• Nenhum resultado encontrado

5. A NÃO-CONSOLIDAÇÃO COMO EXPRESSÃO DA IDEOLOGIA DOMINANTE:

5.3 Os efeitos da restrição de abrangência ideológica da democracia na esquerda latino-americana: a

5.3.1 O golpe contra Allende como demonstração dos limites da democracia liberal

Existem duas principais teses a respeito das características da democracia chilena. A primeira, amplamente aceita, pelo menos até meados da década de 1990, é que a democracia chilena era, desde a década de 1930 até o golpe de 1973, a mais estável e consolidada da região. De fato, o Chile possuía uma das mais duradouras democracias da região, porém, muitos teóricos passaram a contestar a qualidade da democracia chilena e a compreendê-la não apenas como uma estrutura institucional, mas por sua base sócio-econômica.

Para Salazar e Pinto (1999, p.13), embora alguns teóricos possam considerar que o Chile possua o “sistema estatal (...) más estable de América Latina y el que há logrado superar sus crisis com las soluciones más racionales y de mayor consenso”, há de se questionar, assim como Sartori, se, além de estabilidade, existia eficiência: “la estabilidad gubernamental indica mera duración; los gobiernos pueden tener larga vida y a la vez ser impotentes: su duración no constituye de manera alguna un indicador de eficiencia o eficácia” (SARTORI, 1992 apud: SALAZAR e PINTO, 1999, p.14).

Segundo Leyton (2004) a interpretação de que a democracia chilena era estável e pacífica é mítica e parcial, decorrente de uma literatura histórica surgida a partir da década de

194

50 e pouco questionada nas ciências sociais, pelo menos até meados da década de 1990, quando uma nova interpretação sobre a política e a história chilenas passou a ser realizada. Até essa revisão interpretativa, diversos autores (GIL, 1969; VALENZUELA, 1991; MAINWARING, 1999), afirmavam que a democracia chilena respeitava alguns dos critérios institucionais fundamentais, como “en primer lugar, la estabilidad, medida fundamentalmente por la longevidad y duración de sus gobiernos; segundo, su evolución pacífica, a lo largo de los siglos XIX y XX. El cambio político se llevó a cabo a través de las normas institucionales establecidas, la ‘violencia política’ era una situación de excepción; tercero, el consenso político ha sido el factor central para la continuidad de sistema” (LEYTON, 2004, p.15).

A nova leitura questiona quão pacífico foi o sistema (SALAZAR, 1990), quão estável (SALAZAR e PINTO, 1999; JOCELYN HOLT, 1997) e quais eram as condições sociais da democracia chilena (MOULIAN, 1994; LOVEMAN e LIRA, 1999). A principal conclusão desses autores é que a democracia chilena comportava um alto grau de exclusão social e política de setores importantes da sociedade, que tinham suas demandas reprimidas pelos grandes proprietários de terra. A política chilena e, portanto, a estabilidade da democracia, dependiam do poder dos grandes proprietários de terra que “a través de un pacto social de dominación lograran conservar, en primer lugar, la propiedad de sus grandes haciendas y, en segundo lugar, el control social y político de los campesinos” (LEYTON, 2004, p.17). Segundo Leyton (2004), o golpe foi resultado de uma crise da hegemonia desse setor da sociedade que viu o direito a propriedade privada ser reduzido e ameaçado. O autor afirma que, tanto a dita estabilidade democrática, no período de 1932 a 1958, quanto o golpe de 1973 estão ligados, por um lado pela proteção do direito natural à propriedade privada desigual e “por otro lado, con la cuestión agrária en su doble dimensión: la inclusión de los sectores campesinos a la plena ciudadanía y la democratización de la propiedad agraria” (LEYTON, 2004, p.18). Por isso, segundo essa linha de argumentação, a relação entre propriedade privada e democracia é central para se entender o golpe de 1973. Além disso, esses autores consideram que, somente a partir de 1958, quando a questão agrária começou a ser tratada e novas forças sociais começaram a participar do jogo político é que houve democracia no Chile. Neste período há a transição de um regime autoritário eleitoral, baseado na hegemonia dos latifundiários e na repressão de novas forças políticas, para uma democracia. Nesta transição ocorre uma crise de hegemonia desses setores, seguida pela tentativa de restabelecimento da hegemonia, pelo fortalecimento de novas ideologias que buscaram se tornar hegemônicas e, por fim, pelo rompimento da ordem democrática.

Com o estabelecimento do regime ditatorial de Pinochet, segundo Moulian (1997), há a eliminação das ideologias que ameaçavam à propriedade privada e buscavam construir uma nova hegemonia, representada pelo governo de Salvador Allende. Para o mesmo autor, o governo de Pinochet consegue redefinir a hegemonia segundo o interesse de manutenção do direito à propriedade privada. Durante o período militar uma nova hegemonia foi instaurada pela eliminação das forças que haviam surgido no período democrático e por meio do que Moulian (1997) denominou como transformismo, a modificação do estado para manter a ordem social, política e econômica instaurada com o golpe.

Desta forma, a vitória eleitoral da Unidad Popular se dá durante uma crise hegemônica, devido à organização política de novas ideologias e a incapacidade de manter a repressão dessas forças. Ocorria a transição para a modernidade, nos termos de Barrington Moore (1967). Moore define que a modernização seguiu três caminhos principais e um quarto, caracterizado por sua indefinição. O caso chileno, possivelmente, segue o terceiro e o segundo caminhos, sucessivamente.

Para Moore (1967) o terceiro caminho se concretizou no comunismo, como na Rússia e China. Nestes países, burocracias agrárias inibiam os impulsos industriais, impedindo a formação de uma classe urbana suficiente para a industrialização e conseqüente modernização. O aumento dos camponeses, classe sujeita às novas forças e tensões do mundo moderno, gerou a revolução comunista, que subverteu a ordem agrária e levou à era moderna. No Chile, as tensões do mundo moderno enfraqueceram as burocracias agrárias que não foram substituídas pela burguesia industrial, ainda politicamente fraca. Neste período, o investimento na industrialização enfraqueceu o poder rural e fortaleceu o poder urbano. O enfraquecimento do poder político dos latifundiários permitiu que ideologias até então suprimidas, surgissem no cenário político chileno. A literatura indica, inclusive, que neste período democrático que antecede a vitória de Allende, “the Chilean government and party system have moved to the left as a response to, or in association with, a shift in mass opinions to a more ideological content and a leftist orientation” (PROTHRO e CHAPARRO, 1976, p.68).

Nesse sentido, o fracionamento eleitoral chileno em três terços é um resultado direto da condição de transição à modernidade, dentro da democracia, e das disputas ideológicas que resultam deste processo. O início da transição no Chile, portanto, foi democrático e não revolucionário, pois a democracia liberal era um valor compartilhado e defendido tanto pela

196

direita quanto pela esquerda e a Unidad Popular acreditava que era possível, exatamente pela situação singular do Chile, chegar ao poder por esta via.

Com a ascensão da Unidad Popular ao governo chileno e a tentativa de uma nova hegemonia (socialista), se inicia algo semelhante ao segundo caminho de transição à modernidade, que, conforme Moore (1967), congrega o capitalismo e o fascismo. Segundo o autor, este caminho se desenvolveu nos casos do Japão e Alemanha, onde o fraco impulso burguês foi incapaz de gerar uma revolução, ou esta foi derrotada. A aliança entre as classes comercial e industrial, ainda fraca, com as classes antigas e ainda poderosas, leva à substituição das tentativas democráticas de transição à modernidade, por governos fascistas. No caso do Chile essa aliança de forças entre latifundiários, industrialistas e grandes comerciantes se dá em condições específicas devido ao governo de Allende.

Por isso, como descreve Moulian (1997, p.145), a ditadura de Pinochet se caracterizou por um governo “gatopardista”80, em que tudo se transformava para que o poder permanecesse intacto. Os interesses de todos os grupos ligados ao capital eram atendidos e o governo tinha que se transformar para isso. Pinochet conseguia, assim, simular as transformações que ocorrem por meio da alternância no poder característica da democracia. Com isso, o regime militar se tornava estável e formava uma nova hegemonia que valorizava e garantia o direito à propriedade privada, fundamento que congregava latifundiários, industrialistas e comerciantes e excluía camponeses e proletários, assim como, a esquerda.

Em resumo, havia uma hegemonia que garantia os interesses dos grandes proprietários rurais. Com a modernização essa hegemonia foi ameaçada e novas forças, que até então suprimidas, conseguiram se desenvolver. A instabilidade da transição, a falta de acerto entre latifundiários e industrialistas e, conseqüentemente, a fragilidade de uma ideologia dominante, possibilitaram a ascensão da esquerda ao governo chileno, em 1970, por meio da democracia.

Frente à ameaça à propriedade privada, desencadeada pelas medidas da UP, ocorre a união entre os grandes proprietários de terra e os industrialistas, que tentam, com auxílio dos Estados Unidos, formar uma nova hegemonia, ou, em certo sentido, reaver a hegemonia perdida. Segundo Valenzuela (1976, p.2),

from the very outset of his administration, important economic sectors such as industrialists, landowners, Professional associations, small shop-keepers and even

80 O termo se refere ao romance de Ill Gatopardo, de Di Lampedusa, em que uma aparente contradição é expressa: “Se queremos que tudo siga como está, é necessário que tudo mude”.

some white- and blue-collar unions resisted attempts to curtail their vested interests. At times they act alone; at other times they acted in conjunction with parties of the Right and Center. Combined with U.S. economic retaliation and government mismanagement81, this opposition contributed to create a serious economic crisis.

Inicia-se a grande fórmula de ataque massivo ao governo de Allende por meio da disseminação de uma ideologia antiesquerda. Com isso, uma conciliação não- político institucional ocorreu. Os aparelhos ideológicos foram unificados contra a ameaça socialista. Igreja, escola, imprensa, entre outros, passaram a promover o clima de caos e preocupação (ARRATE, 2003). A Unidad Popular também investiu nessa disputa, principalmente por meio da valorização da cultura popular (ROJO, 2003). No meio político, entretanto, a democracia exigia uma conciliação com o centro, impossível para os objetivos da Unidad Popular. Os limites de abrangência de conteúdos ideológicos da democracia se materializaram, ainda que de maneira embrionária e abrupta, provavelmente como resultado prático do início da recuperação da hegemonia pelos grupos de direita e centro.

Um dos entrevistados, deputado pelo Partido por la Democracia Cristiana durante o governo de Allende, afirmou que a partir de um momento, iniciado em 1972, a disputa no legislativo era aparentemente irracional. Nem esquerda, nem direita, nem centro buscavam acordo e as questões não se resolviam, pois os empecilhos eram baseados em falsas concepções sobre os objetivos do adversário. Não havia, segundo o informante, estratégia ou orientação, no caso do PDC, para não realizar acordos ou aprovar medidas propostas por deputados e senadores da Unidad Popular. Segundo o entrevistado, “en el Congreso ya no se hablaba, lo único que se hacia era gritarse, lo único que se hacia era insultarse. Dejó de ser un lugar donde te encontrabas con gente y conversabas”. A restrição de conteúdos ideológicos passa a ocorrer de forma conflituosa dentro das instituições democráticas chilenas o que leva, por um lado, à ingovernabilidade, e por outro, a uma nova situação de instabilidade e insegurança.

A instabilidade gerada pela disputa ideológica, promovida pelos setores nacionais e estrangeiros contrários à transformação da economia chilena, levou a uma situação extrema. Essas forças perceberam que, das duas alternativas existentes para a continuidade do governo Allende, somente uma poderia se concretizar. A primeira

81 Quando Valenzuela publicou este livro, o governo dos Estados Unidos ainda não havia reconhecido o seu real papel no golpe.

198

alternativa, negociar para diminuir o radicalismo do programa de governo, mecanismo comum da democracia, se tornou impossível, pois o conflito se intensificou de tal forma que as instituições não mais funcionavam para negociar, apenas para impedir o governo. Assim, esses setores provocavam a segunda alternativa, plebiscito ou revolução, sendo a primeira opção a mais condizente com o cenário político. Embora não houvesse certeza sobre os resultados do plebiscito, se Allende vencesse seria impossível qualquer tipo de oposição institucional ou controle sobre as transformações. Assim, a saída do impasse foi evitar ambas as alternativas por meio do golpe.

O caso chileno é singular, pois os a restrição de conteúdos ideológicos se conformou de uma maneira abrupta. A restrição de abrangência de conteúdos ideológicos não levou à reformulação do programa de governo antes de sua escolha pelos eleitores, como acontece com Lula e Vázquez. O contexto conflituoso de restabelecimento da hegemonia, por sua vez, não significa que havia um vazio de valores sociais pré-existentes. Esses valores estavam em transformação, oscilando entre uma posição dominante e uma posição secundária, devido à emergência de novas forças ideológicas. Possuíam, contudo, um poder ainda grande, principalmente em relação aos valores básicos do liberalismo, como a defesa dos princípios da propriedade privada.

A tentativa de uma hegemonia proletária, socialista ou popular, representada pelo governo de Allende, foi impedida de forma violenta porque havia incerteza quanto ao resultado da disputa ideológica. Ou Allende recorreria à consulta popular ou às armas. Os limites das regras democráticas e a restrição de abrangência de conteúdos ideológicos ficaram expostos e forçaram a busca por uma solução extra-institucional por parte da Allende, o que foi impedido pelo golpe.

5.3.2 O deslocamento ideológico de Lula e Vázquez como resultado da restrição de