslocamento ideológico das esquerdas como resultado inevitável da naturalização da ideologia liberal devido ao desenvolvimento econômico das sociedades pós-industriais e a conseqüente transformação de valores sociais (INGLEHART e WELZEL, 2006).

Explicar o fenômeno de deslocamento ideológico seguindo a linha analítica de Sartori (1982), isto é, por meio das características próprias do sistema partidário, também é insuficiente, pois torna secundários aspectos sociais e econômicos em prol

de uma resposta institucionalista. O autor descreve uma força centrípeda que agiria naturalmente na democracia, conduzindo todos os partidos a convergirem suas ideologias ao centro do espectro político. Com isso se evitaria a polarização que, por sua vez, seria negativa ao processo democrático e à estabilidade da sociedade. Essa leitura, porém, além de descritiva e não explicativa, contrasta com a realidade, uma vez que, como ocorreu no caso chileno, sistemas políticos podem fluir da direita para a esquerda, dependendo das ideologias em disputa e da existência de hegemonia. Além disso, no caso brasileiro e uruguaio, as forças políticas de direita não convergem espontaneamente para o centro do espectro ideológico.

Como Gramsci não estava interessado em manter a ordem burguesa, ele não considerou natural ou salutar à sociedade, o que aqui se denomina deslocamento ideológico. Dito de outra forma, Gramsci conduz ao questionamento: se a política é terreno de disputas pelo poder como ela pode ser insuficiente para decidir as formas de produção? Segundo o autor, o Estado é a forma concreta do mundo econômico (GRAMSCI, 1999). Buci-Glucksmann (1990), por conseguinte, conclui que a luta por um novo modo de produção é a luta pelo poder. Assim, a orientação do estado e da sociedade civil é o resultado das lutas pelo desenvolvimento de formas de produção. Gramsci (1978) compreende, portanto, a existência de uma relação intrínseca entre política e economia em que a primeira é fundamental para a estabilidade da segunda, e, entre hegemonia e economia, já que o poder político produz e depende da hegemonia.

A teoria democrática, por sua vez, apresenta a democracia como método de disputa pelo poder, assim, se essa disputa é, na realidade, a luta pela definição das formas de produção, a democracia também deveria ser o espaço para a expressão de projetos econômicos contrários ao vigente. A democracia na América Latina, porém, não possui, na sua prática, conteúdos contrários ao livre mercado capazes de se consolidar, embora eles existam na sociedade. Como se argumentou anteriormente, esse fato não resulta simplesmente da soma de opiniões individuais dos eleitores e, na democracia latino-americana, o papel de oposição ao modelo econômico, que pertenceu no passado à esquerda, se tornou, no discurso destas forças políticas, algo ultrapassado, ainda que os problemas do passado permaneçam no presente.

Mesmo desconsiderando a concepção gramsciana sobre a relação entre o modo de produção e poder, a diluição de ideologias contrárias ao capitalismo ou a dificuldade de consolidação deste tipo de ideologia são uma indicação da existência de

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hegemonia e, portanto, de restrição abrangência de conteúdos ideológicos da democracia.

A hegemonia, como direcionamento moral e intelectual da sociedade, possui resultados sociais, culturais, econômicos e políticos. O efeito de sua existência, porém, é comum em todas as esferas, ela dificulta a emergência e, principalmente, a estabilidade de valores de alguma forma destoantes dos valores dominantes. Isso ocorre por meio dos aparelhos hegemônicos que conduzem de forma objetiva os valores e crenças e dificultam a emergência de outras práticas e valores.

Desta forma, existindo hegemonia, há também a delimitação de quais conteúdos ideológicos são considerados mais ou menos legítimos. Nas sociedades democráticas, por conseguinte, há a delimitação de conteúdos que possuem maiores condições de concorrer e serem aceitos – isto significa afirmar que a hegemonia define a restrição de abrangência de conteúdos ideológicos da democracia. Conteúdos ideológicos identificados como contrários aos valores liberais (que são base do funcionamento da democracia liberal) sofrem as restrições de abrangência ideológica da democracia.

A impossibilidade de disputa e consolidação de formas de produção contrárias ao capitalismo, na democracia liberal, expressa, portanto, senão um desvio dos princípios democráticos ideais, a contradição entre a regra de abertura da democracia a todos os conteúdos ideológicos e os valores democráticos liberais fundantes deste sistema, a saber, o direito natural à propriedade privada individual e desigual. Considerando a democracia real, portanto, a restrição de abrangência de conteúdos ideológicos é uma característica intrínseca à existência deste modelo político.